domingo, 11 de abril de 2010

O QUE FICA DO QUE SE LÊ?


O

Um mistério que me tem acompanhado ao longo da vida (vida comprida, de muitas dezenas de anos de leituras feitas), é o de saber o que fica (e por que fica) dos livros que tenho lido. O enredo? O estilo? O inesperado das situações? As características das personagens? É mistério que nunca consegui decifrar, o que me leva a supor que não obterei resposta se vir a questão apenas pelo lado do objecto (isto é, do texto literário) e me esquecer do sujeito (do sujeito leitor e dos seus estados de alma). Dizer que o fenómeno resulta da conjugação destas duas ordens de factores é uma “boutade” de bom senso, que nada explica. E o mistério avoluma-se quando as coisas se passam com os contos que escrevi: se há textos que me continuam presentes, outros há em que dificilmente me reconheço. Enfim, o que não tem explicação, explicado está.
Estas considerações vêm a propósito de uma obra de Lev Tolstói, que acabo de ler: “O Diabo e Outros Contos” (Relógio d’Água, 2008). Textos que eu já conhecia, em traduções (versões?) portuguesas anteriores ou em traduções francesas, mas de que tinha apenas uma pálida lembrança. Ou, para ser mais exacto, dos seis textos que constituem o livro, eu só conhecia cinco, pois havia um (“Depois do Baile”) que me era totalmente desconhecido. É um conto admirável, de equilíbrio notável entre forma e conteúdo. Um pequeno conto de nove páginas, quase exclusivamente centrado na descrição das emoções, nos sentimentos do protagonista, descrição suportada por um fio narrático extremamente subtil. Num baile de sociedade, em São Petersburgo, um jovem apaixona-se por uma beldade, com quem dança, em inebriamento de música, movimento e olhares. O estado de graça em que ele vai mergulhando atinge o seu clímax quando a jovem dança com o pai, coronel do exército do czar, oficial ainda pleno de garbosidade. É um quadro que o faz amar ainda mais a jovem, amor, admiração, que se derrama pelos que com ela estão, o pai em primeiro lugar. Um mundo perfeito que lhe é revelado.
Regressado a casa, a exaltação em que vive não o deixa dormir, o que o leva a sair, em rota de aproximação da casa da sua amada, ainda o dia está a nascer. Num descampado, surge-lhe um espectáculo surpreendente: duas filas de soldados, um rufar de tambores e um desgraçado de um tártaro-soldado fugitivo, violentamente espancado pelos seus irmãos de armas, costas em chaga viva, e que grita: “Amigos, piedade!”. Quem comanda o castigo e incita à crueldade é o coronel da paternidade. Perante esta visão, todo o emaravilhamento da noite do baile se vai esfumando e, com ele, a sua paixão. Para dar lugar a uma interrogação: o que é que ele não sabe e os outros conhecem, para considerarem normal aquele acto de selvajaria?
Interrogação para a qual não encontra resposta, mas que muda a sua vida: não ingressa no serviço militar, como tencionava, nem em nenhum outro serviço em que houvesse chefe e chefiados, pois não se sente com préstimo para coisa alguma em que a relação de violência estivesse presente.
Um texto tão inesperado, tão fora do comum, tão profundamente humano, que não posso deixar de pôr uma questão: será este um dos textos que guardarei, para todo o sempre, na caixa negra da minha memória? Ou terá o mesmo destino dos outros cinco que compõem o ramalhete do livro de Tolstói? Bem, daqui a dez ou quinze anos, se vivo ainda for, direi de minha justiça…

3 comentários:

Alda Couto disse...

O que pode acontecer é que essa memória adormeça, para despertar sempre que alguém lhe contar a história de um rapaz que se apaixona num baile, por uma rapariga que dança com o pai...
Foi o que acabou de me acontecer.

Orfeu B. disse...

Meu caríssimo amigo, Albano Estrela, não estará a resposta na intensidade da fruição que a leitura proporciona? Intelectual ou visceral, o prazer que as linhas suscitam determina o seu destino no labirinto da memória. Solução tão simples que certamente não captura todos os aspectos do enigma. O que fica do que se lê? Talvez seja melhor que nunca o saibamos, pois assim somos compelidos a buscar a resposta no livro seguinte.

Um abraço!

deep disse...

Há livros de que guardo apenas impressões, há outros onde fui buscar ensinamentos, de alguns ficou-me a cumplicidade com personagens e de outros palavras que se tornaram máximas ou música apenas...
Fiquei curiosa relativamente ao conto ao qual se refere. Obrigada pela sugestão. :)