domingo, 25 de agosto de 2013

MIZÉ OU MUITO MAIS QUE UMA MAGNÍFICA NOVELA SUBURBANA



O título não será particularmente apelativo para quem, nos livros que escolhe, procura seriedade, seja lá o que isso for. E o início, embora num diálogo muito bem "esgalhado", pode fazer suspeitar estarmos na presença de uma novela ligeira das que põe o acento sobretudo na galhofa. Mas depressa percebemos que essa galhofa é muito mais séria do que parece.

De facto, no início há um certo tom que lembra os malandros de Mário Zambujal, o Coca-cola Killer de António Vitorino d'Almida ou, eventualmente, o Molero de Dinis Machado. mas também acabamos por perceber que Ricardo Adolfo constrói um mundo próprio, distinto de todos os outros que citei.

Trata-se de um belo romance que abre caminhos muito pouco trilhados na nossa literatura, que nos conta uma história suburbana, passada no interior do Concelho de Sintra, para cima da IC 19 e da linha do comboio.

Mizé é uma típica cabeleireira do Cacém, de Mira Sintra, Mem Martins, ou de ou de um desses bairros onde se misturam pobreza, droga, marginalidade, sonhos sem consistência nem futuro, rituais sem alma. Palha, o marido, é um vendedor de batatas fritas para restaurantes, cafés, supermercados.

Os diálogos são notáveis, logo a começar pelo diálogo da primeira página sobre o casamento e tendo momentos fantásticos como, por exemplo, a discussão do silicone para as mamas da Mizé.

O autor conhece bem as pessoas de que fala. E torna a pobreza das ideias e do vocabulário, numa estética bem conseguida que, se de início, é de uma evidente comicidade, vai a pouco e pouco tomando uma tonalidade constrangedora, amarga, dolorosa, á medida também que as personagens vão ganhando consistência e a sua pobreza de objectivos, de vida, de linguagem, saltam à vista e deixam o leitor a torcer para que não lhes aconteça mais nenhuma tragédia.

Este é o mundo em que os sonhos são desmesurados, ou melhor, desmesuradamente tolos e restritos, e as maneiras para lá chegar são as mais miseráveis e pequeninas, concursos de televisão, totoloto, filmes pornográficos, um mundo onde a probabilidade de falhanço está ali mesmo ao sair a porta de casa. A busca do suceeso neste universo Trash, como Sofia Coppola lhe chama, é a do nada, a de conseguir qualquer coisa à custa de qualquer coisa. E o amargo é ficarmos a pensar que esta Mizé e o marido até se calhar nem são más pessoas. Apenas não sabem encontrar um sentido para as suas vidas. Apenas são trash. Apenas trash. Mas é por eles que passamos nas ruas todos os dias.


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