quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

«Não abras a porta, / se for o sublime diz que não estou, / já temos palavras de mais, sentimentos demais.» Manuel António Pina.

Reunir Poesia 

No universo da literatura a poesia, dizem, é sempre outra coisa. De facto é. Pessoal, boa, má, funciona, não funciona. É para uso pessoal de quem escreve e de quem lê. Há quem nunca a descubra, quem não se sinta por ela tocado. Não sentimos todos a falta das mesmas coisas. Mas algures dentro de um livro de poesia há janelas, emoções, construções mentais. Mais que o dito é a arquitectura das palavras que conta. A Poesia é mais música que qualquer outra arte. Por isso mesmo que não abra mão do silêncio pede voz. E é como o amor, exige sempre dois envolvidos no mesmo ritmo e no mesmo tempo; por vezes toca mais a alma, outras o corpo e acontece em casos raros extraordinários arrebatar ambos, na singular conjugação das estrelas que é a arte dos poetas.
Ousar falar de poesia é um risco. Poucos entendem o parar a vida para nos encantarmos por um poema que nos rasga uma janela na escuridão de um quarto escuro.
A poesia existe para que alguém respire acima da linha de água. Mesmo que para isso tenha sido preciso ao poeta mergulhar nas mais obscuras profundezas dos pântanos ou ter a ventura de voar sobre as mais altas nuvens.
Poesia reunida, poesia toda. Poesia apenas. Uma vida escrita, vista e revista nos poemas que são de novo embrulhados para oferta aos saudosistas ou aos que a descobrem agora, pela vez primeira vez. Um livro de poesia reunida é um balanço de vida, uma espécie de biografia holística. Neste ano que agora termina editaram-se algumas.




Todas as Palavras
poesia reunida
Manuel António Pina
Assírio e Alvim, 2012

Todas as palavras de Manuel António Pina já foram ditas e escritas. Já não resta sequer um sábio fechado na sua biblioteca, apenas a biblioteca, os livros, as páginas, os poemas.

A biblioteca
"O que não pode ser dito/guarda um silêncio/feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//quando já a incerteza/ e o medo se consomem/em metros alexandrinos./Na biblioteca, em cada livro,// em cada página sobre si/recolhida, às horas mortas em que/a casa se recolheu também/virada para o lado de dentro,//as palavras dormem talvez,/sílaba a sílaba,/o sono cego que dormiram as coisas/antes da chegada dos deuses.//Aí, onde não alcançam nem o poeta/nem a leitura,/o poema está só./E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.//” 
Manuel António Pina





Poesia Reunida
Maria do rosário Pedreira
Quetzal, 2012

Gostei muito de ouvir a Maria do Rosário Pedreira aquando da apresentação deste livro na Livraria Arquivo, em Leiria. Recomendo a todos. Esta Poesia Reunida aguarda leitura detalhada e vai durar Verões e Invernos. Os seus poemas são sempre de amor, o sentimento que melhor justifica a vida mesmo quando antecipa a morte, como sombra que permite atender a luz da vida, são como se tecidos sobre o corpo, uma segunda pele, vivem como árvores resistindo e mudando lenta e amorosamente no passar das estações.


“Vamos ser velhos ao sol nos degraus/da casa; abrir a porta empenada de/tantos invernos e ver o frio soçobrar//no carvão das ruas; espreitar a horta/que o vizinho anda a tricotar e o vento/lhe desmancha de pirraça; deixar a//chaleira negra em redor do fogão para/um chá que nunca sabemos quando/será — porque a vida dos velhos é curta,/mas imensa; dizer as mesmas coisas/muitas vezes por sermos velhos e por/
serem verdade. Eu não quero ser velha//sozinha, mesmo ao sol, nem quero que/sejas velho com mais ninguém. Vamos/ser velhos juntos nos degraus da casa —// se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não/atravesses a rua por uma sombra amiga,/ trago-te o chá e um chapéu quando voltar.//” 
Maria do Rosário Pedreira





Poesia
José Fanha
Lápis de Memórias, 2012


O livro de Poesia de José Fanha é uma edição da editora Lápis de Memórias, de Coimbra. É de um campanheiro destas viagens leitoras mas não vou falar sobre ele,  ainda aguardo com expectativa a sua integral leitura. Apresentado há dias numa livraria de Coimbra que tem o mesmo nome da editora, Lápis de Memórias, traz muitos dos poemas que todos conhecem mas faziam parte de edições há muito tempo esgotadas e também muitos inéditos. Gosto muito do que conheço. A sua poesia é uma voz de razão, emoção e corpo inteiro. Cinco centenas de páginas que percorrem quarenta anos de escrita poética e de vida que a partir de agora vão andar por aí.

A Metáfora
"Encontro o Mestre e digo-lhe que há poetas/que recusam a metáfora/ e o Mestre sorri./A metáfora é apenas a metáfora/diz ele/e não vale a pena ser a favor nem contra a metáfora/nem a favor nem contra seja o que for.//As coisas são e não são/à margem/dos poetas com assento/em casas de comércio/diz o Mestre/enquanto almoça.//A realidade vale exactamente o que vale o nosso olhar./A realidade é um peixe/o peixe nosso de cada poema./E o poeta é uma criança que segue pelos caminhos/ com bolas etéreas/a subir no ar.//O poeta é um menino com olhos/de menino e uma dor/ muito funda no seu peito de menino./O poeta atravessa os pátios da infância/ e vai feliz//dizendo  que as breves metáforas que lança ao ar/são apenas planetas de sabão a explodir/sucessivamente//sobre a cabeça do mundo.// 
José Fanha


Arte Nenhuma

Carlos Poças Falcão
Opera Omnia, 2012

E por fim este “Arte Nenhuma”, também recente, que encontrei na Centésima Página, em Braga, uma livraria onde os livros de poesia têm um espaço maior que o residual habitual em outros espaços e um tempo de existir para lá do vertiginoso chega-logo-desaparece das livrarias. 
É uma edição da OperaOmnia, uma editora de Guimarães, onde vive o seu autor, Carlos Poças Falcão, que conheci num tempo já longínquo, numa época em que Guimarães estava longe de ser capital mas era cidade de cultura. Ao folhear o livro relembrei o Convívio, acho que ainda resiste no Toural, os primeiros passos do festival de Jazz… E o que nenhum de nós sabia, há vinte e cinco anos que é o tempo deste livro, o que a vida traria a uns e outros. Muito menos que a morte, coisa estranha e distante, atropelaria amigos comuns. 
Refiro o conhecimento factual do autor pois me faria, em qualquer circunstância reparar num livro seu. Mas não me obrigaria a falar dele, faço-o porque me surpreendeu, sem espanto, a solidez do seu percurso.
Começou a escrever em 1987 com “Número Perfeito”, foi professor depois de largar uma breve e excruciante experiência na advogacia, abraçou um projecto editorial, a Pedra Formosa, e a poesia foi acontecendo. Vinte e cinco anos depois encontro-a mais sofrida mas menos angulosa. O tempo adoçou-o embora continue a preferir o crescimento dos cristais como metáfora do enovelamento dos afectos. Desde a saída do último livro que li dele, “Invisivel simples”, em 1988, que não nos cruzamos. Este livro foi um reencontro. Tal como o esperado as palavras são buriladas mas não é apenas um exercício de palavras há pensamento, reflexão. Não é um livro fácil, nem áspero, é sério e profundo. Creio que nenhum exigente leitor de poesia sairá defraudado.

Arte Nenhuma
"Por arte nenhuma, murmuração, momentos/de não saber cair, o poeta é quase nada./Atravessa a rua, sobe a escada, ao abrir a porta/está mudado: é um batimento estranho,/o coração antigo, toda a aprendizagem/semelhante a uma ruína. Espera ficar árido/até apanhar luz, assim como um deserto,/um poço para a voz, a espelhar ao fundo./Depois abre a janela, está vazio, pronto/a mudar de vez: porque esse é o poema,/a respiração a negro na frequência exacta/de uma espécie de onda, alísea, não criada.//”
                                                                                                                               

Os poetas são resistentes marginais mesmo quando estão por dentro. São pessoas desconfortadas. Podem louvar ou odiar a humanidade, ser laureados ou proscritos. Amam uma pessoa ou muitas, cada uma na sua singularidade de ser e género. Mas num lugar qualquer um poeta luta sozinho com o branco onde inscreve as palavras por razões e necessidades que nem quem os ama pode atender.
No “Pequeno livro azul”, dedicado a sua mulher, a Mizé, que morreu no ano passado, dá a sua voz à dela, afunda-se na dor de quem sofre, omitindo a sua própria ao ver morrer a mulher amada. Vemos o pequeno e limitado mundo do quarto do hospital pelos olhos dela, de forma crua e delicada faz-nos sentir impossibilidade, dor,  lucidez,  abandono e fúria a agarrar a vida. O sofrimento na sua esperança e desesperança. Não é um capítulo para mentes sensíveis. A dor cada uma a toma como é capaz de melhor a suportar: a breves tragos ou toda de uma vez.

“Olhar o tecto/respirar baixinho/Estar nas mãos de Deus//”
(…)
“o corpo, pobre corpo/esta choupana/e uma luz lá dentro/que o ama/que o ama//”

Arte Nenhuma é uma antologia encorpada na sua essência, nos sentimentos que guarda nos duelos mentais que constroem os poemas. Sendo que os livros são também o que deles dizemos, falta-me a mim arte para falar dele, dela, a poesia, que é melhor lida que em tentativa explicada ou justificada. Mas eu posso dizer o que me aprouver neste canto, humilde espaço de leitores (in)comuns.
O diálogo com deus é um diálogo aberto no qual podemos retomar as perguntas e quem sabe deus nos responda perguntas para buscarmos outras e quem sabe um dia chegar a algumas poucas respostas.

(…)
“Sei que não devo perguntar. Mas gostaria de entender porque tem de ser assim. Nada/ devo perguntar, pois a resposta é sempre uma outra torrente de sinais- e o coração/ confunde-se e a inteligência fica dividida.//”
(…)
 “Deus dava uma pancada na coxa com a Sua larga mão./ E eu ficava sem saber o que fazer. Para que são estes sinais/Intensos? Apetecia-me chorar, pois não estava á altura das/ revelações. E desejava estancar o tempo, que é por onde/Deus lança os seus sinais//”

Há, desde o início com “O Número Perfeito” uma força no mistério telúrico das palavras que se prolonga e acentua nas criações mais recentes.

“As pedras têm uma forma própria de ir cavando a terra,/à força de humidade, aconchegando as larvas e pesando,/pesando sempre. Um dia alguém levanta uma e há um rede-/moinho nesse nicho que lentamente se afundava.//”
(…)
“Assim também as casas. Se alguém levanta uma, pode/encontrar ossadas, ou a antiga mancha das adegas e os ratos/ficarão assustados pela súbita ausência de peso.//”

E há a arte de fazer haikus, com o rigor de um perfumista que se nota a cada gota, no Coração Alcantilado.

“Não te envaideças tanto, ó flor!/Olha à tua volta:/Primavera!//”
(…)
“Exige todo o sol/e o mês de Maio longo/uma cereja!//”

Na poesia do Poças Falcão o lugar dos afectos tem forma despojada mas profunda. Há uma tentativa de busca de perenidade nos fenómenos cíclicos da natureza, na lentidão geológica das pedras. Uma contenção de palavras que nos leva a perguntar mais uma vez e outra dentro de cada um. No princípio parecia regida por leis mais abstractas e geométricas agora persegue outras mais flexíveis que regem o ser. Há agora um lado mais concreto a par da abstracção. Há uma lamentação nas coisas imperfeitas, como se amassem, como se recordassem. Tudo pede um deus e o encontro com ele é um exercício solitário de confronto com um criador sábio que se diverte como um pai a deixar que o filho descubra o caminho, sabendo-o sempre em aberto na descoberta. Há na imperfeição maceração de  terra e criaturas, alimento para a vida, medições de temperaturas…Auscultação dos arenitos, restos de chuva, erosões gravadas. A busca na natureza, nos elementos, nos tempos geológicos da segurança que nos foge na nossa humanidade.

(…)Somos líquidos/amamos a fragmentação, a incansável/desordem da matéria. Com a pequena voz /enfrentamos o tempo, com a brancura/de uma subtil lenta paixão. Ao unirmos/separamos. Intuímos uma funda duração/um denso envolvimento, uma gravitação.//”

Vinte e cinco anos. “Arte Nenhuma”, o próprio título metáfora da própria poesia. Arte Nenhuma a ela se compara.

“Agora outra vez a caminhar/Atraso de propósito o bater de vários ritmos/Não estou contra/não vou contra/apenas subo um pouco/ e desacelero/Assim vou desdobrando/um fio de oração sobre a cidade/Depois dos triunfos/e das pequenas mortes/é só pela humildade (a terra da alegria)/que posso regressar//” 

No ano que se segue todos vão fazer listas rigorosas de coisas úteis versus outras ainda mais rigorosas de coisas dispensáveis. Acrescentem a essa primeira lista, por favor, um ou outro livro de poesia. Antes isso que medicamentos, mesmo que esses contribuam mais para a economia, para a reabilitação do mercado. Antes a poesia. Os medicamentos têm contra-indicações e a economia, caros leitores, foi um brinquedo na mão de iletrados que não se deram conta a tempo que eram humanos os números das suas equações. Antes a poesia que é ela própria a expressão máxima de nossa humanidade. Uma luz segura na noite que atravessamos, iluminando cada um segundo o seu caminho. Um mundo de perguntas, de buscas e de lutas. Não há sombras a não ser nos nossos olhos. Dizer tanto do poder de um livro pode parecer excessivo. Mas por vezes um singular poema tem esse poder. A poesia que se publica bastante, vende pouco e muito se perde por aí nunca será um fenómeno de massas. Nunca pesará no PIB. É inútil e absolutamente necessária para tecer os dias.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Mortalidade


The new land is quite welcoming in its way. Everybody smiles encouragingly and there appears to be absolutely no racism. A generally egalitarian spirit prevails, and those who run the place have obviously got where they are on merit and hard work.

Um breve e perturbador ensaio sobre a experiência de "viver morrendo" com um prazo de validade indeterminado, mas claramente à vista. Uma descrição impressionantemente lúcida do brilhante jornalista britânico, Christopher Hitchens, considerado por muitos como um dos mais dotados oradores dos nossos tempos, sobre o inevitável declínio do corpo e da mente devido à acção destrutiva do cancro.  

Um breve volume que nos brinda com uma análise subtil e corajosa dos aspectos definidores duma personalidade, precisamente quando esta está em vias de sucumbir sob o avanço da doença. Particularmente tocante é o capítulo sobre o desaparecimento da voz, sintetizado por uma citação do poeta W. H. Auden, "All I have is a voice".  

Linhas intensas e profundamente tocantes sobre a transformação da linguagem quando da instalação da doença: "idioma local da cidade do tumor (local Tumorville tongue)"; o tumor no esófago, caracterizado como "um cego, um  estranho desprovido de emoções (blind, emotionless alien)", etc.

Linhas coerentes e extraordinariamente dignas de um dos mais eloquentes arautos da racionalidade no combate contra a superstição e o pensamento primitivo que durante o curso da história da humanidade tem engendrado infelicidade, obscurantismo e destruição. Christopher Hitchens faleceu em Dezembro de 2011.


Orfeu B.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

AHAB, UMA EDITORA PORTUGUESA QUE SABE EDITAR CONTOS

Tanto quanto sei, a Ahab é uma jovem editora sediada no Porto. Jovem, mas já com um conjunto notável de obras, de entre as quais avultam as de autores que cultivam o contismo, como o peruano Julio Ramón Ribeyro (1929 -1994 ) e o norueguês Kjell Askildsen (1929). De Ramón Ribeyro li o 1º volume da obra intitulada " A Palavra do Mudo" (editado em 2012); de Askildsen, "Um Repentino Pensamento Libertador" (editado em 2010) e "Os cães de Tessalónica" (2012). Livros de contos, de autores pouco conhecidos ou desconhecidos entre nós. Em "Os Cães de Tessalónica", o autor vai buscar o título da obra ao primeiro conto, em que se refere a dificuldade que os cães, por vezes, têm em se separar após o acasalamento, com todo o sofrimento que tal acarreta. Assim, as personagens destes sete contos, ligadas para sempre pela dificuldade em se separarem (física ou psicologicamente), por mais dolorosa que seja a sua relação.
Nem sempre é fácil enquadrar as atitudes e os comportamentos das gentes que atravessam os textos de Askildsen em correntes ou autores da literatura ocidental, em que estamos inseridos. Talvez o existencialismo literário francês (com as suas expressões de tédio e de absurdo) se possa considerar como um ponto de referência, nomeadamente na solidão das personagens, mergulhadas num silêncio que dá sentido ao confronto permanente entre um tempo interior e um tempo exterior. Silêncio que as torna invisíveis até aos que lhe estão mais próximos. Veja-se um extrato do conto intitulado "Os Invisíveis": "Marion serviu-lhe mais vinho. Costuma doer-te a cabeça?, perguntou ela. Não, respondeu ele. Bem, sim. De vez em quando. Atirou o cigarro fora e acendeu outro. Olha, disse ele, a nuvem continua sem se mexer. A Camilla disse-me que te vais embora já amanhã, disse Marion. Sim, assentiu. Que pena, disse ela. Tenho de voltar ao trabalho, disse ele. Bebeu. É um bom vinho, disse ele. Passado algum tempo olhou para ela de relance; estava sentada a olhar para as mãos no regaço, movendo quase imperceptivelmente a cabeça. Por fim disse sem levantar a vista: Não queres falar, pois não? Mas se estou a falar…, disse ele. Sabes muito bem o que quero dizer, disse ela. Ele não respondeu. (…). (…) Pouco depois, disse: Não posso deixar de ser como sou. Se eu por exemplo mato alguém, não o posso evitar, mas não mato ninguém porque não sou assim. Tudo o que faço, faço-o porque sou como sou, e não tenho culpa de ser assim. Os outros podem dizer o que lhes apetece. Entendes? Pegou no copo e bebeu. Acendeu outro cigarro. Foi até ao maciço de flores e ficou a contemplar a terra seca. Então olhou para a nuvem no alto da montanha; pareceu-lhe mais pequena." Silêncio por vezes entrecortado por uma "confissão", que dá mais espessura a esse silêncio. Note-se a técnica de construção dos diálogos inseridos no texto, o que os transforma em monólogos. E, quando o autor utiliza o diálogo de uma forma tradicional, apenas o faz para acentuar o desfasamento entre as personagens, os lugares comuns em que assenta a sua relação, a incomunicabilidade que se foi criando, que nem os copos de vinho que vão bebendo conseguem disfarçar. O conto "Um lugar Maravilhoso" é um exemplo perfeito do que acabo de dizer: "Tinham descido até ao molhe de cimento, o sol estava prestes a pôr-se. - Oh, como adoro este lugar - disse ela. Ele não disse qualquer palavra. - Foi mesmo ali que caí à água. - Sim - disse ele - , já me contaste. - Devia ter uns quatro anos - disse ela. - Cinco - corrigiu ele. - Sim, talvez. Bati com a cabeça numa daquelas pedras que vês ali e fiz um corte profundo por cima da orelha, e se o meu pai não tivesse… O que foi isto? - Algum animal - disse ele. - Foi alguém a gritar - disse ela. - Não, pareceu-me ser um animal. - Vamos para dentro - disse ela. (...) (…) Ao entrar, ele disse: - Vou abrir uma garrafa de vinho. - Sim, abre. Ela sentou-se no sofá. Ele serviu-lhe vinho. - Obrigado, está bom assim, - disse ela. Ele deitou o dobro no seu copo e sentou-se junto à janela. - O meu pai costumava sentar-se aí - disse ela. - Sim, já me tinhas contado - disse ele. - E onde se sentava a tua mãe? - A minha mãe? Ela… Porque perguntas? - Apenas por curiosidade. Saúde! (…)" E o conto termina com o diálogo que a seguir se transcreve, exemplar na solidão em que as personagens vivem mergulhadas, mascarada de uma aparência de comunicação: "Ele estava sentado na ponta do molhe a contemplar o fiorde. Ela estava deitada atrás dele a apanhar sol. Disse: - Não é um lugar maravilhoso? - Claro que sim - respondeu ele." Claro que sim, o mundo é um lugar maravilhoso, mas apenas para aqueles que nele têm lugar. Dizer mais sobre este livro de Kjell Askildsen seria algo de supérfluo: a solidão, a incomunicabilidade, a alienação estão sempre presentes no quotidiano das personagens e constituem o suporte da narrativa dos sete contos que compõem a obra. Obra que caracteriza a "malaise" de uma sociedade que, apesar dos novos meios de comunicação e da facilidade das redes sociais, que se multiplicam, acaba por deixar cada um de nós entregue a uma inevitável solidão. Ainda que rodeados de gente, todos vivemos e morremos sós…

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A VOZ DA ÁFRICA ACTUAL


Diz-se entre os editores que os livros de contos não se vendem em Portugal. Muito poucos haverá de autores portugueses. No entanto, nos últimos meses deu à estampa um número muito significativo de livros de contos de outras literaturas. De memória cito Don DeLillo, Juan Ramon Rybeiro, Carlos Fuentes, Carson McCullers, Linda Davies.

A arte do conto é uma arte delicada e muito própria. Exige uma carpintaria cuidada, sem espaço para que a escrita se possa espraiar excessivamente, o domínio rigoroso do uso da surpresa, do desenlace eficaz e do punch final.

Jovem de 35 anos, várias vezes premiada, Chimamanda é uma bela escritora com um excelente ritmo de escrita e um universo narrativo muito próprio, que nos situa entre a Nigéria das tradições, a dos abusos, da corrupção, da violência, a de uma classe média de intelectuais e professores universitários (a que parece pertencer a autora) e a relação com a América, sonho primeiro de todos os que querem emigrar, estudar, mudar de vida.

A primeira qualidade de Chimamanda é a de agarrar o leitor com unhas e dentes. Começado a ler um conto o leitor tem dificuldade em afastar-se da sua leitura. A autora amarra-nos a partir de uma frase inicial... "A primeira vez que nos assaltaram a casa...", "Hoje vi Ikenna Okoro, um homem que julgava morto há muito.".

Depois, a autora estabelece um ambiente aparentemente normal onde vamos conhecendo uma intensa verdade interior de cada personagem (sobretudo as femininas) e um ponto de vista, um olhar sobre aquele mundo particular que muitas vezes nos surpreende até um final forte e frequentemente ambíguo de forma a deixar ao leitor a hipótese de ficcionar o depois da última frase.

Muito curiosa é a forma como mostra o contraste entre a cultura nigeriana e a americana, sem falsos preconceitos nem para um lado nem para outro, embora fique uma imagem ingénua da América, capaz de muita eficiência e pouca espessura.

Gostei muito e gostava que os meus amigos gostassem. Porque a leitura tem esta vantagem. Não carece de ciúmes. Permite e até exige partilhar os mais belos amores que cada um de nós venera.


domingo, 18 de novembro de 2012

“…a minha dor é esta primavera que nasce e me mostra que o inverno se instalou definitivamente dentro de mim” José Luís Peixoto




Foi pela voz de um grande contador de histórias ( Filipe Lopes ) que conheci a poesia de José Luís Peixoto e posso dizer que o “embate” foi forte. O Filipe leu o poema “na hora de pôr a mesa, éramos cinco” e eu fiquei atordoada, apertando as mãos à força das lágrimas que teimavam em espreitar (e acho que não fui muito bem sucedida no disfarce...). Daí à leitura integral do livro foi “o passo de um anão”...

Posso dizer que a leitura não é simples e está longe de ligeira (o que, na minha opinião, só abona a favor do livro). Pelo contrário, é trabalhosa e requer uma grande envolvência, quase íntima, com cada palavra.

Este livro não se deixa florir com o simples gesto de folhear as páginas, é preciso tempo para ler até se ouvir o ritmo certo de cada estrofe, que não se impõe, deixa-se descobrir a quem o quer encontrar. Mas não é essa, afinal, a magia da verdadeira Poesia?!

É como se José Luís Peixoto quisesse ter a certeza que quem lê os seus poemas se dá ao trabalho de realmente os ‘ouvir’. O hábito de ler silenciosamente é razoavelmente recente na nossa sociedade e no caso deste livro, e porque não dizer em todos (ou pelo menos quase todos), essa modernidade faz perder parte do encanto do texto escrito. Dá muito mais trabalho e é muito mais difícil ouvir as palavras ditas de lábios cerrados...

Tive de lutar com a minha dificuldade em escolher uma pequena amostra “Como isolar um sabor de um bolo de várias camadas feito?” A escolha inicial era o poema que já referi, mas essa por tão óbvia peca pela facilidade. Assim deixo aqui este raminho de cheiros para aguçar o apetite.

“ainda que tu estejas aí e tu estejas aí e
eu esteja aqui estaremos sempre no
mesmo sítio se fecharmos os olhos
serás sempre tu e tu que me ensinarás
a nadar seremos sempre nós sob
o sol morno de julho e o véu ténue
do nosso silêncio será sempre o
teu e o teu e o meu sorriso a cair (...)”

                      José Luis Peixoto



Leitora convidada: Liliana Lima 
Fundadora dos Contos da Lua Nova. Contadora de Histórias e Formadora 

domingo, 4 de novembro de 2012

O livro das escolhas cósmicas.


O Universo é o livro de todas as escolhas cósmicas, o registo de todos os acontecimentos que cinzelam o corpo do cosmos. Cosmos em contínuo estado de transformação, global e local, que é o nosso porto de abrigo e o oceano das indagações cósmicas da civilização humana.   

Uma narrativa sobre a história do Universo é necessariamente uma história das ideias, descobertas e técnicas que conduziram ao estágio actual do conhecimento científico sobre o Universo. Assim, o Livro das Escolhas Cósmicas é também um relato do esforço da humanidade para entender o cosmos, dos mitos da criação à revolução científica, desta às descobertas da radiação cósmica de fundo e da aceleração da expansão do Universo. Descobertas estas que conduziram ao desenvolvimento das ideias mais recentes sobre a origem e evolução do Universo tais como os mundos-membrana, a inflação, a matéria escura, a energia escura e que convivem com objectos e ocorrências igualamente extraordinárias como os buracos negros, os núcleos activos de galáxias, as explosões de raios gama, etc.


terça-feira, 30 de outubro de 2012

O CRISTAL DAS PALAVRAS




A cidade de Trieste fica num cruzamento de países e culturas. Ali se encontram influências da cultura italiana, da cultura austríaca, da eslovena e talvez ainda alguns farrapos de cultura francesa, alemã e sérvia.

Ali nasceram, e da alma da cidade fazem âncora, alguns escritores notáveis como Italo Svevo, Claudio Magris ou Giani Stuparich. E já agora, o realizador Federidco Fellini também é triestino

A Editora Ahab tem vindo a fazer um trabalho que devemos sublinhar ao dar a conhecer grandes escritores menos conhecidos. É o caso de Stuparich com este seu conto intitulado "A Ilha".

Diz Elvio Guagnini no posfácio que uma das definições de conto é a de que o conto - ao contrário do romance - deveria representar o ponto culminante, a cena decisiva de um enredo mais longo, enquanto o romance apresentaria as suas etapas de forma articulada.

Não será exactamente o caso de "A Ilha". Aqui, um pai à beira da morte convida o filho que vive na montanha a acompanhá-lo a visitar a Ilha onde ambos nasceram no Adriático e pouco conseguimos adivinhar da vida dos dois para trás para além de um ou outro salpico que nos saltam de Teresa, por exemplo, a dona da casa de hóspedes que adivinhamos antiga amante do pai. Muito pouco.

Porque é que o filho vive na montanha, não sabemos. Nem porque será que se sente tão desprotegido naquele verão mediterrânico cheio de luz e azul, de vegetação rasteira, e do canto permanente das cigarras? Só por saber o pai à beira da morte e querer protegê-lo e adiar esse momento terrível? Só por querer falar como ele, dizer-lhe a verdade do seu estado, como se o pai não soubesse?

O pai era marinheiro. Correu mundo e pouca atenção deu à família. Adora o mar. Adora a sua ilha. Quer despedir-se dela. Quer pescar e receber o sol na pele. E quer passar ao filho uma última imagem de si. E talvez também passar-lhe o vírus do amor por aquela ilha.

O filho vai vendo o pai a perder forças. E não quase história a contar senão este caminho lento e penoso que nos vai sendo dado pela escrita brilhante do autor.

Esta ilha tem qualquer coisa do nosso Algarve no Verão, quando o turismo não tinha ainda estragado quase tudo.

E o trabalho de Stuparich é escrever com volúpia e espanto esse espaço intenso, esse calor abrasador, esse céu e esse mar excessivos, enquanto as suas personagens seguem passo a passo o caminho da morte que já irá acontecer depois do fim do conto, depois do barco que se afasta da ilha para levar pai e filho de volta ao continente.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A BRILHANTE FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO


Ian McEwan é suficiente conhecido e aplaudido para que seja necessário enaltecer ainda mais a sua obra. Pertence, aliás, a uma geração de belos escritores ingleses como Martin Amis, Julian Barnes, David Lodge, Jonathan Coe, entre outros.

Não somos ingénuos quando vamos ler um livro. Sabemos o tema do livro, conhecemos alguma coisa sobre o autor, foi-nos aconselhado por um amigo, lemos uma referência num jornal. Podemos falar imenso sobre livros que nunca lemos como dizia Pierre Bayard.

Contudo, os bons livros têm o condão de nos surpreender quando os vamos ler apesar de quase já sabermos tudo sobre eles.

Foi o que me aconteceu com “Mel”. Tinha lido várias recensões altamente elogiosas, tinha e tenho o trabalho do autor em grande consideração.

A expectativa era alta, portanto.

Devo dizer, no entanto que ao fim de umas 50, 100 páginas talvez, me sentia um pouco decepcionado em relação às tais tão altas expectativas.

A prosa era sólida, o ritmo consistente e sólido mas… A história não me levava aos píncaros do prazer da leitura. Parecia-me uma coisa a andar demasiado em círculo fechado. E vinha-me uma ideia permanente à cabeça: isto é demasiado inglês.

Serena, uma licenciada em Matemática jovem e bela, filha de um bispo anglicano, leitura furiosa de romances, torna-se amante durante um Verão de um professor universitário muito mais velho que a inicia no pensamento conservador e a encaminha para os serviços secretos, o famoso MI5, antes de desaparecer de forma algo brutal da sua vida.

Tudo se passa no ano de 1972, já na ressaca dos desmandos dos anos 60, durante uma grave crise do petróleo.

Serena debate-se tal como as colegas para se afirmar sendo mulher no mundo masculino dos serviços secretos.

Sabe da morte do seu ex-amante e é encarregue de uma missão invulgar, acompanhar e apoiar um jovem romancista de cariz conservador e anti-soviético ou anti-socialista, no âmbito da tentativa de criar um ambiente cultural
não influenciado pela esquerda europeia.

Serena apaixona-se pelo escritor e debate-se com o problema de lhe confessar ou não a sua verdadeira profissão.

Quando as coisas estão em banho-maria e o romance parece caminhar para um final mais ou menos interessante mas que na aparência se anuncia algo banal, o autor faz uma tremenda e brilhante guinada, consegue fazer subir a narrativa a um ponto inesperado e notável, confere à sua narrativa uma dimensão absolutamente inesperada, em que a ficção se desdobra em ficção da ficção e nos faz perceber que nós, leitores, fomos manipulados e que nada é o que parecia ser.

Leiam, por favor, caros amigos e digam-me depois o que acharam. Estou convencido que este romance é um doce e extraordinário repasto para qualquer viciado em leitura



sexta-feira, 19 de outubro de 2012

"O que não pode ser dito/ guarda um silêncio/ feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//(...)" Manuel António Pina


Paris Nunca se acaba
Enrique Vila-Matas
Teorema


Algures no meio da leitura não pude deixar de me lembrar do filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen. Um catalão em Paris acha parecer-se, sonha ser, o seu escritor fétiche Hemingway. O narrador reproduz a experiência do próprio autor, em Paris, igualmente na década de setenta, hospedado num esconso quarto no prédio de Marguerite Duras.          

Citando Pascal “É quase impossível fingir que se ama sem se tornar logo em amante”.

Talvez fingindo ser escritor, escritor se torne. Talvez em Paris esse feitiço seja possível. E assim vamos acompanhando as desventuras de quem querendo escrever o seu primeiro livro, nos vai contando como, sentindo-se parecido com Hemingway, tendo-o como referência desde que aos quinze anos leu um livro dele, está em Paris onde foi pobre mas, ao contrário dele, infeliz.

A sua vida na cidade leva-nos por casas, ruas e cafés, através das memórias que eles guardam dos escritores. O livro exige alguma cumplicidade do leitor no reconhecimento dessas memórias, dos seus actores e da obra que produziram. Não ter esse conhecimento não impede a leitura mas empobrece-a, naturalmente.
Todos esses passantes, escritores de maior ou menos sucesso, são imperfeitos. De algum modo todos esperam que a cidade luz os envolva e eleve na sua arte, na sua mais ou menos angustiada existência.

Entramos nos bares onde ele entra para estar nos lugares onde os escritores entraram, conversaram, foram (in)felizes.
Num ”café simpático quente assado, amável” “Paris é uma Festa” mas nem sempre, nem para todos. Apesar de haver muitas raparigas bonitas a poderem deixar em brasa um jovem putativo escritor, um pouco idiota, a querer num café com leite beber a inspiração de Hemingway, naquele bar do Boulevard Saint Mitchel.

Encontraremos Scott Fritzgerlad, Garcia Lorca ou Zelda, Graan Greene...Rilke,Jules Renard… E tantos outros.

Há episódios breves que ficam na memória. Como a história de Jeanne Hébuterne, amante de Modigliani que se suicida após a morte deste, grávida de nove meses, deixando-se cair de costas de um quinto andar. E um dia ao passar na rua será impossível não olharmos para cima espectando a queda de um corpo desesperado, desamparado pela perda do seu amor.

Passamos pelo café Flore…
Encontramos Mallarmé… Quem sabe um gato.
Entramos no Café Blaisse...

Também o leitor é um pouco “flâneur” nas  ruas de Paris.

Num momento apetece largar o livro e entrar no de Fritzgerald, ao passar pelo conto “O gato à Chuva”.
Em outro acompanhamos a compra de uma mesa carcomida no Marché au Puces, para que o narrador coloque a máquina de escrever, escreva, a sua obra: “A asesina Ilustrada”, que se vai arrastando na busca de ideias e de regras para o processo de escrita. 
O livro de Vila-Matas é ele próprio um arrastamento. Por vezes brilha, por vezes apaga-se. Pede-nos cumplicidade. Mas não é totalmente generoso. O ritmo da escrita resulta, por vezes, um pouco frouxo. Li uma tradução. Não ficou a ganhar. O original aguarda-me algures, numa biblioteca dos nossos vizinhos, para tirar as teimas finais.

Testemunhamos a vertigem do escritor na proximidade com os seus heróis. A admiração é algo que fica quando a realidade desconstrói o herói. 
O jovem pede conselhos a Duras que lhe entrega um papel com recomendações óbvias. Conta-nos o narrador. Será que o fez o autor? Quem sabe? A autobiografia e a ficção confundem-se.
No dia 29 de Abril de 1970 compra papel e um envelope e escreve a mesma carta que Rimbaud escreveu no dia 29 de Abril de 1870 a Téodhore de Banville. A carta é devolvida e acontece "uma noite à espera de Rimbaud". 
Quantos seres fez Rimbaud esperar na noite, na vida? Há uma longa história de cadáveres, de literatura falhada na espera de ser Rimbaud.

Há o cinema. "O Último Tango...", "India Song", "Johnny Guittar"... 
Paris pode dizer, como Vienna e Johnny: “Quantas mulheres amaste?” “Tantas quantas os homens que esqueceste.”

Atravessamos o momento da morte de Franco. Há uma geração que vai partindo que fala dele. Franco é como uma grilheta. A que segue talvez  pergunte um dia Franco quem? Franco porquê? Se houver a pergunta haverá uma resposta, haverá um entendimento da História. Curiosamente no dia em que lia a parte em que o narrador conta como festejou a falsa morte de Franco moribundo, anunciada, por engano, por Santiago Carrilho, tinha morrido Santiago Carrilho. O que é que isto acrescenta ao livro? Nada. Apenas serve de exemplo de como a leitura nos devolve as leituras irónicas do mundo.

Há a deliciosa e algo trágica história de Tomás Moll. O desperdício de uma vida é sempre uma tragédia. Embora muitas vezes a tragédia maior de uma vida seja não ter tido tragédia alguma e passar incólume pela vida e pelo mundo.Tomás Moll é um maiorquino sem família, herdeiro abastado, que se auto exila em Paris, a cidade dos seus sonhos. Sonha escrever um livro que terá como titulo “Como ser o menos possível parecido com Pio Baroja mesmo que nos tenhamos exilado em Paris”.
Já não sabia eu porque guardava “El Arbol de la Ciência” de Baroja lido há muitos anos. Tantas vezes me passou pelas mãos em arrumações sem que a memória me levasse a (re)abri-lo….
Um dia Moll descobre ao ler Baroja, também em Paris esteve exilado, que afinal gosta dele mas o seu propósito de vida continua: tudo podia ser elegante em Paris menos parecer-se com Pio Baroja. E continua irrealisticamente a tentar a sua tarefa.

Não me interessou muito o final. Talvez porque, na realidade, o livro tem vários finais, os de todos os que atravessam o livro, isso nos desinteressa um pouco do destino do narrador.
Os escritores já não se arrastam pelos cafés. Mas em Paris a geografia e os cafés ainda lá estão. E quem escreve continua a cruzar-se com os seus fantasmas em qualquer lugar onde abra os livros.

Fechado o livro regressa-se à realidade como se vindos de uma viagem a Paris. Imagens sensações, coisas que sabemos, que sabíamos, que ficámos a saber melhor mas não o suficiente. Coisas de que duvidamos, que anotamos para saber mais.Lugares onde havemos de ir ou voltar.
Tal como o filme de Woody Allen talvez não uma grande obra mas atravessada por grandes vultos e grandes ideias. Ou que assim parecem, grandes, se vistos à luz de Paris.

“Paris é Uma Festa” e “Paris Nunca se Acaba”.

Em 1961 Hemingway cede à loucura, à incapacidade de escrever e a uma espingarda de dois canos. Para entender tal dor e desespero é preciso um dia ter escrito.

Acaba a vida, um dia… A dos poetas. 

Morreu Manuel António Pina…
Na tarde em que acabava este texto: 19 de Outubro.

domingo, 14 de outubro de 2012

MEMÓRIA E LITERATURA


Rentes de Carvalho é um escritor reconhecido tardiamente em Portugal quando já era um nome dos tops literários holandeses. E cabe-nos agradecer à Quetzal que tem vindo a publicar a sua obra completa e a permitir-nos conhecer uma obra muito consistente, intensa, com um olhar duro sobre o Portugal rural e, muito frequentemente, sobre Trás-os-Montes.

O autor teve uma vida rica em experiências. Por via da perseguição política exilou-se vivendo em terras e continentes variados, S. Paulo, Nova Iorque, Paris e finalmente na Holanda Jornalista, fez a sua carreira académica na Holanda onde se tornou professor universitário e onde inicialmente publicou a maior parte da sua obra.

A riquíssima e variada experiência de vida de Rentes de Carvalho vem constituindo parte importante do chão sobre o qual constrói a sua ficção.
Muitos dos contos que fazem parte deste livro resultam justamente, parece óbvio, de experiências vividas. E é também óbvio que o autor não se limitando à reprodução, parte do vivido para o ficcional ficando, assim, com um pé na memória e outra na banca de trabalho do escritor.

Sentimos que por vezes se aproxima mais da narrativa de uma história vivida, outras, qual titeriteiro, pega nas personagens e fá-las dar as mais inesperadas reviravoltas.

É aliás na construção das personagens que os contos deste livro brilham. No conhecimento profundo que Rentes de Carvalho tem dos portugueses, das suas particularidades, dos seus tiques, das suas grandezas e ridículos .

Podemos dizer que estes contos constituem um painel curiosíssimo, por vezes trágico, por vezes irónico, dos portugueses dos anos 40, 50 e das suas peculiaridades.

O ritmo narrativo seguro , o devaneio controlado, a descrição cuidadosa, o diálogo riquíssimo envolvem o leitor e dão-nos vontade de continuar a ler o autor muito para além do livro.

Os contos e os romances de Rentes de Carvalho mostram que a preservação da memória colectiva é feita pela literatura de forma por vezes tão ou mais rica que a própria História.

E se o autor faz esse trabalho de viagem ao passado também nos permite entender e reflectir sobre a permanência das tipologias no modo de ser português.



domingo, 7 de outubro de 2012

FALAR POR QUEM NÃO TEM VOZ



Que belas surpresas a literatura tem volta e meia para nos dar!.

Não conhecia a obra deste autor peruano. Mal teria ouvido falar dele.

Graças às Edições Ahab surgiu a tradução de dois livros dele. Comecei pelo que em segundo lugar viu a luz do dia: “A palavra do Mudo”. Contos. Deliciosos.

São pequenas narrativas construídas como mandam as regras, digo eu, como se houvesse regras na arte de contar histórias.

Escrita segura e sólida que se espraia em torno de pequenos acontecimentos, sem pressas nem sustos. Tudo o que acontece parece calmo e normal, sem nada de extraordinário. Podíamos deixar a história a meio porque aparentemente não acontece quase nada de significativo. No entanto, a arte do escritor leva-nos presos pelas palavras até ao final

E aí reside um aparte importante da arte do conto: conseguir um final que feche a história, que a torne num tempo e num espaço que se resolve numa viagem circular. E Júlio Ramon Rybeiro é um mestre.

“A Palavra do mudo”, título escolhido para esta colectânea vem do desejo do autor de dar voz aos que a não têm. Com poucas excepções, as suas personagens são tristes falhados, pessoas que levam as suas pequenas vidas e os seus pequenos sonhos envolvidos numa nuvem de melancolia. E o extraordinário trabalho do autor é, justamente, tornar essas personagens em gente. Gente falhada. Gente marginal mas de uma marginalidade apagada. Gente que aceita pouco. Gente que sonha pouco. E que mesmo assim, quando sonha, vê os seus sonhos esboroar-se como é o caso do homem que sonha o amor com a dona de um café vazio às duas da manhã e depois de tentar pagar esse amor arrumando as muitas mesas de ferro da esplanada, acaba por ver fechada a porta que o deixa de novo na rua.

O júbilo de quem lê estas histórias não está nas personagens que por vezes nos arrepiam e fazem quase tremer. O prazer desta leitura está na mestria da escrita, no ritmo, na arte de contar histórias de mudos em que Júlio Ramon Rybeiro era seguramente um mestre.



terça-feira, 2 de outubro de 2012

DESDE QUE O SAMBA É SAMBA


"Há várias coisas que parecem ser o que segura tudo mesmo de facto. Uma delas é juntar para cantar e dançar, justo que na arte não existe nada que possa menosprezar um tico de grão que seja do humano"

("Desde que o samba é samba")

Uma das piores formas de abordar um livro é definir um padrão de escrita desejado antes de começar a sua leitura. Partir do preconceito. Do pré-conceito. Não estar nu e preparado para ser tomado pela surpresa.

Devo confessar que Jorge Amado me deixou uma marca fortíssima. Em jovem  li  tudo ou quase tudo que o que grande escritor baiano escreveu. 

Depois cruzei-me com a escrita de muitos outros escritores brasileiros. Clarice Lispector, Tabajara Ruas, Érico Veríssimo, Fernando Veríssimo, Nelida Piñon, Ruben Fonseca, Patrícia de Melo, João Ubaldo Ribeiro e muitos mais. E dos mais recentes tenho na pilha das urgências 2 ou 3 livros de Adriana Lisboa.

Mas preciso sempre vencer a (reconheço que errada) expectativa de encontrar características semelhantes a Jorge Amado em cada livro brasileiro. Ternura, ironia, malandrice, ingenuidade… Talvez um certo tropicalismo que sempre me arrastou ao prazer de uma língua que partilho e me é devolvida com açúcar na ponta.

Mas há outros Brasis e outras escritas brasileiras. E levo sempre algumas páginas até deixar de lado essas falsas expectativas.

Só que desta vez as expectativas eram fortes porque o tema era primo de muitos dos temas de Jorge Amado.

Os malandros do Rio de Janeiro, 1928, prostituição, Candomblé, Umbanda e samba.  A história de um triângulo amoroso entre um malandro negro, Brancura, a prostitura Valdirene e o português Sodré. 

Tudo isto num cenário que sublinha o resultado do fim da escravatura, e o desenvolvimento de uma cultura negra com forte influência baiana. 

Mais ainda, o autor faz entrar personagens reais pela ficção. Grandes autores de samba como Ismael Silva. Poetas como Manuel Bandeira. Cantores, escritores, etc, etc. O próprio Brancura é uma personagem simultaneamente real e ficcionada.

O objectivo assumido pelo escritor Paulo Lins é o de contar, nesse cenário, o nascimento da primeira Escola de Samba do Rio.

Paulo Lins viveu a infância no bairro onde tudo se passa, o Estácio. E é autor do romance “Cidade de Deus” que me dizem ser notável e que não li, embora tenha visto o filme. Mas tenho pena porque sei bem que um bom livro é sempre, com raríssimas excepções, muito  melhor que a sua passagem ao ecrã.

Este livro é duro. Não fica fica pelo bonitinho. Pelo postal ilustrado. Mostra um mundo violento. Com linguagem violenta. Com gente que anda perdida à procura de si própria.

São os pais ou avós das favelas que cresceram e tomaram conta da Cidade Maravilhosa e cuja terrível teia, agora, os governos, e muitas outras instituições, tentam encontrar caminhos para desfazer.

Com tudo isso e muito mais, Paulo Lins envolveu-me, arrastou-me, trouxe-me preso vários dias a fio pela força do seu verbo. Aprendi muito sobre o Brasil E sobretudo sobre a influência da cultura africana trazida pelos escravos. E como essa cultura se desenvolveu, transformou e tornou num pano de fundo de tremenda importância, quer na música, quer na religiosidade, quer na interligação da literatura com a cultura popular.

O objectivo do autor é ambicioso. E complexo. E sabe-se que, certamente por isso mesmo, levou cerca de 10 anos a escrevê-lo.

Senti durante a leitura que a realidade e a ficção tropeçam por vezes uma na outra. O livro arranca em cima da ficção e acaba nos braços da realidade, deixando a ficção atenuar-se, morrer na areia, por assim dizer.

Há momentos deliciosos como o diálogo dos malandros com os polícias que querem proibir o samba na Festa de nossa senhora da Penha.

E há, no final, uma ideia que me encanta. A de Valdirene que, no final foge à zona do baixo meretrício e  tem dois filhos gémeos, um branco e um preto, filhos do preto Brancura e do branco Sodré. Metáfora deliciosa da própria história do Brasil.

E pronto. Eu, se calhar, gostava que este livro fossem dois. Um de ficção. Outro de História do samba e do Candomblé e etc.

Mas também penso que a História tem muito mais graça quando é olhada por dentro do seu acontecer, com olhos de gente, quer seja gente real, quer seja gente inventada. Mas sempre gente pois é de gente que se faz a boa literatura.


sábado, 29 de setembro de 2012

DE NOVO GUILHERME CENTAZZI

Guilherme Centazzi – o renascido




Já aqui falei, em texto anterior, de O Estudante de Coimbra, ou relâmpagos da história portuguesa de 1826 a 1838, de Guilherme Centazzi, (Lisboa, Planeta, 2012), e da agradável surpresa literária que ele é. Mas há ainda outro aspeto surpreendente, que é o que se refere ao seu esquecimento desde 1861 até hoje, tendo em conta que revela evidentes qualidades literárias. O facto de ter sido descoberto por acaso por Pedro Almeida Vieira é revelador de como o esquecimento estratégico pode ser mortífero. É certo que ninguém garante que seja o resultado de uma estratégia, como se faz hoje e certamente sempre se fez, mas parece, ou é, pelo menos, uma hipótese a ponderar.
Na verdade há aqui uma questão, com duas vertentes, que merece reflexão, e que irá por certo ser tema de análise e de debate: a sua modernidade, por um lado, e, por outro, o esquecimento a que esteve votado até agora. Como entender estes dois factos em simultâneo? Penso que se devem colocar as duas perguntas em simultâneo, porque se ele não tivesse qualidade nem modernidade, era natural que tivesse sido esquecido. Mas, sendo evidentes estes dois aspetos, o esquecimento surge como muito mais difícil de explicar e transforma-se num problema mais vasto porque implica toda uma cultura, a nossa, e algumas das suas características.
Pedro Almeida Viera considera O estudante de Coimbra o primeiro romance moderno português, visto ser anterior (1840) aos marcos habitualmente considerados do nosso romantismo literário: O Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, de 1844, e O Arco de Santana e Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, de 1845 e 1846, respetivamente.
Por outro lado, o realismo das descrições, a naturalidade dos diálogos caracterizados, como diz Fátima Marinho no posfácio «pelo estilo popular e coloquial, sobretudo (…) com interlocutores do povo», a vivacidade das descrições, as peripécias de muitas situações, a distância que cria em relação ao estereotipado das narrativas setecentistas, faz dele um livro moderno, já dentro dos nossos horizontes e padrões estéticos. De algum modo até antecipando a modernidade, como se, embora integrando-se no romantismo e já com certas características do realismo posterior, passasse por cima de ambos vindo aterrar na literatura atual, por uma forte inclinação para a irreverência, o gosto pelo cómico das situações e as deambulações opinativas, numa torrente verbal mal dominada e sintaticamente irreverente, embora correta, como se o autor corresse atrás da própria pena e com dificuldade de a parar. Isto é, fazendo um arco, ou seja, indo do pícaro e aventuroso de romances como O D. Quixote, de Cervantes, O Gil Blas, de Santillana, A vida e as opiniões de Tristram Shandy de Laurence Sterne, e até o Manuscrito encontrado em Saragoça, de Jan Potocki (com as devidas distâncias literárias, temáticas e até volumétricas), passando pelo romântico das relações amorosas, da visão do feminino, dos ambientes tenebrosos e do maniqueísmo das personagens, até uma certa liberdade formal e uma desenvoltura descritiva próximas do que atualmente se escreve.
Não se percebe, pois, por que razão nunca é referenciado pelas elites do seu tempo, tendo estado morto durante cento e setenta anos. Para explicar este mistério Pedro A. Vieira formula algumas hipóteses:
O não lhe terem reconhecido a nacionalidade portuguesa, quando é sabido ter nascido no Algarve, ele o diz e tem orgulho nisso;
ter-se, talvez, catalogado o livro como uma obra de memórias de um estudante de Coimbra, envolvendo-o naquela imensa bibliografia coimbrã onde há de tudo, e não dando pelas suas qualidades literárias;
ter sido reduzida a tiragem do livro, e de nula distribuição, como ainda ocorre;
e, sobretudo, ser demasiado crítico para com muita gente que era figura grada por altura da publicação.
Para lá desta última razão, a mais plausível, talvez haja outras. Se o compararmos com Herculano e Garrett, é óbvia a aparente falta de “acabamento” literário, o que talvez o desqualificasse aos olhos dos contemporâneos, tal como uma certa desformalização, que a irreverência crítica e a vivacidade do autor impõem à narrativa, o qualificam à nossa apreciação contemporânea. Mas, vendo assim a questão, somos tentados a colocá-lo mais na linha de Camilo do que na que vai de Garrett a Eça de Queiroz. Mas Camilo é uma árvore frondosa, impossível de ignorar, o que não acontecia com o arbusto Centazzi, irreverente, brincalhão, ocupado com muitas tarefas, desde médicas a musicais e a políticas, não dando grande importância à sua obra literária, e, ainda por cima, ou sobretudo, vivendo lá para o Reino dos Algarves, antes de Fontes Pereira de Melo e de todas as modernidades comunicantes.
Por outro lado, e quem sabe até se principalmente, a vivacidade da escrita, o pícaro de certos episódios, a incapacidade de resistir às situações cómicas e de as descrever com impetuosidade e graça, terão favorecido a marginalidade da sua obra literária em relação à de outros concorrentes mais famosos. Enfim, tudo isso talvez possa explicar o “esquecimento” a que o pensamento dominante e o gosto do tempo o votaram. Somos demasiado “sérios” para apreciar escritores deste tipo, apesar do dramático daquelas situações e do humanismo que perpassa pela obra.
Trata-se de uma hipótese, mas sabendo como funcionam muitas elites, como a “seriedade” sempre dominou a nossa cultura judaico-cristã, como abominamos mais o humor que Maomé o toucinho e como fugimos mais às críticas que o Diabo à cruz, talvez a hipótese não seja insensata.

(Este não é o Guilherme. Mas tem graça)

João Boavida

sábado, 8 de setembro de 2012

“Aparentemente/existe um número infinito de seres vivos/que seguem a lei da probabilidade//O astrónomo pode calcular/onde se encontrará o planeta Júpiter em três mil anos./Mas nenhum biólogo pode prever/onde a borboleta pousará.” Affonso Romano de Sant’Anna


Escolhas

Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em Belo Horizonte, em 1937. Foi professor de Literatura em universidades de vários países e um activo participante dos movimentos de vanguarda no Brasil na década de sessenta e setenta. A sua tese de doutoramento versou a poesia de Drummond de Andrade: “Drummond, um gauche no tempo”Drummond que o próprio Affonso substituiu como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. De 1990 a 1996 esteve à frente da Biblioteca Nacional. Foi o criador do sistema Proler (Plano de leitura no Brasil) e do programa “Uma biblioteca em cada município”. 
Affonso Romano foi e é um personagem interventivo na história do livro e da leitura que muitos tiveram oportunidade de ouvir em Beja, no decorrer das Palavras Andarilhas onde foi um dos convidados. (http://www.palavrasandarilhas.org/)



Ouvi-lo tornou, mais uma vez, claro que andamos há mitos anos a ignorar a importância dos livros e da leitura. Apesar de concordarmos, avançamos, paramos e recuamos como se pudesse ser uma questão intermitente e secundária. Mas é um problema caro, duplamente caro, na sua importância e na factura que pagamos ao negligenciá-lo.
Mas retomo a sua poesia que por isso o trouxe aqui. 
Confesso que a não conhecia, não está publicada em Portugal. Apesar da língua comum assim acontece com muitos. Uma realidade que tarda em mudar por falta de estratégias e generosidade para percorrer mutuamente esse caminho.
No Jardim Público de Beja, o lugar excelente onde decorreram os três dias das Palavras Andarilhas, do desconhecimento passei à descoberta. Havia alguns livros seus vindos do Brasil e neles parei sentada numa providencial cadeira, caso não havia a relva que cresce devagar, a tempo certo e sempre nos devolve a calma que a ausência de verde e de tempo nos tira… Parei, dizia, a ler umas quantas páginas. Não é que hoje em dia a Amazon não nos permita recebê-los, tê-los até a um preço mais simpático que o encontrado nestas feiras ocasionais mas nada se compara ao namoro, da leitura página a página com o toque dos dedos. Assim, entre quatro exemplares de poesia, escolhi esta “Poesia Reunida” de 1965 a 1999.



Foi uma escolha algo representativa no meio de uma vasta obra virada para vários mundos de fora e de dentro do Homem, do homem e da mulher, sempre escrita de um ponto de vista masculino mas numa visão deslumbrada pela pluralidade do feminino. Uma poesia debruçada sobre os problemas sociais e políticos de um país concreto mas que pode ser lida para lá dessa geografia e do tempo em que foi vivenciada e escrita. Alguns, soube depois, são muito conhecidos, foram música e bandeira como aconteceu com “A Implosão da Mentira” Ou “Que país é este?”

“Mentiram-me. Mentiram-me ontem/E hoje mentem novamente. Mentem/De corpo e alma, completamente./E mentem de maneira tão pungente/Que acho que mentem sinceramente. //(…)”

O país pode ser o Brasil, pode ser muitos outros…“Que país é este?”. Responda quem souber…

Diversa é a sua poesia. Como um canivete suíço nem tudo se usa da mesma maneira, e, decididamente, não ao mesmo tempo. Há poemas longos entrelaçados a realidades multifacetadas, de situação social e política, de história, da ciência ou do sentido profundo na existência do Homem. Outros poemas curtos e incisivos. 
Poemas onde as palavras balançam entre dois extremos, celebrando o amor. O espírito e o corpo nem sempre vistos com equidistância mas sempre com encontro e interdependência. E sempre uma visão de homem sobre a mulher que o inspira. Muitas vezes presente o Tempo, o que ele faz, o que estraga e o que acrescenta, o lado dinâmico das vivências na proximidade.

É impossível ler “Mitos e Ritos” sem pensar em Marina Colasanti com quem Affonso Romano partilha, há mais de quatro décadas, uma vida de cumplicidades várias. Ou ficar indiferente ao paradoxo de serem as palavras tão vitais no relacionamento amoroso mesmo quando se dispensam em "Silêncio Amoroso"

“Minha mulher/tem outra mulher com várias mulheres sob a pele./Tecelãs, pastoras, princesas/afloram de seus lábios e cabelos./Dispo-a com amor ela suspira./E é aí que fadas e dragões se batem/e em nossos corpos/a fantasia da carne/- delira.” 

"Deixa que eu te ame em silêncio./Não pergunte, não se explique, deixe
Que nossas línguas se toquem, e as bocas/e a pele/falem seus líquidos desejos.//Deixa que eu ame sem palavras/a não ser aquelas que na lembrança ficarão/pulsando para sempre como se amor e vida/fossem um discurso de impronunciáveis emoções."

A leitura de um livro que nos revela um poeta exige pausas para nos distanciarmos da pessoa e para ler o poema despindo-o e vestindo-o no momento da leitura com  novas emoções. Tem de ser lido em doses homeopáticas e em ritmos solares e lunares. É feita de palavras que tomamos para serem nossas, para ler passados e escrever futuros. Não escrevo sobre a poesia. Escrevo sobre um livro de poesia a que irei voltando para descobrir os seus sentidos, até encontrar o que resta desligado do que o poeta escreveu e sentiu. O próprio poeta o diz melhor que eu em "O Leitor E A Poesia".

“Poesia/Não é o que o autor nomeia/é o que o leitor incendeia.//Não é o que o autor pavoneia/é o que o leitor colhe à colmeia// Não é o ouro na veia/é o que vem na bateia.//Poesia/ não é o que o autor dá na ceia,/mas o que o leitor banqueteia.” 

Assim é, também, a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna, uma viagem que vale a pena fazer, que cada um fará à sua medida.

O Amor, A Casa E Os Objectos
O amor mantém ligados os objectos./Cada um na sua luz,/no seu restrito ou volumoso/-modo de ser.//O amor, e só o amor, arquitecta/paredes duplas, vigas, mestras, telhas vãs,/condutos e portas , justapondo/à luz interna o céu exterior.//Quando há amor, os objectos/tornam-se suaves./Não há asperezas/em suas formas e frases.//Como um gato, o corpo/passeia entre arestas e não se fere./Nada lhe é hostil./Nada é obstáculo/Nada está perdido/no trânsito da casa.//É como se o corpo, além de frutas e flores,/mesmo parado, criasse asas.//Daí uma certa displicência dos objectos na mesa,/ na estante,/ no chão./Como corpos derramados nos tapetes/ ou cama,/que esta é forma de estar/quando se ama./O que não for isto, não é amor./É ordem exterior às coisas./Pois quando amamos,/os objectos nos olham/sem inveja. Antes, secretas glórias afloram de suas formas/como o corpo aflora aos lábios,/e a poltrona, o pelo de sua fauna, aflora.//As casa têm raízes/quando há amor./Até ratos, baratas e cavalos,/além de plantas e pássaros/antenam vibrações nos subterrâneos/da casa de quem ama.//O corpo trescala aroma após o banho,/ almíscar flui dos sexos, alfazema/banha os gestos. Enrolados em suas toalhas/os corpos como as ondas/se desmacham em orgasmos no lençol da tarde.//Os objectos estendem os homens, quando há amor./Vão ás festas e guerras, e se acaso/suicidam caindo das prateleiras/São capazes de ostentar sua vida/mesmo numa natureza morta.//O amor não submete, o amor permeia/cada coisa em seu lugar e, como o Sol,/passeia iluminando as espirais de ouro e prata/ que decoram nossos corpos.// Não há limite entre a casa e o mundo, quando há amor./Os amantes invadem tudo a toda a hora/ e a paisagem do mundo à paisagem da casa/ se incorpora.// Affonso Romano de Sant’Anna.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

AS PALAVRAS E A CIDADE




“NOVA IORQUE”

BRENDAN BEHAN

Brendan Behan, irlandês, filho de uma família republicana, militante do IRA desde os 14 anos, preso por vários anos na Irlanda e em Inglaterra, veio a tornar-se num escritor largamente aplaudido e elogiado nomeadamente como autor de teatro.

Carlos Vaz Marques que dirige esta magnífica colecção da editora “Tinta da China”, resolveu introduzir este livro depois de ler uma referência entusiástica de Enrique Vilas-Mata que aliás se predispôs a fazer o respectivo prólogo.

O texto é inesperado. Behan, alcoolizado em alto grau e perto da mortecom 41 anos, escreve-o, ou melhor dita-o em várias sessões no famoso Hotel Chelsea, dando-lhe a forma de um divagação tão caótica quanto envolvente pelos bares e recantos irlandeses de Nova Iorque

Behan foi, ao que parece um herói irlandês. Membro do IRA aos 14 ano, preso aos 16, torna-se escritor e dramaturgo de sucesso depois de sair de prisão.

O texto resulta da sua deambulação por um sem número de irish saloons e de histórias da Irlanda e da sua gente que, fugindo à fome e à repressão britânica, tanto foi contribuir para o crescimento da cidade.

Assim nos leva o livro simultâneamente por uma cidade e por uma cultura, uma maneira de estar no mundo, uma forma de habitar a raiz comum.

É magnífica a arte de fazer viver uma cidade pelas palavras, dar-lhe um brilho duradouro, o que, cada um dos dois últimos autores que li ultimamente, fazem cada qual à sua maneira.

No entanto, aqui, Nova Iorque acaba por ser apenas o cenário da saga irlandesa na voz de um homem que habita um destino explosivo e curto.


domingo, 26 de agosto de 2012

Che cos'è la poesia?


"A partir de agora, chamarás poema a uma certa paixão da marca singular, a assinatura que repete a sua dispersão, de cada vez além do do logos, ahumana, escassamente doméstica, nem reapropriável na família do sujeito: um animal convertido, enrolado em bola, voltado para o outro e para si, uma coisa em suma, e modesta, discreta, próxima da terra, a humildade que sobrenomeias, assim te transportando para o nome além do nome, um ouriço catacrético, todas as flechas eriçadas, quando este cego sem idade ouve mas não vê chegar a morte."     

Jacques Derrida

Uma breve, porém sugestiva, reflexão sobre a poesia pela pena do influente pensador Jacques Derrida (1930-2004), o filósofo da "desconstrução" e criador de neologismos como "differance" (diferencia) que denota a impossibilidade da análise sem temporalização que não seja sincrónica e diacrónica.

De facto, em umas escassas páginas, o pensador que introduziu na filosofia a discussão de Goedel sobre a impossibilidade de se demonstrar a veracidade ou falsidade de todos os teoremas no contexto dum sistema matemático fechado, sintetiza a leitura da poesia "em duas palavras":

"1. A economia da memória: um poema deve ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja a sua extensão objectiva ou aparente …

2. O coração. Não o coração no meio das frases que circulam sem correr riscos pelos cruzamentos e se deixam traduzir em todas as línguas. Não apenas o coração dos arquivos cardiográficos, objecto de saberes e de técnicas, de filosofias, e de discursos bio-ético-jurídicos. Talvez sequer o coração das Escrituras ou de Pascal, provavelmente, nem mesmo, o que é menos certo, aquele que Heidegger lhes confere. Não, uma história de "coração" poeticamente envolta no idioma "aprender de cor", o da minha língua ("apprendre par coeur") ou uma outra, a inglesa (to learn by heart) … - um trajecto único de múltiplas vias."    

Certamente, uma lição a reter.
    

Orfeu B.

sábado, 25 de agosto de 2012

AMAR UMA CIDADE





“PARIS”

JULIEN GREEN

Filho de protestantes americanos nasce em Paris onde vive até à morte com excepção do período de cada uma das duas Guerra Mundiais e o do tempo de estudo universitário nos EUA.

Converte-se ao catolicismo em jovem. Assume-se como homossexual, duas características que se diz marcarem a sua obra.

É o primeiro estrangeiro a entrar para a Academia francesa. Morre com 98 anos.

O seu livro sobre Paris é uma delicada declaração de amor, um rosário de pequenas e muito frequentemente convidas observações de Paris. Pequenos textos, por vezes quase poemas.

Julien Green quase fica á porta de um outro texto que é o da história das personagens dos seus livros caminhando com o próprio autor na cidade que lhe serve de cenário para as suas vida..

Julien Green afirma:

“A não ser que se tenha perdido realmente tempo numa cidade, ninguém poderá considerar que a conhece bem.”

Estou de acordo e acabei o livro cheio de saudades de uma cidade a que também pertenço um pouco.