quarta-feira, 3 de julho de 2013

O TEATRO DA LEI


Com a prática deste blog tenho descoberto a distância que vai da leitura à escrita. E também como a escrita nos ajuda a consolidar a leitura. Quando lemos com o propósito de vir a escrver, mesmo que seja só para consumo própio, somos obrigados a ir mais fundo que o simples entretenimento

Por isso este exercício se torna por vezes difícil de manter sobretudo quando o dia-a-dia é balburdento e o tempo escasseia

A leitura não a deixo. Mas quando quero parar para escrever, ao fim do dia, não me sobra a felicidade da preguiça tão importante para estruturar o escrito. Por isso se acumulam as leituras com que quero infectar os amigos e os leitores deste blog e escaseia o tempo para tornar esse desejo em palavra escrita.

Parece que agora o tempo chegou Tenho muitos livros lidos de que quero falar. Pequenos e grandes prazeres que quero partilhar. E começo por "Os dois irmãos" do meu amigo Germano de Almeida.

Por volta sw 1976, a seguir à ind, deixando Maria Joana, a jovem esposa, na aldeia. Ao longo do tempo, André vai-ze afastando

3 anos depois recebe uma carta do pai a anunciar-lhe que o irmão mais novo se envolveu com Maria Joana desonrando assim não só o marido como toda a família.

André tem uma ternura especial pelo irmão e regressa à aldeia para tentar encontrar alguma solução pacificadora. Mas toda a aldeia, começar pelo pai, lhe exige que mate o irmão.

21 dias depois de regressar, André mata o irmão e é levado a tribunal acusado de fratricídio.

A narrativa é conduzida com mão de mestre por Germano de Almeida, num balanço que vai do julgamento aos acontecimentos que o provocaram e confronta as várias versões e testemunhos com a verdade, ou a possível verdade, na busca da resposta à grande dúvida: até que ponto André terá sido apenas a mão de uma justiça ancestral que se recusa a conjugar-se com os critérios de uma justiça moderna. E se André terá porventura de ser condenado à luz da justiça oficial, tornar-se-á um herói perante a sua famúilia e a sua aldeia.

A história é baseado em factos verídicos e Germano de Almeida foi na realidade o agente do Ministério Público que fez a acusação ao fratricida.

O que é brilhante é ter conseguido construir uma história concentrada e multifacetada, com um ritmo que nos agarra pelos colarinhos e que mostra como se pode narrar histórias verídicos não do lado da estrita realidade jornalística mas do lado do puro talento talento e da arte literária.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

"Estamos sós com tudo aquilo que amamos" Novalis

Leituras de Verão... Respigando bibliotecas.


O Tempo Esquecido”

de Anita Brookner.
Difel


A boa escrita de Anita Brookner que prende e desconcerta. Como se, até na sombra de dentro de casa, confortavelmente sentados numa voltaire, com água fresca ao lado, nos assolasse o sufoco e o cansaço de percorrer ruas em abafadas e quentes tardes de Verão. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

A Vítima




Há noites em que Nova Iorque é tão quente como Banguecoque. É como se o continente inteiro saísse do seu lugar e deslizasse para mais perto do equador, o implacável e cinzento Atlântico se tornasse verde e tropical e as pessoas que enchem as ruas se transformassem em bárbaros felás no meio dos majestosos monumentos da sua fé, cujas luzes, numa profusão estonteante, se fundiam incessantemente com o calor do céu. 

Numa dessas noites Asa Leventhal apeou-se apressadamente de um comboio na Terceira Avenida. Absorto em pensamentos, quase ia deixando passar a sua paragem. Quando a reconheceu deu um salto e gritou ao condutor:

- Eh, aguente aí, espere um minuto! 

Saul Bellow



Asa Leventhal é o protagonista deste romance de 1947, escrito numa linguagem directa e desprovida de ornamentos, muito ao estilo dos grandes romancistas norte-americanos, Hemingway, Faulkner e Steinbeck. Sendo um dos seus primeiros romances, parece-me inevitável que o autor de obras primas como Herzog, Jerusalém ida e volta, O planeta do senhor Samler, tenha sido influenciado pelos grandes romancistas do seu tempo. Porém, há neste romance, o embrião dum estilo muito próprio e da abordagem temática que permeia toda a obra de Bellow, nomeadamente a instabilidade psicológica dos personagens que não escapam à fricção da cultura europeia dos judeus radicados nos Estados Unidos e a cultura fluída, mutante e em contínuo estado de auto-destruição e reconstrução que caracteriza as correntes sociais duma América multi-cultural. 

Asa Leventhal é um desses personagens. Por trás da forma concreta e directa como aborda a vida e os seus problemas, há um homem emocionalmente frágil, extremamente dependente duma rotina invariante e com uma obsessão muito judaica de agir correctamente e de não causar o mal. Quando durante a ausência da esposa num longo e escaldante Verão recebe a visita dum conhecido que há muitos anos o havia proposta para um emprego e que agora o culpa por ter perdido o emprego, Asa é incapaz de defender-se da acusação e deixa-se enredar numa vil e despropositada chantagem.

Um livro dotado duma subtileza psicológica muito refinada, e embora não sendo uma das obras mais importantes do autor, permite-nos ter uma excelente perspectiva da evolução estilística e das preocupações deste grande autor norte-americano, Prémio Nobel de Literatura de 1976.          

Naturalmente, a obra de Bellow é muito bem conhecida e objecto de estudo em vários contextos, porém parece-me particularmente interessante a sinopse comentada da obra de Bellow por outro grande escritor norte-americano, Philip Roth:


Orfeu B.
     



sábado, 18 de maio de 2013

Teorema


Não são as coisas que parecem mais certas e simples
que se revelam, em conclusão, mais obscuras e difíceis?
Não é a própria vida, na sua naturalidade, 
que é misteriosa - e não as suas complicações?


Actualmente
lê O Banquete … Pode fazê-lo?
inteiramente de forma impune?
Enfim, na minha família, todos vivemos
na existência como ela deve ser;
as ideias através das quais nos julgamos a nós próprios
e aos outros, os valores e os acontecimentos,
são, como costuma dizer-se, um património comum 
a todo o nosso mundo social.


Ele doou aos operários a sua fábrica; vocês são agora os seus proprietários: mas não vos humilha o facto de terem recebido esta doação?

A participação no poder sobre a fábrica, obtida através de uma série de doações - ou melhor dizendo concessões - onde pode conduzir a classe operária?

A mutação do homem em pequena burguesia seria total?


Pier Paolo Pasolini

Depois de ver o intrigante filme, ler o livro, passados mais de 35 anos não deixa de ser experiência invulgar. Mas a perspectiva temporal não apaga a indelével marca da impressão inicial. Alguma surpresa inesperada? Não exactamente, pois quando se trata de um dos mais provocantes filmes do mestre do cinema italiano, Pier Paolo Pasolini, a surpresa é uma constante e já o sabíamos à partida. A inteligência do encenador e poeta nunca cessa de nos surpreender. Teorema, do grego, "exibição", "intuição" ou "teorema no sentido matemático", foi produzido em 1968, com roteiro do encenador; o livro surgiu anos mais tarde, e subsequentemente, o texto deu origem a uma ópera de Giorgio Battistelli e a uma peça de teatro em Holanda. 

O texto aborda a crise estrutural do capitalismo (que só hoje percebemos quão profunda) do ponto de vista da sua célula mais básica: a família. A acção tem lugar numa família da alta burguesia de Milão que ao receber um hóspede, colega do filho, vivência um processo de irreversível dissolução. O jovem hóspede seduz toda a família, a criada, o filho, a filha, a mãe e o pai, transformando-lhes no processo o sentido de suas existências. Pasolini pretende demonstrar que um relacionamento regulado pela pulsão básica do sexo, liberta os personagens dos condicionantes subjacentes à sociedade de classes, pondo a nu a fragilidade e a artificialidade da ordem burguesa. O relacionamento com o jovem, desarticula a identidade burguesa dos personagens e a transformação decorrente é necessariamente de ruptura. O pai decide doar aos seus operários a fábrica que lhe pertencia e alterar a sua orientação sexual. O filho procura encontrar uma nova identidade através da negação do que lhe estava anteriormente reservado por conta da sua situação sócio-económica e ser artista plástico. A filha fica paralisada, com o punho cerrado para não perder as suas lembranças mais fundamentais. A mãe mergulha na tristeza e em aventuras amorosas com homens mais novos. A criada volta à sua aldeia e entrega-se à sua religiosidade febril e auto-destrutiva.

Mas Pasolini, com a genialidade que lhe era característica, não nos permite  extrair da trama interpretações mono-cromáticas. De facto, apesar de ser essencialmente marxista a análise sobre a esterilidade da ordem burguesa, a leitura de Pasolini da realidade é mais rica e tem uma clara vertente de sacralização. Os personagens da trama são "tocados", "iluminados" pela presença e pelo relacionamento com o enigmático visitante. O gesto do industrial, paterfamilias e detentor dos meios de produção, tem a dimensão mística do despojamento auto-imposto de Buda, Francisco de Assis e outros. A religiosidade da criada é um retorno ao culto primitivo do milagre e da sua associação à auto-flagelação. 

Também na sua forma, o livro de Pasolini, não deixa de ser invulgar, dado que o texto é pontuado por belos poemas que guiam o leitor ao longo da narrativa. Um texto de invulgar beleza, cuja conclusão parece-me ser a mais óbvia: a inteligência e a sensibilidade de artistas como Pasolini fazem-nos muita falta.     

Orfeu B.



domingo, 12 de maio de 2013

LONDRES OU UMA VASTA CONSPIRAÇÃO PARA DESORIENTAR OS ESTRANGEIROS





Carlos Vaz Marques é o director desta magnífica colecção de livros sobre viagens, não das de turismo mas das outras, das que se fazem por dentro do coração, da inquietação, da curiosidade.

Enric González é jornalista e foi correspondente do El País durante vários anos em Londres. E sobre a cidade diz-nos ele:

"Há cidades belas e cruéis como Paris. Ou elegantes e cépticas, como Roma. Ou densas e obsessivas como Nova Iorque. Londres não pode ser reduzida a antropomorfismos."

Neste livro delicioso, que se lê de uma assentada, o autor passeia pelo espaço fíisico de Londres, ruas e praças, pubs e estações de Metro, museus e catacumbas. E viaja também pela História desta cidade mítica e tão cheia de História como de histórias e de literatura.

Com um notável sentido de humor, Enric González brinca com o que vê e ouve e, se o seu olhar vem de fora, a sua palavra mergulha apaixonadamente nos dédalos arquitectónicos e humanos da cidade para lhe cantar uma bela balada de amor.

Procure-se a a lógica de Londres e certamente não a encontraremos. González cita George Mikes quando afirma que:

"É preciso ter consciência de que uma cidade inglesa é uma vasta conspiração para desorientar os estrangeiros."

E conclui que:

"São precisos muitos passeios para percebermos a harmonia secreta dentro do caos."

O livro resume esses passeios que nos vão revelando o crescimento da cidade no tempo e as diferenças que vão caracterizando bairros e populações. E também nos leva pela organização espafúrdia da Casa Real, pelas origens dos Clubes de Futebol Londrinos, pelas histórias de Jack o Estripador, pela destruição do sistema de saúde inglês pela política ultra-liberal de Margaret Thatcher, pela estrutura e organização política do parlamento inglês, pelas ruas da City onde se resolvem os negócios do mundo, pelos pubs e pala diversidade de cervejas e whiskies, pelos hábitos e natureza da Igreja Anglicana, pelas memórias do período de ouro imperial que foi o do reinado da Rainha Vitória.

E de tudo podemos extrair uma atitude de ironia, de curiosidade, de estranheza, de respeito pela diferença. É assim que se conhece o mundo. Pelos nossos pés e também pela arte da narrativa de autores como Enric González.

(E a propósito, Carlos Vaz Marques diz-nos na introdução que há mais dois livros do mesmo autor com os títulos de "Histórias de Roma" e "Histórias de Nova Iorque", tendio este último recebido grandes e raros elogios de Joé Saramago. Fico ansioso pela tradução para português. Senão lá terei de os mandar vir de Espanha. Carlos, faça o favor de se antecipar e publique-os na sua colecção)



quarta-feira, 8 de maio de 2013

À BEIRA DA LIBERDADE





grande História é feita de muitas pequenas histórias.

Falamos do 25 de Abril, da maravilhosa chegada da liberdade, da festa de podermos falar abertamente uns com os outros, de nos abraçarmos e de sonharmos por vezes de formas abstrusas e delirantes, mas também esses delírios faziam parte da descoberta de um país que estava há 48 anos debaixo do ferro da ditadura. Da memória desses dias faz parte também o momento em que se abrem as portas das prisões onde imperava a tortura e o medo.

A História tudo isso vai registando com imagens, textos, análises.

Mas, a Joana Pereira Bastos não é historiadora, é jornalista. Está interessada nas pequenas histórias de que é feita a grande História. Histórias pessoais de alguns homens e mulheres que foram presos poucos meses ou poucas semanas antes do 25 de Abril e encerrados em Caxias numa altura em que a repressão se intensificava porque também a resistência crescia a olhos vistos.

A autora priveligia a emoção no seu processo narrativo. O lá por dentro dos que sofreram a tortura e depois se calaram porque muitos deles ainda hoje têm pesadelos, insónias, alterações psíquicas permanentes que os fazem tentar calar e esquecer a extrema dureza de uma polícia, a PIDE, que foi muitíssimo eficaz na destruição das pessoas que agrediu, torturou e humilhou.

É o documento humano que nos arrasta num apaixonante entretecer de dados factuais e relatos pessoais. A descrição das torturas, estátua, sono, agressões brutais. Documento precioso. Eu que o diga. Podia lá ter estado nesses dias. Companheiros meus por lá passaram. Vários dos presos de que o livro fala são amigos queridos. Nuno Teotónio Pereira, Conceição Moita, Luís Moita, José Manuel Tengarrinha... Tremi ao conhecer a história deles, o terror por que viveram, as dores que tiveram, as angústias por que passaram.

Poderia aqui trazer um sem número de pormenores mas recordo dois momentos que me emocionaram de forma diferente.

Durante o dia 25 de Abril, eles souberam que tinha havido uma revolução. Mas continuavam fechados e vários deles pensaram que podia tratar-se de um golpe de extrema-direita, uma "pinochetada". Durante a noite de 25 para 26 vários se prepararam mentalmente para enfrentar o fuzilamento. E só no fim do dia 26, já madrugada de 27, é que os portões se abriram para um tempo novo e tão esperado.

Outro momento, uma narrativa notável de um ex-preso que anos depois entra num restaurante e dá com o PIDE que o torturara a almoçar com a família. Vai ao carro buscar uma pistola para o matar. Quando regressa ao restaurante o PIDE já se tinha ido embora.

A democracia e a liberdade acabaram com as grades mas não com as dores e essas é bom que fiquem guardadas na nemória.

Obrigado Joana.

domingo, 5 de maio de 2013

A FORMA COMO SE ESCREVE



Há cerca de 30 anos, mais coisa menos coisa, o encenador José Caldas encenou esta "Vida íntima de Laura" no TAS de Setúbal. Não pude ver. Lamento. Mas fiquei com esta Laura na caixinha da minha curiosidade, um texto de Clarice Lispector.

Vi um outro espectáculo encenado por José Caldas, um dos espectáculos que mais me emocionou na vida: "Acende a noite" a partir de textos de Ray Bradbury.

Há poucos dias soube que é ele que vai encenar um texto meu ("El hombre") para o Teatro Jangada de Lousada. Que bom!

Penso nestas ligações misteriosas que a vida tece quando pego, quase religiosamente, na edição portuguesa de "A vida íntima de Laura" e a leio avidamente.

Por vezes, tão ou mais importante do que aquilo que se escreve é a forma como se escreve. "A vida íntima de Laura" é um exemplo excepcional da importância que tem a forma de contar de uma das mais notáveis escritoras da língua portuguesa do séc XX

Laura é uma galinha vulgar, simpática, com um pescoço muito feio, burra, que não pensa mas pensa que pensa, casada com o galo Luís que gosta muito dela.

Nesta história vulgar Clarice dialogando directamente com o leitor, inventando o leitor, faz dele um cúmplice na forma divertida e um tanto blasé como conta a vida de Laura sem nenhuma cedência ao mau gosto, ao bonitinho, ao didactismo. Nomeadamente levantando a possibilidade de Laura, a simpática Laura, acabar na panela no meio de molho pardo.

As ilustrações são deliciosas, amáveis. Se se pode dizer isso de um traço, de uma paleta de cores, de uma forma de ocupar a página.

E há que elogiar a editora, Relógio d'Água, pela edição de quatro dos livros de Clarice Lispector para crianças que são exemplares e que deveriam ser lidos atentamente por muitos dos nossos escritores para a infância



quarta-feira, 1 de maio de 2013

No Jardim das Paixões Extintas



Um quarto de século passado sobre os dias plenos da liberdade e do caos - a semana mais romântica do meu namoro com a história, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974 -, a memória trai-me, envolta na neblina melancólica das utopias mortas, tristes flores murchando no jardim das paixões extintas, folhas caídas sobre o caminho por onde vou, no surpreendente encantamento do último amor e da sua dorida subversão. Então, eu imaginava a semelhança com a outra cidade feliz, a do meu pai - Madrid na Primavera de 1936 -, outra pura ilusão que ele não me tinha contado, porque ainda não chegara ao fim do seu regresso à beira do Tejo, do começo da despedida e da imperfeita reconstrução da memória estilhaçada. 


Os tempos são outros … A realidade empurra-nos subitamente para o vazio a abarrotar de coisas, para o excesso, para o totalitarismo do dinheiro, do sexo, para o mimetismo, a indiferença, os riscos da salvação possível no instante em que se tornou a vida, essa certeza plena de presente, única e absoluta face do tempo.

Álvaro Guerra 


Um impressionante relato sobre a vida de personagens que protagonizaram o combate mortal entre o fascismo e o comunismo no século XX pela pena do jornalista, diploma e escritor Álvaro Guerra (1936-2002). Uma densa trama histórica e emocional descrita por um jornalista, alter ego do relato, que deslinda, através das memórias filtradas do pai, militante comunista e combatente pela causa republicana em Espanha, a forte ligação entre a paixão amorosa por uma combatente espanhola e a devoção pelo internacionalismo comunista. 

Uma intensa radiografia emocional da guerra civil espanhola, da crueldade franquista e do maquiavelismo estalinista; uma rica descrição da paixão carnal e da sua colagem à precariedade de vidas suspensas por uma guerra sangrenta num mundo encalhado no beco mais escuro da História. Uma descrição quase analítica da transformação das paixões até atingirem o hodierno hedonismo desprovido de dimensão histórica. Um retrato pungente das forças criativas libertas pelo 25 de Abril e da sua dissipação no individualismo e no consumismo. 

No Jardim das Paixões Extintas é indubitavelmente uma obra maior da literatura portuguesa contemporânea, um livro imprescindível para se compreender a dimensão trágica do mais conturbado século da História da  Humanidade.    

Orfeu B.


sábado, 27 de abril de 2013

MEMÓRIA DOCE E VIBRANTE





È uma obra muito interessante este livro de Memórias da Eugénio Lisboa, (Acta Est Fabula, Memórias I - Lourenço Marques, 1930 – 1947. Guimarães, Opera Omnia, 2012), dedicado tão sentidamente à cidade de Lourenço Marques que chega a agradecer-lhe o «ter existido para eu ter podido nascer nela», como diz no fim dos iniciais “Agradecimentos”. Chegado a uma certa idade, como diz Eugénio Lisboa, sentiu uma vontade irresistível de escrever as suas memórias mais recuadas, para seu gosto pessoal, pelo puro prazer de o fazer e sem outros intuitos que este seu deleite, considerando, por isso, que poucos ou nenhuns se interessarão por este trabalho. Penso que se engana. Primeiro, porque é difícil ceder às memórias quando elas, com o tempo, se vão decantando, ganhando tanta nitidez que têm que se expressar de alguma maneira, de tal modo sentimos que, nelas, está mais do que a nossa vida, somos nós mesmo que pelas memórias se redime de qualquer coisa que toda a vida nos apelou, mas que acaba quase sempre por nos escapar. E, portanto, o sentimento que o levou a revivê-las será compreendido por todos os que passaram uma certa etapa da vida, e isso é já uma boa razão. E em segundo lugar, porque elas acabam frequentemente por ser muito mais do que simples revivências pessoais, como é manifestamente o caso. Todos terão as suas, importantes e de muito interesse para a vida de cada um, mas algumas adquirem valor maior, ou pela riqueza própria ou pelo modo como são contadas. De facto, há muitos livros de memórias, mas mais do que o valor delas para o próprio, interessa a qualidade que alcancem. Felizes os que são capazes de as traduzir em formas de beleza ou de interesse suficiente para proveito próprio e alheio.

É certo que não se sente uma grande preocupação formal em Eugénio Lisboa, mas, mesmo que aqui e ali sejam algo coloquiais, (em expressões a propósito, diga-se) sempre prevalece a qualidade e a riqueza a que nos habituou, o seu estilo rico, dinâmico, enredado e cativante. E que acaba por casar muito bem com o que nos quer contar, ganhando assim uma segunda razão a publicação delas. É que as suas memórias são vivas, sentidas, luminosas, quentes, por um lado, e, por outro, cheias de referências que, só por si, são motivo de meditação nos tempos que correm, além de poderem servir de proveito e exemplo para muitos distraídos.



Há um primeiro aspeto que vale a pena referir. Eu não vivi na Lourenço Marques daqueles tempo, (nem depois; nunca lá estive) mas consegui sentir e “ver”muito daquilo que nos relata: o clima, as cores, os cheiros, os mercados indígenas, o Índico e suas praias, os baldios do futebol, os dias imensos das férias, em suma, essa sedução de África, que sentiram todos os que por lá passaram, ou lá nasceram, e que lhes ficou para sempre na alma. Assistimos, por outro lado, ao seu despertar para a vida, ao nascimento da sua consciência crítica, às primeiras evidências da estratificação social, que ele (e família) sentiram, pertencentes a um estatuto algo ambíguo entre os africanos do musseque e os brancos da Polana, entre o povo e os snobs, sentindo-se por isso um pouco estrangeiro entre os meninos do liceu, algo tolerado pela sua modéstia económica. Mas honrado e demasiado inteligente para ouvir o ímpeto da sua vontade e perceber a sua superioridade em relação a quase todos os colegas. Capaz, portanto, de desenvolver a força do seu sonho de futuro, intelectual, cultural e científico, numa Europa longínqua e então mítica, empolgado pela ideia de uma missão muito pessoal, embora indefinível, coisa corrente entre os adolescentes mais dotados. Assim, a sua condição de branco com poucas posses, vivendo longe da zona fina da cidade, acabou por lhe proporcionar a sorte de uma multiculturalidade, intercultural e transcultural, digamos assim, com todos os ingredientes de uma formação vivida, e estruturante, porque sem ressentimentos nem invejas, que a própria inteligência e sucesso escolar impedem, proporcionando, ao mesmo tempo, a capacidade de tirar dos dois lados o melhor que cada um tinha e assim superar a ambos.

Mais interessante ainda é acompanharmos o itinerário humano e cultural de Eugénio Lisboa, até pelo grande ensinamento para hoje. Sobretudo seguir a galeria das suas personagens e a ordem de aparecimento dos autores da sua formação, e que, para sempre, lhe serviram de referência. Os personagens, para além de alguns familiares, que ele fotografa bastante bem em ângulos afetivos e críticos, os exóticos ou típicos, aqueles que habitam a nossa juventude e que, ao fim de muitos anos, nos parecem quase irreais, como se nunca tivessem existido. Mas também, e sobretudo, a galeria dos seus professores. O rigor com que os descreve, mas de um modo muito humano e compreensivo chega a ser comovedor. E mostra-nos, - como se o não soubéssemos ainda – como os grandes professores marcam a nossa vida de uma maneira indelével e são os esteios de muito do que de bom e de valioso podemos vir a ser mais tarde. Há ali páginas muito belas, de ternura e agradecimento para alguns dos seus melhores professores da instrução primário e do liceu. E também outras muito críticas para com os maus, os balofos e os pérfidos, que também os havia, como se sabe.

Finalmente, é muito interessante seguir a descrição que nos faz do seu itinerário literário, o gosto pelos livros e o pouco dinheiro para os comprar, o “namoro” das montras das livrarias, a “Minerva Central”, a “Progresso” (ah, como eu o compreendo!) o aparecimento dos autores e as marcas que iam deixando numa personalidade em formação: Herculano, Garrett, Júlio Dinis, e depois e sobretudo Stendhal, e a perturbação dos americanos, Mark Twain, Hemingway, Faulkner, Sorayan e de novo os europeus, Óscar Wilde, Gide, Proust, Roger Martin du Gard, George Eliot, Dickens, Charlotte Brontë, e José Régio, claro! E doutros mais ligeiros, (por que não?) algum Emílio Salgari, Júlio Verne, Condessa de Segür, etc. E sempre novos autores, novas experiências e a consciência crescente desse campo riquíssimo, contraditório e inesgotável que é a grande literatura. Eugénio Lisboa levou-me a sentir de novo, embora por outras paragens e a uma geração de distância, a sedução dos autores, o cheiro dos livros, certas palavras mágicas como “Portugália Editora”, “Editorial Gleba”, “Livros do Brasil”,“Editorial Inquérito”, “Romances Universais” e a perturbação de certas obras, a experiência funda e fecunda que causam numa personalidade em formação.
Por tudo isto é muito interessante ver como ele reconhece a importância determinante que os grandes autores tiveram na sua formação. Pudera! Todo o livro é a veemente afirmação disso. Cito, a propósito (p. 142): «O 6º ano do liceu começou, como de costume, em Setembro (de 1945). Encontrava-me mais forte, mais desenvolto. Ter passado incólume pelas tragédias de O’Neill tinha-me fortalecido. “Atravessar” aquilo, sem ficar chamuscado, pelo contrário, sentir que algo dentro de mim se “lavara” e me purificara e fortalecia - dava-me uma sensação de confiança e de força». “Diz-me o que lês (ou leste) dir-te-ei quem és”, é uma das maiores verdades que se pode dizer sobre educação e formação em geral. Estranho é que haja gente, com responsabilidades educativas, que não o saiba. A profundidade humana, a riqueza e a complexidade das pessoas e das situações, os dramas, a experiência condensada que proporcionam, a libertação pela imaginação, a fruição da beleza e a plenitude que as grandes obras proporcionam, como é que se pode formar um ser humano sem tudo isto? E como é que esta riqueza inesgotável e esta experiência se podem substituir por resumos, súmulas, sinopses e outros miseráveis sucedâneos que por aí andam? E que até podem dar para tirar boas notas, mas que deixam pelo caminho seres planos, sem profundidade nem densidade, eternamente “inocentes”, mas convencidos, imaturos mas desde logo cediços, e acima de tudo indiferentes à beleza e sem perceberem o tudo que perdem. Nada substitui a leitura dos grandes mestres, como é possível que tanta gente “responsável” o não saiba e o não pratique? Como é possível que no nosso ensino se estejam a substituir os grandes autores pelos simulacros?

João Boavida

sábado, 13 de abril de 2013

POESIA - UM RESUMO



Já não é o primeiro ano em que a FNAC edita uma colecânea de poesia publicada no ano anterior e escolhida quatro poetas de diferentes gerações e diferentes gostos, imagino: Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós, Manuel De Freitas

É o resumo do ano e se não estou em erro este tipo de antologia era feita também no início dos anos 70. Só não recordo quem a editava nem quem eram os antologiadore (talvez o Egito Gonçalves entre outros).

Uma antologia é um material precioso pelo que escolhe tanto quanto pelo que exclui. Neste "RESUMO" estão presentes cânones próximos, caminhos não excessivamente divergentes, vozes de alguma forma consonantes no trabalho poético que se afasta da metáfora, talvez até nalguns casos da própria dimensão estética, para privilegiar poemas que mergulham sobretudo na circunstância, no momento, no pequeno acontecimento que ganha inesperada proeminência pela própria escrita poética.

Devo dizer que adoro antologias. São um material de trabalho excelente. Ficam sempre como pontos de referência pelo que escolhem e pelo que excluem.

Neste "RESUMO" podemos ter uma ideia de quem são alguns dos poetas mais jovens em acção e como se cruzam ou não com outras gerações e outros caminhos.

A poesia portuguesa precisa destas publicações. E doutras a partir de outros cânones. Por que a poesia é feita de caminhos diversos que se tornam significativos na confrontação de vozes e silêncios, de éticas e estéticas, da relação mais próxima ou mais longínqua com aquilo a que se possa chamar público.

Hoje muita da mais jovem poesia vagueia pela net e por pequeníssimas edições. Para que não aconteça aquilo de que Alexandre O'Neill falava num poema que era:

"Quem nos lê a nós? São vocês.
Quem vos lê a vocês? Somos nós.
por isso fica tudo entre nós entre nós."

domingo, 24 de março de 2013

(...)/Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando./Prefiro ponderar a própria possibilidade/do ser ter sua razão.//Wislawa Szymborsk



“Outras Cores” de Orhan Pamuk
Ensaios sobre a Vida, a Arte, os Livros e as Cidades.
Editorial Presença



Há livros que lemos num sopro, cumprem o seu papel no tempo mais superficial ou profundo da sua agradável  leitura e vão para a estante. Alguns regressam, outros só nos passam pelas mãos em limpezas de pó. Há os que, para lá da sua importância literária, marcam um lugar e um tempo. Alguns são lidos em tempos longos. Pegamos neles e largamo-los ao sabor da nossa disposição, de tarefas, de outros livros que  se atravessam, de outras urgências maiores que nossa vontade. 
Há livros para voltar, para carregar em todas as mudanças, para falar deles aos filhos mesmo que, aparentemente, não nos ouçam, porque na vida não levamos mais nada do aquilo que temos, inexplicavelmente, dentro de nós, quando partimos de um lugar.

“Outras Cores” é um livro de ensaios que anda comigo há muito tempo, a data de compra remonta a 2009, foi sendo lido. Não está ainda esgotado. Vai continuar comigo. Muitas vezes aberto ao acaso, relido como um destino.

As sérias e sentidas reflexões revelam-nos um autor que se constrói com a escrita. Como, ainda há pouco tempo, dizia, numa conversa, a propósito do seu último livro "Dentro de Ti Ver O Mar", a escritora Inês Pedrosa, na livraria Arquivo.

Ainda não esgotei este livro por dentro e por isso não sei se é tempo de falar dele. Mas nem sei quando seria. Trago-o aqui na sua incompleta releitura e entendimento. Vale a pena ler.

“Neste mesmo lugar, há muito tempo”
Quanto tempo demoramos a escrever uma linha. Por vezes mais do que o tempo de escrever páginas inteiras. E, por vezes, uma linha muda tudo e nada fica igual depois de escrita. 
Será possível equilibrar o vivido e o escrito como uma construção em que não nos envolvemos?
Terá Miguel Ângelo ficado imaculado de tinta na tarefa de pintar a capela? E seria ela o que é se o tivesse feito em breve tempo? A arte de cada um é singular, bem como o seu tempo de chegar. O seu mérito e valor é sujeito à poeira do tempo. Mas é sempre um longo caminho acidentado de subidas irregulares e descidas traiçoeiras, o da escrita como a da vida.

"Um Apontamento Sobre  Justiça Poética”
Sobre como um escritor carrega o ser pequeno que foi dentro de si.

“Olhar pela janela”
Revendo um episódio de infância que coloca pessoas de diferentes gerações e diferentes geografias próximas no tempo e no espaço.

Pamuk levou-me de novo a Tristan Shandy. Às histórias das Mil e uma Noites, adiadas, reinventadas. Relembrou-me “Os Buddenbook” de Thomas Mann. O necessário repensar dos laços familiares.

“Política e refeições familiares nos feriados religiosos”
 O quotidiano das refeições que, mais que um milagre de fazer acontecer alimentos sobre a mesa, são momentos de rituais onde se passam testemunhos. Deviam ser.

 "Em Kars e Frankfurt"
A tentar perceber como eram são as expectativas da Turquia face à Europa.
Agora que se tornou mais fácil para todos a necessidade de rever a Europa. Não como um bloco uno, de onde um entra e outro sai mas como um conjunto dinâmico onde todos contam. 
É preciso entender esta Europa que se desfaz ou se refaz consoante o maior ou menor pessimismo que carregamos. Somos nós que levamos água aos moinhos. Somos nós que combatemos os gigantes que vemos em moinhos.

A entrevista que Pamuk deu à Paris Review, feita entre Março de 2004 e Abril de 2005, pelo meio das suas posições politicas na questão Curda/Arménia.

"Nove apontamentos sobrecapas de livros". Que nos coloca perante o que importa ainda e sempre que falamos do livro papel/digital.

Pamuk nasceu em 1952. Em Istambul. “Cresci numa casa em que todos liam romances”, diz ele. Uma sorte, digo eu.

E agora se me perguntassem: então se fosses para uma ilha deserta que livro levarias? 
Nenhum.Na verdade não me apetece ir para nenhuma ilha deserta. 
Apetece-me um sitio cheio de gente,  uma biblioteca perto, livrarias, frutarias, um antigo mercado, um jardim e risos de crianças. Outras Cores...
Sílvia Alves

domingo, 10 de março de 2013

ESTA ESCRITA É UM BELO LUGAR PARA MORAR





Erri de Luca e os seus belíssimos romances são uma descoberta feliz dos meus últimos anos de leitor.

A sua escrita é asseada e simples mas profunda, limpa mesmo quando fala das coisas sujas da vida, luminosa mesmo quando fala do lado mais negro da vida. Pelas suas palavras passam uma profunda dignidade e respeito pelo melhor do ser humano.

"Montedidio" é a história de rapazinho napolitano contada pelo próprio. Fala-nos do seu trabalho como aprendiz de marceneiro, da sua amizade pelo sapateiro judeu Raffaniello, corcunda que tem na cabeça uma bússula de cegonha e umas asas dentro da corcunda que um dia hão de abrir e levá-lo pelos ares até Jerusalém; e fala do seu primeiro amor e das primeiras experiências sexuais com Maria que não quer seirvir de moeda de troca ao senhorio a quem a mãe deve várias rendas de casa, do pai, estivador e do mar cujo cheiro traz preso ao casaco, da mãe que morre, da língua napolitana e da necessidade de aprender italiano para estudar,ter emprego, papeis legais.

Tudo isto nos é dado através de pequeninos capítulos como se de um diário fossem e de uma escrita delicadíssima e profundamente poética.

Montedidio fala de um tempo de pobreza, anos 50, na ressaca da II Guerra, de um tempo de gente que trabalha com as mãos e que faz do seu ofício uma verdade que vai até ao osso.

Aqui, "Todas as manhãs são uma ressurreição." e "É o sol dos meses frios que põe um cobertor sbre quem não tem um."

Aqui fala-se do sapateiro Rafaniello que "Canta para arejar os pensamentos, caso contrário, fechados na boca ganham bolor."

Aqui, nesta escrita é um lugar bom para morar e descansar sabendo que há uma esperança de luz para a nossa tão precária condição.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Um Médico Rural


Nu, exposto ao frio desta era infelicíssima, com um carro terreno e cavalos sobrenaturais, lá vou eu, um velho.

Franz Kafka

A propósito da recente representação do teatro Aramá do conto "Um médico rural" de Franz Kafka no Porto sob a direcção de Tó Maia, concepção e execução plástica de Hernâni Miranda e Pedro Esperança, música de Elísio Donas e a competente actuação dos actores, escrevo algumas linhas na esperança que este belo trabalho colectivo seja reposto e tenha uma maior audiência. Naturalmente, este desejo tem na sua raiz a crença pessoal na absoluta necessidade da leitura por todos da obra de Kafka, e na convicção do fundamental papel que grupos como o Aramá tem para o nosso desenvolvimento cultural, social e económico. 

Franz Kafka (1883-1924) consta de todas as listas que se possam fazer dos mais marcantes escritores do século XX. Kafka alterou irreversivelmente a paisagem literária do século XX, tanto ao nível linguístico, estilístico e existencial, mas acima de tudo, apresentou a condição humana depois do século XX com uma abrangência e profundidade sem precedentes. Creio que não seria exagerado dizer que sem a obra de Kafka, nós seríamos ignorantes sobre a nossa verdadeira natureza.

"Ein Landarzt", texto datado de 1919, empresta também o título a uma colectânea de mais de uma dúzia de contos, na verdade, uma das poucas publicadas em vida. 

À pureza da narrativa e a simplicidade da história, Kafka contrapõe um cenário mental de extraordinária riqueza, no seio do qual todas as estruturas sociais, crenças e convicções colidem continuamente, onde todas as certezas transformam-se em questionamentos existenciais e onde as debilidades ganham a sua verdadeira dimensão humana. Não há regiões da alma que sejam inacessíveis ao bisturi da escrita de Kafka. Razão e emoção têm ambas uma dimensão redentora, mas são ao mesmo tempo, elementos de perdição e maldição.         

Em teoria, pouco poder-se-ia esperar dum conto sobre um médico rural que é chamado numa noite fria para assistir a um paciente criticamente doente a dez milhas de distância. Na noite anterior o seu cavalo havia morrido, e assim sem meios para a deslocação, pede para a sua criada, Rosa, procurar um cavalo emprestado entre os aldeões. Contudo, a imaginação de Kafka conduz-nos para os aspectos mais inesperados dos acontecimentos mais mundanos. 

Não me parece apropriado roubar ao leitor o prazer do mergulho das águas frescas do texto de Kafka. Bastará talvez referir, a guisa de peroração, que tal como no "Processo", obra mais madura iniciada em 1914 e terminada em 1925, a narrativa de "Um médico rural", conclui-se de forma definitiva para o protagonista, mas é deixada completamente em aberto no que diz respeito às suas implicações para a condição humana. Tal como no "Processo", onde os juízes podem condenar, mas não podem absolver, Kafka, demonstra-nos que um médico, expressão máxima do progresso humano, pode curar, mas não pode salvar no sentido místico que rege o modo de pensar dos camponeses a quem presta assistência.    

Naturalmente, é-nos impossível sintetizar e capturar com justiça a complexidade e profundidade da obra de Kafka, pelo que recomendamos, entre outros, o livro de Walter Benjamin que já foi aqui apresentado. Finalmente, gostava de enfatizar uma vez mais que a prevalência e a universalidade dos textos de Kafka ficaram brilhantemente demonstradas com a representação do grupo Aramá; contudo, para os que por ventura não estejam completamente convencidos, incluímos nesta recensão o curta metragem de animação de 2007 do realizador japonês Koji Yamamura baseado no "Um médico rural"

Orfeu B.


                                                       

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Cantatrix Sopranica L.

Experimental demonstration of the tomatotopic organization in the Soprano (Cantatirx sopranica L.)

George Perec
Laboratoire de physiologie
Facultè de médicine Saint-Antoine
Paris, France

Sommaire

Démonstration expérimentale d'une organization tomatotopic chez la Cantatrice.

L'auteur étude les fois que le lancement de la tomate il provoquit la réaction yellante chez la Chantatrice e demonstre que divers plusieures aires de la cervelle elles était implicatées dans le response, en particular, le trajet légumier, le nuclei thalemeux et la fiçure musicien de l'hémisphère nord. 


Cantatrix sopranica L. é uma colectânea póstuma de textos do brilhante e original autor francês George Perec (1936-1982). Perec é conhecido pelo ecletismo dos seus interesses e por obras como por exemplo, "La Vie mode d'emploi" de 1979, um vasto e complexo romance escrito de modo a simular o movimento das peças num jogo de xadrez ascendente ao longo duma escada, e pela novela de 300 páginas "La disparition" (1969), escrita sem nunca usar a letra "e", desaparição que é uma metáfora do destino dos judeus na Segunda Grande Guerra. 

   
Concretamente, Cantatrix sopranica L. consiste dum conjunto de cinco textos cómicos, escritos em linguagem pseudo-científica. O primeiro destes, escrito em inglês, descreve as reacções cerebrais causadas numa soprano quando submetida ao lançamento de tomates. Há uma discussão introductória de contextualização, uma descrição do grupo de estudo, 107 saudáveis sopranos do Conservatório Nacional de Música,  com peso compreendido entre 94 e 124 quilos, que são convenientemente monitoradas; uma discussão metodológica sobre o equipamento de aquisição e gravação dos dados; uma descrição das regiões cerebrais afectadas em função da carga tomática lançada; uma discussão de cenários interpretativos possíveis; finalmente, o texto é concluído com uma bibliografia que inclue autores como: Alka-Seltzer; Chou, O. & Lai, A.; Einstein, Z.,  Zweistein, D., Dreistein, V., Vierstein, F. & St. Pierre; Giscard d'Estaing; Marks, C.N.R.S. & Spencer, D.G.R.S.T., Wait, H. & See, C., entre outros!
    
Os textos seguintes versam sobre entomologia, uma homenagem a um humorista, uma obra fictícia sobre a catedral de Chartres, e finalmente um texto, escrito conjuntamente com Harry Mathews, sobre o escritor Raymond Roussel e a geografia melancólica inspirada por Veneza.

Cantatrix sopranica L. propicia uma leitura agradável e refrescante, e despretensiosamente, nos remete a uma reflexão sobre a especificidade do jargão científico, e de como a sua pretensa objectividade não é de todo um garante da seriedade dos assuntos em análise. 

Finalmente, parece-nos relevante mencionar que o texto de Perec precede de alguns anos a instituição dos Prémios Ig Nobel, paródia do Prémio Nobel, atribuídos todos os anos em Outubro a dez trabalhos científicos particularmente bizarros, cómicos ou triviais. Os primeiros Ig Nobel foram criados em 1991 pelo norte-americano Marc Abrahams, editor e co-fundador dos "Annals of Improbable Research", revista de humor "científico".  


Orfeu B.



sábado, 26 de janeiro de 2013

VIAGEM A TRALALÁ OU A PARTE NENHUMA


Wladimir Kaminer, nascido em 67 é um filho da decadência e queda do chamado bloco socialista, cujo desmembramento analisa com algum brilhantismo e momentos de uma invejável ironia e algum cinismo.

Vivendo a adolescência no seio de uma cultura pop russa, cedo foi viver para a Alemanha onde se tornou em escritor, homem de rádio, animador cultural e humorista de grande sucesso.

A Cavalo de Ferro publicou 2 dos seus mais famosos livros, Militärmusik e Russendisko.

A colecção em que a Tinta da China tem publicado notávens livros de viagens publicou agora um livro ao contrário, quer dizer, um livro de não viagens ou de viagens que não se chegam a fazer; "Viagem a Tralalá" de Wladimir Kaminer.

Trata-se de um livro com momentos verdadeiramente desopilantes a par da sarcástica mas por vezes dolorosa narração de uma juventude russa que perde qualquer
capacidade de estabelecer um caminho de vida e se deixa viver ao sabor do dia-a-dia, navegando no álcool, nos pequenos golpes e empregos como sobrevivência, na busca do seu lugar numa europa que não conhece e a que tem dificuldade em adaptar-se.

Das viagens que o narrador não chega a fazer destaca-se a delirante narrativa de uma cidade falsa construida no sul da Rússia que faz de Paris no Verão e Londres no Inverno e para onde são enviados os operários premiados pelos seus êxitos na produção, convencidos que estão mesmo a visitar Paris e Londres.

O humor é uma das artes mais difíceis e embriagadoras entre todas as vertentes da literatura e do espectáculo.

O humor rebenta como uma bolha de novidades desopilantes mas rapidamente se torna pesado, cansativo, repetitivo.

Porque o humor nasce de uma forma particular de olhar o mundo e a vida ao contrário que surpreende o espexctactador ou o leitor e provoca o riso. Quando o o público começa a conhecer aquele mecanismo particular de fazer humor, passa a habitar a fácil previsão e a possível decepção.

"Viagema a tralalá" tem a dimensão exacta para o bebermos como um licor saboroso sem chegar a sentir-lhe o inevitável sarro se se prolongasse mais do que a conta.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

OS ROSTOS ANTERIORES


A escrita de Transtromer é discreta, súbtil,intensa e deslizante.

Neste livrinho recorda alguns momentos da sua infância. Não tem grandes objectivos. Apenas deixar que as lembranças olhem para ele já velho e o confrontem com calma e amenidade mesmo quando falam de momentos menos alegres.

“Trago em mim os meus rostos anteriores como a árvore tem os anéis da sua idade. O que eu sou é a soma de todos esses rostos. O espelho só vê o meu rosto mais recente, mas eu conheço todos os anteriores.

O trabalho de escritor de Transtromer poderia ou deveria ser o de cada um de nós. O que ele faz é escrever para que alguns lampejos do seu passado lhe iluminem o presente e para que outros, tornados palavras , permitam sarar alguma ferida que possa ainda estar aberta.

Este livrinho não tem uma história mas várias pequenas histórias. Como todos nós as temos.Ensina-nos a olhar para trás através do exercício da escrita ou, como ele diz,faz com que a escrita leve o passado a olhar para si.

Uma da histórias é sobre aquilo que hoje se chama bullying e que dantes apenas se chamava abuso.

Na escola primária um colega maior que ele todos os dias o atirava ao chão. E ele protestava e o colega ontiuava a atirá-lo ao chão. Até que o pequeno Tomas resolveu deixar-se cair mal via o colega. E ele desistiou de o atirar ao chão. Já não tinha graça.

Fiquei parado a sorrir perante esta historinha e estas aprendizagens que também fazem parte do processo de crescimento. É claro que a nossa democracia exige a protecção dos mais fracos. Mas o confronto com os obstáculos e a sua suplantação, pelo uso de estratégias próprias ou pelo apelo às regras do comum convívio é fundamental.

Seria bom, de qualquer maneira, se cada um fizesse como Tomas Transtromer um caderninho de lembranças para arrumar dores, confrontar tempos, dar sentido às rugas.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Incidente em Vichy



BAYARD - O senhor julga que podemos ser eternamente nós próprios numa sociedade como esta? Quantos milhões de pessoas andam esfomeadas e umas tantas vivem como reis? Quando todas as raças são escravos para o abastecimento do mercado? Como é que poderemos ser nós próprios num mundo como este? Eu trabalho dez horas por dia para ganhar meia dúzia de francos por dia; vejo por aí alguns que nunca  dobraram as costas, e esses aí são donos do planeta … Como é que o meu espírito há-de estar onde estiver o meu corpo? Só seu eu for um macaco.

VON BERG - Então, onde é que se encontra o seu espírito?

BAYARD - No futuro. No dia em que a classe operária dominar o mundo. Nisso é que eu tenho esperança … Não será agora com a personalidade de outrem.

VON BERG (muito admirado e com a melhor das intenções) - Mas não lhe parece …? Desculpe. A maior parte dos nazistas, não pertencem eles à classe operária?

BAYARD Sim, naturalmente. Com bastante propaganda, é possível confundir toda a gente.

VON BERG - Bem vejo. (Breve pausa) Mas, nesse caso, como é que se pode ter uma tal confiança neles?

BAYARD _ Em que é que p senhor tem confiança? Na aristocracia?

VON BERG - Muito pouca. Mas em alguns aristocratas, sim. E também em determinadas pessoas, gente do povo, simplesmente.

Incidente em Vichy



"Incidente em Vichy" (1965) é considerada por muitos críticos uma obra menor de Arthur Miller (1915-2005), autor genial das peças "Morte de um Caixeiro Viajante" (1949) e "As bruxas de Salem" (1953). Porém, parece-nos difícil concordar com esta avaliação tendo em vista o escopo e a amplitude de questões abordadas neste rico texto. Uma peça onde Miller abandona o ambiente ideológico e político da sociedade americana que ele conhece tão profundamente para reflectir sobre a opressão, agora sob a forma da brutalidade demencial do nazismo.

A circunstância de um grupo de homens ter sido trazida à força para  apresentar provas de suas identidades, da veracidade de seus papeis de identificação, da dimensão de seus narizes e de serem ou não circuncidados, cria uma situação excepcional onde são confrontadas as convicções, as idiossincrasias, os temores e as esperanças de homens de distinta extracção e condição: um pequeno comerciante, um jovem, dois trabalhadores, um dos quais comunista, um cigano, um médico, um aristocrata austríaco, um actor e um velho judeu que não pronuncia qualquer palavra, pois a sua condição de culpado já está estabelecida a priori e a sua sorte já está selada. 

Outro aspecto que me parece extremamente interessante nesta obra é o paralelismo e, em certa medida, o diálogo com o existencialismo, e muito particularmente, com a obra teatral de Jean Paul Sartre (1905-1980). Identifico na peça de Miller respostas corajosas e originais a algumas das questões suscitas por Sartre, em inúmeras de suas obras, "As mãos sujas" (1948), "A engrenagem" (1948), "Os sequestrados de Altona" (1959), entre outras. Questões puramente existenciais, questões de posicionamento do indivíduo no turbilhão dum momento histórico particularmente destrutivo e de grande clivagem ideológica, e sobretudo, questões de consistência entre o discurso e a praxe.  

Mas se para Sartre a exposição teatral tem ainda uma fundamental componente clássica, no sentido arquétipo e analítico, Miller procura uma solução que empreste ao enredo um paradigma moral e um desenlace quinta-essenciamente teatral. O improvável auto-sacrifício de um dos personagens em prol duma causa que não é a sua, representa o reconhecimento de que toda uma classe social, a aristocracia, tinha atingido o limite de sua validade histórica, porém, a afirmação moral engrandece o valor da resistência individual.      

Orfeu B.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

à MARGEM



Gosto dos romances de Mankell. Já aqui falei deles várias vezes. Gosto bastante de policiais. Mas há policiais e policiais. E Mankell, que me parece ter sido uma óbvia fonte de inspiração para Stieg Larsson, escreve romances em que, para além do enredo policiário, fala-nos da vida real e das grandes inquietações humanas, sociais e políticas do mundo de hoje.

O seu detective, o inspector Kurt Wallander é um ser humano carregado de angústias, dúvidas, questões que o atormentam. O título do livro não podia ser melhor. "Um Homem inquieto" é o personagem principal, oficial de alta patente da Marinha sueca que desaparece inesperadamente e arrasta Wallandar numa investigação que o leva a pisar a fronteira do mundo da grande política e da espionagem.

Mas "Um Homem inquieto" é também , sobretudo Kurt Wallander, o inspector que se interroga sobre crimes, sobre a sociedade onde eles acontecem, sobre si próprio, polícia e homem que se vê envelhecer e procura o seu lugar no mundo.

Mankell é sueco e um dos autores que mais vende livros na Europa. Vive uma parte do ano em Maputo onde é director de uma companhia de teatro. Os temas dos seus romances anteriores vinham sempre rodeados por questionamentos políticos. Mas aqui, Mankell leva as coisas mais longe. E leva mais fundo as dúvidas interiores com que envolve o seu inspector Kurt Wallandar que poderá eventualmente ser uma espécie de seu alter ego.

"Continuo a ser a mesma pessoa à deriva na periferia dos grandes acontecimentos políticos e militares. Sou o mesmo homem inquieto e inseguro e encontro-me à margem, como antes." diz Wallander já no final do livro.

O inspector que tem envelhecido de romance para romance, tem agora 60 anos, sofre de diabetes e tem falhas de memória cada vez mais preocupantes.

O inspector Wallander questiona-se sobre a sua vida, a sua relação com a ex-mulher alcoólica, a filha e a neta, e Baiba, o grande amor da sua vida, que se vem despedir antes de morrer de uma doença sem cura.

Pela primeira vez leio um romance policial em que o autor "apagas " com alzheimer o seu detective que foi também a linha condutora ao longo de vários romances.

Matar o personagem de livros que se continuam através dessa mesma personagem e dos seus rituais próprios parece ser a tentação de alguns escritores de livros em série.

Lembro-me de "Capítulo final", excelente filme de Rob Reiner, em que um autor mata a sua personagem principal de mais de 30 romances. As consequências são terríveis quando o autor se encontra indefeso perante uma fã que não admite essa morte da "sua" personagem.

Imagino que quando se escreve uma série baseado numa mesma personagem, às duas por três, temos de o afastar de nós para que a colagem dos dois não se eternize.

Mas esta forma de "apagar" a personagem que tem a idade que eu tenho, que sofre de diabetes como eu sofro, deixa-me inquieto... Mas não é para isso mesmo que serve a boa literatura?

domingo, 30 de dezembro de 2012

Histórias de Goldkorn

 

Entre uma vida pródiga em benesses e outra feita de amargo azedume existem precisamente momentos assim, que um homem ou despreza ou agarra destemidamente. Pus-me imediatamente em pé, de um salto, e virei-me para o director de orquestra de peito rosado, cujos caracóis molhados aderiam à fronte nobre.

- Maestro - disse, batendo os calcanhares moles do meus sapatos de ponta revirados, tipo bobo. - Aqui tem L. Goldkorn. Licenciado em flauta pela "Akademie fuer Musik, Philosophie, und darstellend Kunst"; instrumentista auxiliar, por designação do imperador, da k. k. Hof-Operntheater Orchester, 1916-1918; e 1919-1938, da Orchester der Wiener Staatsoper. Desde mil nove e quarenta e três cidadão americano. Assinante domiciliário do New York Herald Tribune.   

A. Toscanini erguei os olhos do local onde Wormes estava agitar-se nas bolhas do Geyser. 

-Si. È vero? Un musicista? Flauto? Bravo! Signor Goldkorns, un disco grammofonico!

Eis como, senhoras e senhores, L. Goldkorn se tornou, pelo espaço de um só tarde, membro da National Broadcasting Company Orchestra. Uma só tarde? Apenas no sentido mais grosseiro, mais literal. A nossa gravação, "Aberturas de Ópera Bufa Bem-Amada", na qual, conforme sabeis, executo uma cadenza a solo de O Segredo de Susana, há-de durar por todas as tardes do porvir.

Histórias de Goldkorn.

Um livro de grande imaginação e dum humor muito especial sobre as desventuras do personagem tragicómico, L. Goldkorn, um modesto judeu originário de Viena, transplantado na grande nação da América do Norte por força da destruição material e cultural da Europa pelo nazismo. 

Uma narrativa sobre a voracidade do progresso duma América febril que aliena e transforma o humilde flautista, orgulhoso membro do quinteto de música Steinway do Restaurante Steinway, especializado em grelhados romenos e carne kosher, numa relíquia viva. Um testemunho comovente, embora também cómico dado o suceder de situações insólitas, dos infortúnios dum personagem profundamente humano. Particularmente inesquecível é a descrição da representação de Otelo pelos empregados do Restaurante Steinway visando publicitar e ressuscitar o moribundo estabelecimento, e os comentários do personagem sobre música e sobre a história do quinteto que ao longo da sua longa vida só por uma ocasião admitiu que um músico estranho se juntasse ao grupo, nomeadamente Albert Einstein aquando o grande cientista fez um repasto no restaurante e tocou uma peça com o quinteto. 

Um livro que espelha a imaginação transbordante e a mestria técnica dum grande autor e que analisa com grande verve os estereótipos culturais dos judeus europeus, dos norte-americanos e das múltiplas comunidades culturais de Nova Iorque. A escrita floreada e criativa do autor faz-nos pensar que Leslie Epstein é um brilhante discípulo de língua inglesa de Isaac Bashevis Singer.  

Orfeu B.



ALBERT LONDRES EM VIAGEM ENTRE OS LOUCOS

“Com os Loucos” (edição de Sistema Solar) é uma obra de Albert Londres (1884-1932), um dos grandes jornalistas franceses, das primeiras décadas do século XX, que contribuiu, e em muito, para transformar a crónica jornalística em género literário. Os temas por si abordados tiveram sempre um forte impacto social, não só pela sua actualidade, como pela forma realística como eram tratados. Entre esses temas, destaca-se a série de reportagens que fez a partir das suas visitas a hospitais para loucos, existentes em França, nos anos vinte do século passado. Mundo oculto, protegido pelo segredo médico e por uma legislação restritiva. Mundo desconhecido do grande público, que não sabia, nem queria saber do que se passava para além dos muros de cerca de oitenta hospitais existentes em França, naquela época. Mas Albert Londres, antes de Michel Foucault e da sua “Histoire de la folie”, teve consciência do que acontecia nessas “novas leprosarias” do século XX, nos manicómios em que a sociedade encerrava os que eram diferentes da maioria dos cidadãos, cidadãos que punham em causa o normal funcionamento das instituições sociais. Protegidos pelo sigilo médico e pelo poder administrativo, esses asilos eram locais onde imperava a violência e a crueldade. Depois de muitas dificuldades de ordem burocrática, Albert Londres conseguiu ter acesso a essas casas, onde o progresso social, o respeito pelos direitos individuais ainda não tinham penetrado. Por vezes, com a colaboração de instituições religiosas: “Filhas do diabo, filhas do diabo”, gritava a freira, de cabeça perdida, às loucas enfurecidas que a escandalizavam pelo gesto, pela palavra. Casas em que nem sempre era possível distinguir entre quem era o curador e quem era o que ali se encontrava para ser curado. Falta de preparação do pessoal médico e de enfermagem? Sem dúvida, mas, acima de tudo, desconhecimento do que era a “doença maldita”. Situação que se manteve até ao aparecimento da química médica, que fez do psiquiatra um administrador de fármacos. Situação que eu conheci de perto, através do convívio com tias velhas e outros familiares, que, por vezes, punham fim ao seu sofrimento pelo suicídio. Estamos, pois, perante uma obra literária de estilo incisivo, imbuído de uma certa leveza, como era próprio do jornalismo francês da época. E, simultaneamente, uma obra de denúncia de uma das maiores tragédias de um tempo, que parece longínquo, mas que é quase nosso contemporâneo.