
Arsène Lupin é um dos grandes heróis da literatura do século XX. Da literatura francesa, da literatura mundial. Mas, coisa curiosa, a celebridade do autor das obras que
têm o Arsène Lupin como figura central – Maurice Leblanc – não acompanha, nem de longe, a fama da personagem. Na realidade, Maurice Leblanc continua a ser um desconhecido para o grande público. Isso, e algo mais, acaba de me ser recordado num número já antigo da revista Lire, que acabo de reler. De entre os artigos inscritos nessa revista, avulta a entrevista feita a Jacques Derouard, biógrafo do autor e coeditor de Arsène Lupin. Nela, Derouard chama a atenção para um aspecto da personalidade de Leblanc, que tem algo de dramático: ele amava e odiava Arsène Lupin. Esta ambivalência de sentimentos acompanhou-o durante toda a vida e atingiu, nos últimos anos, uma acuidade doentia. Eu explico-me.
Leblanc é de origem normanda, como Flaubert e Maupassant, autores de quem recebeu uma forte influência. Foi sob a sua influência que escreveu os primeiros romances. Se as temáticas abordadas têm a ver com autores ingleses de finais do século XIX, a forma e a trama sentimental muito devem aos franceses da sua devoção. Mas, contrariamente ao que seria de esperar, as suas obras, embora reconhecidas pela crítica, não tiveram êxito perante o público. O que não aconteceu com as histórias do Arsène Lupin, o ladrão cavalheiro, “dandy” que pratica o roubo como quem realiza uma obra de arte. Histórias publicadas inicialmente na revista “Je sais tout” e, de seguida, saídas em livro. O êxito, em França e no mundo, é fulminante, o que o transforma num dos escritores mais populares de língua francesa. Essa popularidade agrada-lhe (até pelos proventos que arrecada) e incomoda-o: a sua aspiração de ser considerado um autor clássico, que busca assento na Academia Francesa, vai sendo algo de cada vez menos viável. Mata Arsène Lupin por diversas vezes, é certo, mas os seus editores exigem sempre que o ressuscite na história seguinte... E a neurastenia (essa terrível doença dos intelectuais do século XIX, da primeira metade do século XX) vai-o dominando: criou uma personagem que lhe configurou uma “identidade social”, com a qual não se identifica. Personagem de que não consegue libertar-se. Por via dela, será sempre um escritor “popular”, que nunca poderá sentar-se ao lado dos “grandes” escritores franceses que ocupam as cadeiras do Olimpo das Letras – as cadeiras numeradas da Academia dos Imortais Sentados. Hoje, ao lerem-se as suas diversas obras, não se pode deixar de dar razão à escolha que o público fez: as obras em que são narradas as aventuras de Arsène Lupin são, sem dúvida, as suas melhores obras. Mais, ainda: são do melhor que a literatura francesa produziu no século XX.
O que não impediu que a vida de Leblanc, nos últimos anos (morreu em plena Grande Guerra Mundial, em 1941), não virasse tragédia. Leblanc acabou por “ceder” à personagem que criou, que o foi “possuindo” gradualmente: num livro de honra de um restaurante, assinou Arsène Lupin...; na sua casa de Etretat, Arsène Lupin “entrava-lhe” pela porta dentro, a qualquer hora, o que o incomodava altamente, principalmente quando estava sentado à sua mesa de trabalho, a escrever – o que o levou a fazer uma participação ao chefe da policia local...
Para mim, o que é mais impressionante é este desencontro entre a imagem que o
autor tem de si e a que o público dele faz. O que, no caso presente, nos leva a concluir que Maurice Leblanc ficou célebre pelas razões que ele considerava não serem as melhores... Enfim, coisas da escrita e dos escritores...