Andei algum tempo com “Um homem bom é difícil de encontrar” de Flannery O’Connors debaixo de olho. Namorámo-nos quase um ano. Tinho já lido muitos contos daquelas várias e muito interessantes contistas americanas, Dorothy Parker, Edith Warton, Katherine Mansfield. No entanto, para dizer a verdade, apesar de as apreciar imenso, nunca me senti exactamente da mesma família. Li-as, gostei e ponto final.
Não esperava ser arrebatado e, por isso, precisava de esperar pela maré certa para atacar os contos desta autora que muito me tinham elogiado.
Calhou este Agosto. E foi uma verdadeira tempestade que me abanou. Torceu. Incomodou. Deixou de rastos. A autora escreve, meu Deus, que até dói. Fala-nos de uma América rural, sulista, racista, mesquinha, obscura. E em cima desse cenário faz-nos mergulhar na cabeça de pessoas obsessivas, desconfiadas, medrosas, limitadas. Gente terrível, gente carregada daquilo de que se faz a humanidade em todas as suas vertentes. Gente sem horizontes. Encerrada numa imensa paisagem, num imenso país que parece uma grande colmeia com muitos pequenos favos completamente isolados entre si.
A narração faz-nos mergulhar num estado de espanto, por vezes com alguma ternura, muita melancolia, e momentos de pura surpresa e pavor.
A história da rapariga da perna de pau e do vendedor de Bíblias é arrasadora. Outra, de um avô que leva o neto à cidade para que ele conheça a maldade e nunca mais lá queira voltar é dos momentos em que melhor vi misturar-se a literatura e a dimensão ética das personagens.
A seguir a Flannery O’Connors, ainda sem os pés no chão, deu o acaso para me virar para o belga Eric-Emannuel Schmitt, “Odette Toulemonde – Lições de felicidade”. Também mo tinham elogiado. O título fazia-me sonhar com uma escrita ligeira e histórias felizes. A capa é divertida. Havia ali talvez uma promessa de ambiente Monsieur Hulot, quem sabe…
O problema é que não foi nada disso que encontrei. Ou melhor, foi exactamente isso que encontrei, isso e nada mais. E o que me veio à boca foi: isto é light! Disse-o várias vezes enquanto levava o livro até ao fim. Light, light, light!
Mas, afinal, o que é uma escrita light? E é esse é um desafio que proponho como reflexão aos caros amigos e comparsas desta aventura e também aos que nos visitam. O que é ser light?
Light será ser previsível e linear como sinto que é este livro correcto, bem escrito e provavelmente bem intencionado de E-E. S.? Light será contar histórias “reais”, histórias que podiam ser assim mesmo, histórias que já ouvimos contar tantas vezes no autocarro ou no café, histórias que servem para construir os enredos das vulgares novelas televisivas?
Lembro-me da frase do Semprún que diz que a realidade só interessa à polícia. A literatura está para lá disso. Ou melhor, a grande literatura situa-se noutro patamar se bem que faça da realidade o seu barro primeiro.
A verdade é que ainda estou debaixo daquela tempestade que a escritora americana provocou em mim, não uma tempestade real, mas uma tempestade parecida com as que Turner pintava em que ele construía uma distância em relação ao retrato do real para nos situar no grande espectáculo da arte.
Será que tive o azar de ler estes dois livros nesta ordem. E se tivesse sido ao contrário, se tivesse começado pelo Schmitt? Teria sentido o mesmo?
A sensação que tenho é de que o que há em O’Connors que não há em Schmitt é um trabalho profundamente elaborado sobre a linguagem e sobre a forma de narrar. Será esta a diferença entre grande literatura e literatura light? A diferença está lá, nos livros, ou nos meus olhos de leitor? Pode ser definida? Quantificada? Poderemos dizer: este aqui é mais light, estoutro é menos light?
A ler Flannery O’Connors lembrei-me por vezes de outro grande contista que me foi apontado pelo Albano Estrela: o Givanni Papini. Havemos de falar dele. Esse também pertence às grandes estrelas obscuras e descobri que há uns 40/50 anos foi muito publicado em Portugal. Vale mesmo muito a pena.