segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A PEDRA DAS PALAVRAS



Gosto da escrita de Rentes de Carvalho. Gosto muito. Tem alma. Tem força. Não facilita. É feita para mastigar. Exige um leitor atento. Mas também é verdade que ele o conquista pela intensidade da trama e pela consistência da forma como desenha as personagens. Na sua escrita há qualquer coisa de pedra, daquelas pedras imensas da sua terra de Trás-os-Montes, pedra bruta ali, no corpo das frases que nos coloca à frente dos olhos e nos obriga a sentir por dentro a dureza da própria palavra ou do olhar que a atira para o mundo.

Se a sua ironia, aqui ou ali, pode fazer crer que vamos por uma escrita mais doce e divertida, logo o autor nos ensosta à parede, nos deixa sem respiração e nos rouba ao sossego do nosso canto para nos avisar que o mundo não é doce e nada nos protege dessas tempestades que surgem silenciosamente e sem delas de início darmos conta.

Neste seu romance passa uma inglesa que gosta do Algarve e anda pelo mundo metida em negócios escuros com diamantes e muitas mentiras e se move num caldo quase marginal ao grosso da história, que, a propósito desse negócio dos diamantes, funciona como música de fundo nos falar de uma visão profundamente desencantada sobre o governo do mundo onde bandidos e governos se sentam à mesa dos mesmos repastos. E essa visão desencata do cosmolitismo permitido pelo dinheiro contrasta magnifica e agrestemente com a paisagem banhada pela luz dura e excissa da serra do Algarve.

Mas o que mais me tocou foi o Portugal de que o autor dá conta na sua trama e sublinha na sua situação de marginalidade face aos centros do mundo. Um Portugal poliédrico, com três facetas distintas

Com os velhos senhores da terra, convivemos com uma cultura antiga partilhada com criados, quase servos ainda, e uma melancolia de quem adivinha o fim de um tempo e de uma cultura.

Com Samuel, ex-combatente da Guiné, tocamos ao de leve um Portugal brutal, de vida e morte, de faca e sangue, o Portugal que tem pesadelos de noite e se gasta sem encontrar perdão.

Por fim temos um outro Portugal, videirinho, troca-tintas, aldrabófilo, iliterado, feito de negócios sujos e miseráveis, o Portual da política e dos partidos, dos empregos, do cinismo, da canalhice.

Neste vai-vém de personagens e histórias, o autor leva-nos sem nos dar descanso. E é bom, quase no final, subirmos ao alto deste monte, desta narrativa, e encostarmos a cabeça à pedra das palavras.

sábado, 21 de setembro de 2013

A PALAVRA E A LUZ


José Tolentino de Mendonça é o poeta que mais me emociona na sua geração e a sua obra tornou-se seguramente imprescindível, se quisermos conhecer o que de melhor se fez na poesia portuguesa das últimas décadas.

Madeirense, filho de pescador, JTM faz do diálogo com a natureza um caminho que parte do olhar para que desaguar na palavra. Não se trata da palavra liquída, óbvia, imediata, elegíaca, mas aquela que recolhe memórias de pessoas e sítios, de textos e reflexões, pedaços de filmes ou canções, veredas para um outro conhecimento que levam o poeta à boca do mundo.

Quando a sua poesia atravessa as cidades, ainda aí vai procurar a transcendência, nos recantos mais obscuros, nos anjos negros dos becos,nas margens mais perdidas, nas canções de quem traz pássaros feridos a voar na voz.

Sacerdote católico, estudioso e exegeta da Bíblia, JTM afirma que "A fé é uma ardente e incessante interrogação". Dessa interrogação e do encanto perante o mundo faz Tolentino de Mendonça o seu percurso de poeta, num ofício aparentemente sereno mas afinal inquieto, tecendo a sua poesia de momentos comoventes que nos aproximam da Luz. Ou de Deus.

sábado, 14 de setembro de 2013

ENTRE O QUE A HISTÓRIA NOS CONTA E O QUE NÃO CONTA


A História sempre foi para mim uma paixão. A paixão de contar e ouvir contar histórias.

Ficcionar a história tem sido o trabalho de muitos escritores com resultados variáveis mas muitas vezes com o encanto que leva o leitor a imaginar-se noutro tempo histórico, vivendo os amores e as tragédias de grandes personagnens de tempos idos.

O autor de romances históricos procura trabalhar sobre o trabalho do historiador, ocupando os interstícios que esse historiador deixa em aberto por já não ter matéria para melhor investigar.

É aí que o escritor se instala, mantendo umpé na história e colocando o outro na ficção.

Alberto Santos pegou em dois temas particularmente interessantes à volta do culto centrado na catedrasl de Santiago de Compostela. Em primeiro lugar, o facto de se ter concluído em finais do séc XIX que as ossadas que estão em Compostela não pertencem ao Apóstolo Santiago Maior como era crença até então.

Compostela, ou a região do Finis Terra, seria um local de peregrinação muito antes do cristianismo que, como foi prática corrente, se apropriou de uma tradição pagã para tornar cristã a devoção e a visita ao lugar.

À ideia de que não as ossadas de Santiago Maior que estão em Compostela, Alberto Santos juntou-lhe outra ideia. A possibilidade de os restos mortais existentes na Catedral de Santiago de Compostela pertencerem ao Bispo Prisciliano do séc. IV depois de Crist, primeiro herege justiçado pela Igraja Católica.

As suas idéias obtiveram grande sucesso, em especial entre as mulheres e as classes populares, pela sua recusa à união da Igreja com o Estado imperial e pela denúncia da corrupção e enriquecimento das hierarquias.

A história de Prisciliano, bispo heterodoxo eleito pelo povo de Braga no séc. IV, tem atraído diversos artistas e escritores. São os casos do romance sobre a vida de Priciliano escrito por Ramón Chao (pai de Manu Chao), do romance de João Aguiar "O trono do Altíssimo" e do filme de Luís Buñuel "A via Láctea".

Alberto Santos documentou-se com grande rigor. Fas-nos conhecer os espaços e os hábitos da época com vivacidade e pormenor.

A essa descrição cuidadosa da época juntou aventuras, conflitos religiosos e amores, tudo servido por um romantismo que terá a grande vantagem de chamar um público vasto à leitura de um tema que permite o mergulho noutros voos e inquirições para além dos estritos pormenores da ficção.

sábado, 7 de setembro de 2013

A NARRATIVA E OS PERSONAGENS



Como se diz por aí, este livro torna-se num vício. Não conseguimos parar de ler. Agarra-nos pelos colarinhos, envolve-nos, não nos deixa sair dali

Trata-se de um livro policial. Um livro de mistério.

Harry Quebert, escritor de 34 anos sem inspiração, vai viver para uma pequena cidade de Nem Hampshire e apaixona-se por uma rapariga de 15 anos. Esse amor faz com que finalmente escreva um livro que se virá a tornar num enorme best seller ao mesmo tempo que a rapariga desaparece para sempre no dia em que ambos tinham combinado fugir dali para sempre e viver o seu improvável amor.

Markus Goldman, um antigo aluno de Quebert que agora tem 77 anos, também ele numa crise de inspiração, vem ter com o mestre e pedir-lhe conselhos Justamente nessa altura descobre-se o corpo da rapariga, Nola, enterrado no jardim de Québert.. É óbvio que foi assassinada e Québert é preso e acusado do crime.

Markus acredita na inocência de Québert e resolve investigar as causas da morte de Nola que se vão revelando cada vez mais complexas e envolvendo muitos dos habitantes da cidade..

Dessa investigação vai nascer um livro, um best-seller elogiado por toda a imprensa e toda crítica.

A investigação leva Markus de surpresa em surpresa, através de um labirinto de revelações que vai fazendo estalar a superfície de uma cidade aparentemente calma, tranquila e banal.

E depois de, pressionado pelo editor e pela força da máquina de fazer êxitos, terminar e publicar o livro e inocentar o seu professor, Markus descobre que ainda não tinha descoberto a “verdadeira verdade”.

O autor estabelece uma teia notável, uma estrutura narrativa quase perfeita, pontuada pelas lições do seu professor sobre o que é ser escritor. E é essa teia que arrasta o leitor de revelação em revelação com uma

Há qualquer coisa neste romance que nos faz lembrar o “Millenium” de Stieg Larsen com a diferença de que aqui tudo se passa dentro de um a pequena comunidade da Costa Leste americana, com os seus pequenos problemas e traumas, os seus segredos escondidos, as suas invejas e solidões

Larsen deu à sua narrativa uma dimensão política e portanto mais vasta do que a deste universo criado por Joel Dicker.

No entanto, quanto a mim, Dicker aposta na narrativa mas descuida a escrita, Quer dizer, falha, ou deixa de lado o desenho das personagens Parecem-me pouco interessantes, pouco complexas, feitas de papel. E torna a história de amor de Québert pela jovem Nola de 15 anos, que está nos bastidores de tudo, numa historieta que não tem a grandeza nem o delírio que se espera de um amor desesperado de um homem de 34 anos por uma rapariguinha de 15.

Mas há que dizer que se trata de um bom entretenimento para quem espera isso mesmo da leitura de um livro.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

EM NOME DO PAI




Esta "pequena antologia do Pai na poesia portuguesa" tem uma escolha de poesia respeitabilíssima e mostra-nos aquilo que eu já sabia: com raríssimas excepções não há referências ao pai na poesia portuguesa, senão na das últimas décadas.

Vasco Graça Moura faz uma belíssima introdução sobre o tema, usando a sua erudita e elegante forma de pensar e ajudar-nos a pensar sobre a literatura e a poesia.

Curiosamente, e VGM chama a atenção para isso, a quase totalidade dos pais presentes nestes poemas é rural e a sua recordação na palavra dos filhos-poetas é também a recordação de uma certa ruralidade, de uma ligação aos ofícios e à terra, de uma memória dos ciclos da natureza.

Não existem aqui pais da cidade. Ou haverá um ou dois. Quererá isto dizer que os pais da cidade perdem a sua “poeticidade” e que é a ruralidade que lhes confere a grandeza do poema? Não sei.

Sei é que este conjunto de poemas nos permite uma visão breve mas muito interessante sobre alguns nomes cruciais da poesia portuguesa das últimas 2 ou 3 décadas.

Fazer uma antologia é um acto de amor que temos sempre de agradecer ao antologiador porque ele nos dá a conhecer a poesia e nos faz partilhar a paixão por ela a partir de um tema e nos permite o acesso a poetas e a poemas por vezes de grande qualidade mas de circulação muito restrita.

A antologia traz-nos também com frequência uma forma de olhar específica. Porque quem escolhe também exclui.

É pena ter ficado de fora o poeta que talvez mais poemas tenha feito á memória do pai na poesia portuguesa: José Jorge Letria. Vários desses poemas mereciam estar aqui e engrandeceriam esta antologia.

Seja como for, fazem falta antologias. Muitas antologias, controversas, discutíveis, parciais, sobre muitos temas, porque a antologia é um excelente instrumento de abordagem e compreensão transgeracional e diacrónica da identidade que a poesia vai de nós construindo.