sábado, 26 de setembro de 2009

"ALÇAPÃO"


O Manuel Cintra é um amigo bissexto. Aparece e desaparece como as andorinhas. Volta e meia regressa ao beiral, ou melhor, ao telemóvel, e atira-me com uma saraivada de poesia que me deixa arrumado.

Digo "deixa arrumado" porque gosto muito do que o Manuel escreve. E da forma como diz o que escreve. Porque o que ele escreve, como o que eu escrevo, não se destina só ao papel dos livros mas também, quiçá principalmente, à festa da voz.

Os livros sigo-lhos há que anos. Quase sempre publicações fora dos grandes circuitos. Guardo-os como pequenas objectos queridos, pequenas preciosidades, magníficos búzios dados à costa na praia da poesia.

O Manuel Cintra move-se fora dos circuitos oficiais e escreve na linha limite do sangue, sempre com um pé nas estrelas e outro no abismo. Grande poesia. Da melhor que por aí se publica.

Este último livro chama-se "Alçapão". Tem momentos de cortar a respiração.



"...eu estou preso no meu corpo e gostaria tanto uma só vez que fosse o meu corpo a estar preso em mim, mas não, há regras para tudo, até para o desejo de não ter regras."

"Queria uma ternura de carne e osso, um beijo só de lábios, um amor defendido por glóbulos brancos como num processo de infecção queria que uma mulher me infetacsse sem eu a ter procurado, queria uma explosão ensurdecedora, a meio do verão, que me cegasse e corroesse até à medula, até perder os ossos e a dor..."

E etc, e etc, & ETC. Quer dizer… A editora é a & ETC. Mais do que uma editora. Uma trincheira antiga de muitos anos na resistência cultural. Às vezes são discutíveis um pouco oblíquas as suas escolhas. Mas até nisso merece o nosso imenso respeito. Porque o discutível deve acontecer justamente para se discutir.

Guardo alguns muitos dos livros da & ETC como momentos grandes da minha leitura. Por isso, faço uma dupla vénia a este livro que guardarei no lugar dos afectos mais fundos.

O LEITOR VAMPIRO



Javier Cercas, autor espanhol (lembremo-nos, por exemplo, de “Os Soldados de Salamina”), publicou recentemente um artigo na revista semanal de “El País”, que intitulou “El Lector Vampiro”. Artigo extremamente interessante, apoiado em escrito de Saul Bellow (autor do célebre “Herzog”). Assim, logo no início do seu texto, passa a citar Bellow: “Na minha juventude, a literatura fazia parte integrante da vida: absorvia-se, era assimilada pelo nosso organismo. Não se era conhecedor, esteta, amante da literatura. Não, a literatura era uma forma de vida, algo que se ingeria, que passava a fazer parte da nossa própria substância, algo que constituía um caminho de libertação e de liberdade plena”.
Apoiando-se nesta ideia, Cercas continua: “... o leitor vampiro não lê livros: zurze-os, chupa-lhes o sangue, rouba-lhes a alma, não quer ler livros: quer que os livros lidos passem a fazer parte, como disse Bellow, da sua própria substância.”
Interroga-se Javier Cercas sobre o momento em que esta paixão, melhor, esta obsessão, tem início na vida de um cidadão, para concluir que é na adolescência, na juventude, que este “vício” costuma surgir. E quando se chupa o sangue de um livro, não mais se consegue parar...
Não posso deixar de me interrogar por que tenho lido tanto livro ao longo da minha vida. Naturalmente, que aos quinze anos não se procura na literatura o mesmo que se busca aos 75, embora não possa deixar de haver elementos comuns, intrínsecos à personalidade do leitor. Mas por que se lê? Para “vivermos” o que nunca havíamos vivido? Para encontrarmos respostas sobre nós próprios, sobre os outros? Sobre o transcendente? Para fugirmos ao que somos, ao que fazemos? Para ficarmos mais ricos espiritualmente? Para nos aturdirmos (quem nunca experimentou a famosa “bebedeira da leitura”...)?
Sim, talvez se leia por um pouco de tudo isto, talvez mais por uns aspectos do que por outros, consoante as fases da nossa vida. Talvez, talvez, enfim, tantas dúvidas, tantas interrogações, para se caracterizar algo de tão íntimo, tão natural como o ar que se respira – portanto, algo tão difícil de explicar...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

E SE A NET DESAPARECER?




Este Verão fez-me andar num pequeno desatino de leituras selvagens. Os temas cruzaram-se, os livros sobrepuseram-se, alguns não chegaram ao fim... A leitura é mesmo assim. Uma vagabundagem sem rei nem roque ou, melhor, com regras misteriosas que se vão fazendo e desfazendo ao sabor dos dias e das motivações.

Acumulei livros começados: Fernando Rosas e a "História da Primeira República Portuguesa", os dois volumes dos "Estudos oitocentistas" de Joel Serrão, artigos de jornais protelados ao longo do ano, o extraordinário "Margarita e o Mestre" de Mikhail Bulgakov, constos de Katherine Mansfield... Etc, etc, etc.

Pelo meio andou "A Obcessão do fogo", registo de várias conversas entre Umberto Eco e Jean-Claude Carriére, lido com vários intervalos já que os temas abordados e o brilhantismo dos dois dialogantes permitem e até solicitam mastigação cuidada.

Trata-se de um livro extremamente motivador que regista as conversas entre dois bibliófilos que discorrem sobre o livro, a leitura, as bibliotecas, a escrita, a net, os e-books... Um nunca mais acabar de assuntos que se sucedem como pérolas diversas de um colar delirante.

Resumindo: é um livro em que assistimos à conversa com sem regras de dois homens, ambos com um percurso de vida fabuloso, que falam à volta de uma paixão comum: a leitura e os livros.

É um livro que nos ajuda a pensar. E pensar é dos mais sofisticados prazeres a que nos podemos dar nos tempos que correm.

A certa altura, J-C Carriére afirma:

"A ignorãncia está à nossa volta, frequentemente arrogante e reivindicada. E á mesmo provas de proselitismo. É segura de si, proclama o seu domínio pela boca desdenhosa dos políticos. E o saber, frágil e mutável, sempre ameaçado, duvidando de si mesmo, é inquestionável mente um dos últimos refúgios da utopia."

Pensar, saber, aprender é porventura a forma mais eficaz de resistência à ditadura da banalização e da ignorância a que somos sujeitos pelos media, pos muitos políticos e até por ministros e ministras.

Os temas que qtravessam este diálogo não são transponíveis para uma croniqueta como esta e vão do cinema ao erotismo, da organização ou desorganização de uma biblioteca às religiões do Livro, do Budismo às Ciências Ocultas, numa deliciosa deriva que nos arrasta, que nos interroga, que nos faz questionar certezas assentes.

O tema mais forte e, quiçá, mais actual será o do livro, da leitura e da net.

Questiona-se aqui a qualidade e veracidade do que circula na net. Quem verifica a verdade das Wikipédias, das transcrições, das firmações, das autorias?

O que é que vai ficar como memória do nosso tempo? O que está ou que vier a ficar na net para daqui a 100, 200, 300 anos?

E será que a net e o e-book vão acabar com o livro e criar uma ordem de leitura?

Eco afirma que há objectos que nasceram perfeitos. E cita: a roda, a colher, o martelo, o livro e outros. Se acabar o petróleo e a electricidads, se a net acabar, o que nos resta? O livro como guardião do saber (e do não-saber)?

Outra questão levantada e muito pertinente para reflectir perante a invasão dos Magalhães: a escrita é a comunicação biológica, uma técnica que prolonga o corpo e o projecta no mundo. A nova escrita, resultante de uma superlativização do computador, que alterações irá introduzir no eco-sistema do inidivíduo?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

EM DEFESA DA "PEQUENA LITERATURA PARALELA"




Cervantes, no início do D. Quixote, diz-nos da sua obsessão pelo texto escrito. Obsessão tão forte que o levava a ler tudo o que lhe aparecia pela frente, até um simples papelinho caído na rua - enquanto o não lesse, não era capaz de seguir o seu caminho. Enfim, uma verdadeira doença. Eu, se não sou assim, ando por perto: não há publicidade que não leia, seja a que é metida na minha caixa de correio, seja a que é posta nos limpa-pára-brisas do carro. Tudo tem de ser lido, antes de ser metido no lixo e, às vezes, nem para o lixo vai, pois acaba por ficar "arquivado" entre as páginas de um livro, de um caderno. Ora, foi isso que hoje me aconteceu, ao folhear um livro de contos. A marcar uma página, lá estava um papelinho, no qual se anunciavam os serviços de um "Grande Astrólogo, Vidente e Confidente.", de seu nome "Mestre Bá." Nome logo seguido da sua origem: "Africano." Em letra miúda, procedia-se, de seguida, a uma informação mais completa: "Em Lisboa, encontram V. Exas, o melhor cientista que actua em Portugal e na Europa em Ciências Ocultas: com super-magias negra e branca, trata em poucos dias com eficácia qualquer que seja o seu problema. Exemplo: Amor."
Além de uma pontuação muito própria, o que me impressiona é a sua linguagem - directa, simplista, incisiva. Incisividade que se vai intensificando nas linhas seguintes: "Prenda você quem desejar e os fugitivos dos seus pares a dos seus lares voltam em poucos dias para junto. Amarre a si o seu marido ou amante; dominar e ter a seus pés quem desejar, acabam-se os problemas. Também afasta as pessoas indesejáveis."
A marca da oralidade está presente na economia das frases, das mais curtas às mais longas. O uso incorrecto de alguns infinitivos verbais reforça o sentido da mensagem, impregnando-a de uma imperatividade que não pode deixar de ter efeito naqueles a quem se destina.
Para terminar, Mestre Bá fornece a lista dos males do corpo e do espírito passíveis de tratamento. Tratamentos que poderão ser feitos presencialmente ou "à distância, com a Máxima Garantia." Na parte final do textinho, em destaque, vêm os dias e as horas dos atendimentos: todos os dias e, praticamente, a todas as horas...
Publicidade deste género funcionará mesmo? Creio que sim, pois corresponde aos anúncios que os nossos jornais de grande circulação (Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Correio da Manhã) trazem todos os dias. Outro dos indicadores de que disponho é algum conhecimento que vou tendo de pessoas que recorrem com frequência a esses serviços. Não só na província, como nas grandes capitais (Lisboa, Porto), o que me deixa extremamente surpreendido. Surpreendido por esse mundo subterrâneo que connosco coabita e de que só temos notícia esporadicamente, nomeadamente através dos papelinhos que nos deixam nos vidros dos carros, nas caixas do correio; nos textinhos que enchem as páginas dos anúncios classificados dos nossos jornais. Algo como a ponta do "iceberg" que circula nas águas profundas da nossa sociedade. Moral da história: quem não conhece a "pequena literatura paralela", não conhece o mundo em que vive...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A PROPÓSITO DO MEMORIALISMO EM PORTUGAL




Um amigo, sabendo que eu tinha sido colega de curso do José Afonso, na Universidade de Coimbra, enviou-me um livrinho intitulado “Zeca Afonso Antes do Mito”, editado pela Minerva Coimbra. Autor: António dos Santos e Silva, companheiro de muitas andanças coimbrãs do Zeca Afonso. Li a obra com prazer e algum desconforto. Com prazer porque é um texto escrito de forma fluente e ainda por mais duas ou três razões: porque insere o José Afonso na vida estudantil da Coimbra dos anos cinquenta; porque nos dá algumas pistas da sua evolução psicológica (e social); porque aponta algumas das consequências desta evolução no percurso musical do compositor-cantor. Mas também li a obra com algum desconforto porque o texto segue o modelo de muitos outros que abordam temas semelhantes: sobrevalorização do papel do narrador nas suas relações com a personagem objecto do “estudo”; recurso sistemático a episódios em que o José Afonso participou, que se situam no campo do anedotário; porque o texto está eivado de um saudosismo “romantizado” dos bons e velhos tempos em que ambos (o autor e o seu “herói”) eram jovens e idealistas.
Sempre tive uma forte predilecção pelas memórias (ou pseudomemórias) que têm como tema figuras do nosso passado e a sua inserção nos meios urbanos em que viveram (sejam eles Coimbra, Lisboa ou Porto). E sempre cheguei ao fim dessas leituras com a sensação de se ter perdido mais uma oportunidade de se incrementar um género literário tão pouco e tão mal estimado em Portugal: o memorialismo. E poucos também têm sido aqueles que se têm referido à história, às características específicas do nosso memorialismo. De entre eles, quero destacar João Palma Ferreira (autor da melhor tradução, em língua portuguesa, do “Ulisses” de James Joyce, editada pelos Livros do Brasil).
E tudo isto é de estranhar se compararmos com o que se passa em países cuja cultura e literatura mais nos têm influenciado nos últimos dois séculos: a França, a Inglaterra, os Estados Unidos. Países onde abundam livros de memórias, tanto de personagens que se celebrizaram na política, nas letras, nas artes, na vida mundana, como de outras gentes que, embora não bafejadas pela fama, quiseram deixar testemunho de si e dos homens do seu tempo.
Como não temos grandes tradições nem cultura neste domínio, creio que se impõe alguma formação ou, pelo menos, alguma informação (princípios básicos, regras principais) para uso dos escreventes que se aventurem neste género literário.

domingo, 6 de setembro de 2009

Os Factos




... the things that wear you down are also the things that nurture your talent. Yes, there is mystery upon mystery to be uncovered once you abandon the disguises of autobiography and hand the facts over for imagination to work on.

The Facts

Philip Roth


Imagine um escritor que aos 55 anos decide, por força duma inevitável crise de meia idade, escrever a sua autobiografia: a infância numa família equilibrada e dedicada; a adolescência pontuada pelos acontecimentos e incidentes típicos dessa fase existencial; a descoberta do gosto pela literatura e os primeiros textos; os anos decisivos de formação em universidades menores por força da falta de recursos financeiros da família e do sistema de quotas que restringia o acesso de minorias "raciais"; as primeiros posições universitárias como professor de literatura; os "combates" contra críticos e detractores; e sobretudo, as marcantes e fundamentais experiências amorosas.

Imagine também que o escritor, peça a um dos seus personagens que examine o manuscrito e dê a sua opinião. Não um personagem qualquer, mas um dos mais emblemáticos, um personagem cuja "biografia" é apresentada ao longo de vários livros, um escritor judeu norte-americano, 10 anos mais jovem de apelido Zuckerman.

Imagine que o escritor fictício, após a leitura do manuscrito, recomende fortemente ao seu criador que não publique a obra, apresentando a sua crítica em vários planos de argumentação:

Há críticas assaz acutilantes sobre a sobriedade da biografia apresentada. Os elementos? A modesta família judia na suburbana Nova Jérsia, com o seu transbordante bom senso e a sua constante dedicação aos filhos; a tenacidade laborativa do pai contra as adversidades inerentes à sua condição e à sua falta de qualificações; a incansável mãe com o seu optimismo realista; a vizinhança e a escola frequentada por filhos de famílias judias não ortodoxas da classe média baixa; os ídolos desportivos da juventude; os livros essenciais e a paixão pela literatura inglesa; uma quase obsessão pelo relacionamento com mulheres não judias e profundamente problemáticas. Sem dúvida, elementos cardinais, argumenta Zuckerman, mas descritos com uma sobriedade que não é explicativa e que não descortina nada do que é essencial. E o gosto pela literatura?, identidade fundamental, que parece ter nascido por geração espontánea, critica Zuckerman. E donde vem o mistério da necessidade de escrever?, pergunta Zuckerman. Sim, o esforço de escrever é mencionado, mas nada é dito sobre os seus mecanismos internos. Como explicar então algumas das rupturas mais marcantes da obra de Roth? Qual é a génese de Portnoy (outro personagem marcante) e de Zuckerman?, pergunta Zuckerman.

Sim, continua Zuckerman, as mulheres "problemáticas" são centrais em muitos livros e contos, muitas vezes em transcrição quase literal, mas a origem da necessidade de buscar estas ligações é apresentada apenas factualmente, sem qualquer análise, ou melhor psicanálise.

E há a crítica do que não é explicitamente dito, mas que retoricamente significa exactamente o contrário, a bem conhecida figura retórica, occupatio, de Cícero: "Não falemos da riqueza do Império Romano, não falemos das suas majestosas tropas de invasão, etc,". Porém, para um escritor, "os factos, no que concerne à sua identidade de escritor, referem-se necessariamente à inerência de ser escritor. Contudo, há uma infinidade de outros factos, todo o material que gira em torno e que não é coerente ou supostamente importante.". Na verdade, o que o escritor fictício quer dizer é que depois do "Complexo de Portnoy" torna-se impossível descolarmos Philip Roth daquela personagem particular criada pela sua imaginação. E o facto de não haver nos anos de formação de Roth traços de Portnoy (e Zuckerman), parece ser uma figura retórica, ou pior, uma insinceridade.

Finalmente, há o plano do auto-interesse. O escritor fictício revolta-se com a injustiça de estar preso a uma existência que depende da imaginação do escritor real. O escritor fictício, mesmo numa fase de radical transição, a viver em Inglaterra com uma jovem educada em Oxford, não se conforma com o facto de não ter hipótese de poder se libertar das suas raízes, e por culpa do escritor real! E mesmo o seu talento e imaginação nunca serão mais do que imagens especulares da do escritor real, queixa-se Zuckerman!

Bem, são esses os traços mais salientes dum livro estimulante, que ``à maneira de Cícero", evita tocar explicitamente na questão do processo criativo, mas que na verdade, discute-o incessantemente e in vitro. Interessante para os que procuram um primeiro contacto com a obra de Philip Roth, reveladora e fundamental para os conhecedores e admiradores da prosa sofisticada e imaginativa do escritor norte-americano.

Orfeu B.