domingo, 28 de dezembro de 2014

Ultimatum

Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.
Fora tu , Anatole France , Epicuro de farmacopeia homeopática, tenia-Jaurès do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em loiça do século dezassete, falsificada!
Fora tu, Maurice Barrès, feminista da Acção, Châteaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!
Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das partículas alheias, psicólogo de tampa de brasão, reles snob plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!
Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade! Fora! Fora!
Fora tu, George Bernard Shaw, vegeteriano do paradoxo, charlatão da sin- ceridade, tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de ti próprio, Irish Melody calvinista com letra da Origem das Espécies!
Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade !
Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctica cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios!
Fora tu, Yeats da céltica bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres que veio à praia do naufrágio do simbolismo inglês!
Fora ! Fora !
Fora tu, Rapagnetta-Annunzio, banalidade em caracteres gregos, «D. Juan em Patmos» (solo de trombone)!
E tu, Maeterlinck, fogão do Mistério apagado!
E tu, Loti, sopa salgada, fria!
E finalmente tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand! Fora! Fora! Fora!
E se houver outros que faltem, procurem-nos aí para um canto! Tirem isso tudo da minha frente!
Fora com isso tudo! Fora!
Aí ! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismarck sem tampa a estorvar o lume?!
Quem és tu, tu da juba socialista, David Lloyd George, bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!
E tu, Venizelos, fatia de Péricles com manteiga, caída no chão de manteiga para baixo?!
E tu, qualquer outro, todos os outros, açorda Briand-Dato-Boselli da in- competência ante os factos, todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! todos! todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!
E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da Insuficiência da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra! Tudo daqui para fora! Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos! Se não querem sair, fiquem e lavem-se!
Falência geral de tudo por causa de todos ! Falência geral de todos por causa de tudo ! Falência dos povos e dos destinos — falência total! Desfile das nações para o meu Desprezo!
Tu, ambição italiana, cão de colo chamado César!
Tu, «esforço francês», galo depenado com a pele pintada de penas! (Não lhe dêem muita corda senão parte-se!)
Tu organização britânica, com Kitchener no fundo do mar desde o princípio da guerra!
(It’s a long, long way to Tipperary, and a jolly sight longer way to Berlin !) Tu, cultura alemã, Esparta podre com azeite de cristianismo e vinagre de nietzschização, colmeia de lata, transbordeamento imperialóide de servilismo engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força, limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa de malaios, libertação de mola desoprimida
porque se partiu!
Tu, «imperialimo» espanhol, salero em política, com toureiros de sambenito
nas almas ao voltar da esquina e qualidades guerreiras enterradas em Marrocos !
Tu, Estados Unidos da America, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da aÁorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República, extrema- -unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas
naturais em África!
E tu, Brasil «república irmã», blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te
queria descobrir!
Ponham-me um pano por cima de tudo isso!
Fechem-me isso à chave e deitem a chave fora!
Onde estão os antigos, as forças, os homens, os guias, os guardas?
Vão aos cemitérios, que hoje são só nomes nas lápides!
Agora a filosophia é o ter morrido Fouillée!
Agora a arte é o ter ficado Rodin!
Agora a literatura é Barrès significar!
Agora a crítica é haver bestas que não chamam besta ao Bourget!
Agora a política é a degeneração gordurosa da organização da incompetência!
Agora a religião é o catolicismo militante dos taberneiros da fé, o entusiasmo cozinha-franceza dos Maurras de razão-descascada, é a espectaculite dos pragmatistas cristãos, dos intuicionistas católicos, dos ritualistas nirvânicos, angariadores de anúncios para Deus !
Agora é a guerra, jogo do empurra do lado de cá e jogo de porta do lado de lá!
Sufoco de ter só isto à minha volta!
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas !
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo!
Abolição total do passado e do futuro como elementos com que se conte, ou em que se pense, nas soluções políticas. Quebra inteira de todas as continuidades.

3. — Abolição do dogma do objectivismo pessoal. — A objectividade é uma média grosseira entre as subjectividades parciais. Se uma sociedade for composta, por ex., de cinco homens, a, b, c, d, e e, a «verdade» ou «objectividade» para essa sociedade será representada por a+b+c+d+e/5

No futuro cada indivíduo deve tender para realizar em si esta média. Tendência, portanto de cada indivíduo, ou, pelo menos, de cada indivíduo superior, a ser uma harmonia entre as subjectividades alheias (das quais a própria faz parte), para assim se aproximar o mais possível daquela Verdade-Infinito, para a qual idealmente tende a série numérica das verdades parciais.

Resultado:
(a) Em política: O domínio apenas do indivíduo ou dos indivíduos que sejam os mais hábeis Realizadores de Médias, desaparecendo por completo o conceito de que a qualquer indivíduo é lícito ter opiniões sobre política (como sobre qualquer outra coisa), pois que só pode ter opiniões o que for Média.(b) Em arte: Abolição do conceito de Expressão, sustituído pelo de Entre- -Expressão. Só o que tiver a consciência plena de estar exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma (o que for Média portanto) pode ter alcance.
(c) Em filosofia: Substituição do conceito de Filosofia pelo de Ciência, visto a Ciência ser a Média concreta entre as opiniões filosóficas, verificando-se ser média pelo seu «carácter objectivo», isto é, pela sua adaptação ao «universo exterior» que é a Média das subjectividades. Desaparecimento portanto da
Filosofia em proveito da Ciência. Resultados finais, sintéticos:
(a) Em política: Monarquia Científica, antitradicionalista e anti-hereditária, absolutamente espontânea pelo aparecimento sempre imprevisto do Rei-Média. Relegação do Povo ao seu papel cientificamente natural de mero fixador dos impulsos de momento.
(b) Em arte: Substituição da expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, pela sua expressão por (por ex.), dois poetas cada um com quinze ou vinte personalidades, cada uma das quais seja uma Média entre correntes sociais do momento.
(c) Em filosofia: Integração da filosofia na arte e na ciência; desaparecimento, portanto, da filosofia como metafísica-ciência. Desaparecimento de todas as formas do sentimento religioso (desde o cristianismo ao humanitarismo revolucionário) por não representarem uma Média.
Mas qual o Método, o feitio da operação colectiva que há de organizar, nos homens do futuro, esses resultados? Qual o Método operatório inicial?
O Método sabe-o só a geração por quem grito por quem o cio da Europa se roça contra as paredes ! Se eu soubesse o Método, seria eu-próprio toda essa geração!
Mas eu só vejo o Caminho; não sei onde ele vai ter.
Em todo o caso proclamo a necessidade da vinda da Humanidade dos Engenheiros!
Faço mais: garanto absolutamente a vinda da Humanidade dos Engenheiros! Proclamo, para um futuro próximo, a criação científica dos Super-homens! Proclamo a vinda de uma Humanidade matemática e perfeita!

Proclamo a sua Vinda em altos gritos!
Proclamo a sua Obra em altos gritos! Proclamo-A, sem mais nada, em altos gritos!
E proclamo também: Primeiro:
O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo! E proclamo também: Segundo:
O Super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo! E proclamo também: Terceiro:
O Super-homem será, não o mais livre, mas o mais harmónico!
Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços 
erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstractamente o Infinito.


Publicado em Novembro de 1917, no primeiro e único número de Portugal Futurista, este manifesto de Álvaro de Campos é uma reacção ao Manifesto Futurista de Marinetti de 1909, e de outros artísticos que lhe seguiram (o Manifesto Cubista de 1912, o Manifesto Supremacista de Kandinsky de 1915, o Manifesto Dada de Hugo Ball de 1916). O seu título é uma clara alusão ao Ultimatum inglês de 1890 e dá eco aos ideais de independência cultural que esta profunda crise política provocou em Portugal no final do século XIX. O Ultimatum do genial autor do poema da Tabacaria, tenta suscitar o entusiasmo dos criadores de língua portuguesa e lançar um repto ao bafiento e restrito meio artístico da época. As repetidas metáforas relacionadas à comida e a um imaginário antropofágico são a forma estilística mais marcante deste texto que sugere que a superação artística (o desenvolvimento da sensibilidade) exige radicais mudanças de paradigmas sociais, políticos e psíquicos.

É interessante referir que a analogia antropofágica é retomada na língua portuguesa no Manifesto Antropofágico, texto literário escrito por Oswald de Andrade, principal agitador cultural do Modernismo brasileiro. Lido na casa de Mário de Andrade para colegas artistas e escritores em 1928, foi publicado no mesmo ano na Revista de Antropofagia. Neste manifesto, a deglutinação e a digestão da cultura europeia é a fórmula sugerida para dar continuidade ao Modernismo brasileiro iniciado em 1922.                    

Orfeu B.





sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

FAREI O MEU MELHOR




“Um poema não serve para ganhar dinheiro mas serve para reorganizar o mundo”

Cornelius Castoriadis

Como Castoriadis podíamos dizer que o romance, e especialmente o romance em Portugal, não serve para ganhar dinheiro mas serve para reorganizar o mundo.


A verdade é que todos nós somos uma Alice que precisa da chave, da palavra mágica, da pedra filosofal que nos faça atravessar o espelho para nos reencontrarmos do outro lado, mais completos, mais claros, mais pacificados, improvavelmente mais felizes.

Numa sociedade de neurose, de excessivo peso do objecto, uma sociedade dominada por esta economia que mata reduziu a própria arte a uma dimensão de mercadoria, é do lado dessa mesma arte, do lado da literatura, do símbolo, da metáfora, da poesia, que podemos encontrar a chave que nos leve a atravessar o espelho.

Mal iremos sempre que a poesia, o pensamento, a literatura se auto-mutilarem, recusando o diálogo com o mundo e os homens.

Frágil e doente de ultra-romantismo me pareceu sempre a corrente que afirma a independência das artes em relação à espessura da realidade histórica, social ou política,

Um jovem poeta português escreveu há 3 ou 4 anos que:

“Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo…”

Contra este ensimesmamento convoco duas vozes.

Jorge Semprún que, ao falar da experiência extrema da sobrevivência num campo de concentração nazi, dizia que

“… uma voz encostada a outra voz pode chegar para manter um ser humano em vida”

E o que é a Lídia Jorge senão uma voz que se encosta às nossas vozes para nos manter verticais e em vida?

Outra voz, a de Czeslaw Milosz, poeta polaco nascido para a poesia no final da 2ª Guerra Mundial, que afirmava com grande veemência no seu poema “Dedicatória”,

“O que é a poesia que não salva
Nações ou pessoas?
Um conluio com mentiras oficiais,
Uma canção de bêbados cujas gargantas serão cortadas num momento,
Leitura para raparigas de liceu.”

(tradução Jorge Gomes Miranda)

Temos em Portugal uma vasta tradição de poetas e escritores cujas vozes e cujas obras são faróis que nos ajudam a pensar e a situar o nosso pensamento perante a sorte dos homens neste estrepitoso rolar do mundo.

Basta citar, entre vários outros, Antero, Torga, Sophia, Carlos Oliveira ou, mais recentemente, Saramago.

Cada um à sua maneira, todos eles se tornaram faróis que por momentos se exilaram da sua própria originalidade, da sua individualidade criadora, ou melhor, que as completaram, chamando a si o fogo da cidadania, oferecendo aos seus concidadãos uma palavra de consolo, um olhar rebelde e independente, uma capacidade de olhar mais largo e mais fundo.

Longa e, por vezes feroz, tem sido desde sempre a discussão à volta do compromisso dos escritores e dos poetas nomeadamente entre os presencistas e os neo-realistas.

A questão continua a pôr-se de outras formas, noutro cenário social e político, noutro tempo.

Muitos dos que se reclamam da mac-felicidade pós-moderna passam gloriosamente por palcos de purpurina escovando dos ombros os mosquitos da cidadania e do compromisso.

Mas a questão continua de pé. Senão oiçamos o poeta irlandês, prémio Nobel, Seamus Heaney

“Se pensarmos em países como a Rússia ou a Polónia, a Espanha até certo ponto, e talvez a Irlanda, em todos eles os poetas são objecto de uma permanente expectativa. Há aí uma tradição da poesia que faz com que os poetas tenham um compromisso com a História e com o país e faz com que haja um espaço no espírito colectivo para o poeta como figura representativa.”

O poeta fala de poetas talvez no sentido estrito. Eu falo de poetas num sentido largo que engloba obviamente a nossa Lídia Jorge, uma mulher que pela sua escrita e pela sua presença cívica afirma de forma tão elegante quanto incisiva um compromisso com a literatura, com o tempo, com o espírito colectivo de uma nação, através da denúncia dos tropeções diversos que a magoam e da necessidade de voltar a construir um dia limpo e pleno de esperança.

Em tempos, há uns 30 anos talvez, dizia-me um destacado músico que, quando não sabia o que fazer ou em que sentido caminhar, olhava para o Zeca Afonso porque era ele o farol, era ele que apontava os caminhos necessários.

Gosto de pensar assim da Lídia, como um farol para onde podemos olhar quando nos perdemo.

"O organista", um pequeno conto e uma grande obra.Um farol paraentendermos que caminhos podem levar muito longe a literatura em língua portuguesa.

Para terminar talvez possa usar as palavras de Helicon quando pergunta a Calígula na peça de Camus:


HELICON
Em que posso eu ajudar-te ?

CALÍGULA
No impossível !

HELICON
Farei então o meu melhor.

E é a isto que a Lídia nos habituou e que nós esperamos dela em cada obra e em cada uma das suas intervenções, que faça o seu melhor, porque precisamos muito desse melhor, da sua verticalidade e da grandeza com que exerce a sua condição excelente de mulher e de poeta.


sábado, 20 de dezembro de 2014

A Mortalidade do Poema Contínuo

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder


O aparecimento de uma colectânea integral da obra de um grande poeta é sempre motivo de júbilo e celebração. A recente publicação dos Poemas Completos de Herberto Helder não seria excepção, mas ao facto em si há que se adicionar a opção feita, há muito pelo poeta, de viver no anonimato e a implicação implícita de que a sua obra estava encerrada.

Mas o ofício de escrever tem uma lógica própria e um “vício” de muitas décadas não pode, para nossa felicidade, ser completamente silenciado; como um vulcão, o hábito de querer se fazer ouvir, vive longos períodos de dormência até voltar à sua actividade eruptiva quando a pressão magmática aumenta.

Eu julgo que a imagem é particularmente apropriada no que diz respeito a Herberto Helder, um autor inquieto, cuja riqueza e instabilidade biográfica se coaduna com a sua escrita explosiva e visceral.    

O que se conhece do autor de A Colher na Boca (1961), Os Passos em Volta (1963), Húmus (1966), Cinco Canções Lacunares (1968), Photomaton & Vox (1979), A Faca Não Corta o Fogo (2008), Servidões (2013), A Morte sem Mestre (2014) entre outros títulos igualmente essenciais? Que nasceu em 1930 no Funchal no seio de uma família de origem judaica e que passou, inevitavelmente, pelo curso de Direito em Coimbra e que pouco depois se refugiou, também inevitavelmente, na Filologia Românica do curso de Letras da mesma universidade? Que em 1955 frequentou em Lisboa o grupo do Café Gelo, do qual faziam parte Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo e que então trabalhava como propagandista de produtos farmacêuticos? Que … Sim, poderíamos continuar, mas este esboço biográfico, ou talvez qualquer outro mais comprometido e completo, pouco acrescentaria enquanto explicação para a prodigiosa capacidade encantatória da escrita do autor.    

Porque nos ensinou o poeta, aquando da colectânea Ou o Poema Contínuo, que precisamente, a poesia é um fluxo e que enquanto tal não pode ser fixada ou dissecada. Ensinou-nos que o seu entendimento através dos sentidos-sentimentos-razão só pode ser alcançado in vivo, enquanto ela respirar. E talvez mais, que o momento da poesia é o da respiração agonizante do peixe fora d’água, é o instante aquando o sangue perde o seu calor e está ainda vivo, pouco antes de se tornar apenas um fluido inerte.

Sim, a morte interrompe o poeta, com ou sem meios para comprar uma bilha de gás, mas antes do silêncio, há uma centelha magnífica de vida e criatividade através da qual tudo nos é revelado, materializando um generoso vislumbre da solução que explica a galáxia e a pétala.

E depois de desvendada a fórmula, poderemos todos, e poderão os habitantes no futuro, lê-la infinitas vezes para fixar as estrelas ou para torna-las cadentes:

e eu sensível apenas ao papel e à esferográfica:
à mão que me administra a alma


queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima


Orfeu B.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

ROMA, ROMA ROMA




Tinha ficado de olho neste autor, jornalista espanhol de profissão que, como correspondente do El País tem corrido mundo. Da sua estadia aqui ou ali foi escrevendo livros de “Histórias” sobre as cidades que habitou, Londres, Roma, Nova York.

As “Histórias de Roma” dão-nos uma leitura muito pessoal sobe a cidade eterna. A História e as histórias, as pessoas, a comida, o futebol, a política. Não se trata de um guia para turistas Nem pensar. Trata-se sim, de um livro que resulta de uma vivência

O autor leva-nos pela mão, quer dizer, pela palavra, através casas, ruas e ruelas, restaurantes e personagens tão reais como inesquecíveis.

Fala-nos da Roma Imperial e dos seus monumentos, do Vaticano, da corrupção dos políticos, nomeadamente das histórias de Berlusconi, e mostra-nos que os nossos políticos corruptos ainda são amadores perante a grandiosidade e descaramento dos negócios à italiana.

E também nos lembra a grandeza do cinema italiano relembrando Monicelli ou Alberto Sordi, a escrita de Leonardo Sciascia, ou mostra a inesperada formalidade dos italianos.e especialmente dos romanos.

No meio de uma infinidade de pormenores, fiquei algo espantado pela persistente presença do fascismo numa cidade que foi cabeça do regime de Mussolini e onde os sinais de pompa bacoca, de violência gratuita e tribal permanece nas claques da Roma e da Lacio, numa celebração semanal de ritos que bem gostávamos fossem afastados de vez para que a Europa das democracias pudesse florir em pleno.

Vê-se que Eric González gosta de gostar e gosta de partilhar com os seus leitores as coisas de que gosta e as surpresas com que se depara na sua vida de jornalista andarilho.

O livro é editado pela Tinta da China na sua deliciosa colecção onde tem vindo a publicar títulos que guardo com carinho sobre cidades e viagens verdadeiras ou inventadas. Livros que, além do mais têm um design gráfico simples e de rara eficácia e são objectos que sabe bem ter na mão.