domingo, 29 de julho de 2012

A TERRA, O CORPO, A FORÇA DA EMOÇÃO, A FELICIDADE DA ERUDIÇÃO, O PRAZER DE CONTAR UMA HISTÓRIA


Não é frequente os escritores serem tão generosos como valter hugo mãe nas palavras reproduzidas na cinta que envolve este último livro de Afonso Cruz:
 
“Não vou descansar até que todos os leitores descubram o Afonso Cruz. Já prometi usar de violência física para obrigar um a um a ler a maravilha que ele escreve, e não estou a brincar.
Faz-me a alma luxuosa. Passo a ter joias na imaginação.

Estou absolutamente de acordo com o valter. A escrita de Afonso Cruz é como um grande ovo a transbordar de literatura, ou melhor, a transbordar de vida.

Afonso Cruz atinge neste romance um ponto muito alto do seu processo de trabalho. Um sentido duro e trágico da terra e do corpo;  uma erudição partilhada de forma divertida e, por vezes, delirante; uma maneira caleidoscópica de entrelaçar muitas formas de escrita e de referência a outras escritas.

Ao arrepio de uma linha que tende a identificar qualidade literária com geometrismo racionalista, com negritude traçada a regra e esquadro, com uma relação porventura perversa entre leitura e sofrimento, Afonso Cruz faz do processo de criação literária um rio onde desaguam as suas várias formas de se apropriar da respiração da vida e fá-lo de forma em que tragédia e comédia se dão o braço, mas em que, acima de tudo, ressalta o prazer. O prazer de escrever, o prazer de contar, o prazer de pensar, o prazer de inventar, o prazer de viver mesmo nas margens mais ásperas da vida.

Há um jogo fantástico em que o Afonso envolve a sua escrita desde o primeiro livro. Trata-se de um jogo de brincar à erudição, baralhando e voltando a dar, misturando, provocando, divertindo.

Mas neste romance, o Afonso cria um tempo alentejano, uma respiração pesada, uma linha narrativa de Terra, prima dos melhores contos de Manuel da Fonseca. E em redor desse tem entretece e a sua magnífica capacidade de tergiversar, misturar ideias, citações, reflexões avulsas mas subterraneamente interligadas numa trama densa com que nos arranca um sorriso ou uma gargalhada, para logo a seguir nos dar um pontapé no estômago que nos faz perceber que este jogo é muito mais sério do que possa parecer.
 
E é bom sublinhar que a ideia de Jesus Cristo a beber cerveja não é uma graça rasteira mas advém de uma reflexão muito séria do professor Borja, personagem notável, que descobre o fogo do sexo aos 77 anos e que acha que aquilo que cria vida é a morte e que sendo a cerveja resultado do apodrecimento do cereal, é a verdadeira fonte da vida.

No seu jogo de citações, desta vez, o Afonso vai ainda mais longe Inventa um romanceco de cow-boys (que vem em anexo ao livro principal) que é lido por Rosa, a personagem principal, que vai repetir o destino do cow-boy, herói improvável com o nome ainda mais improvável de Harold Estefânia, matador romântico. E desse livrinho, em que o narrador é o próprio deserto, ou seja, talvez aquilo que há de mais próximo do próprio Deus se é que ele existe, saltam muitas citações que vão pontuar a narração central.

Enfim, já era um admirador da escrita do Afonso. Agora sou mais. E acho que este romance junto com “O teu rosto será o último” de João Ricardo Pedro, com o qual, aliás, tem vários pontos de contacto, são os dois romances portugueses que, talvez no último ano, mais me emocionaram.

Isto anda no bom caminho, parece-me. Ao contrário da desgovernação.

Está provado que os homens bons deste país andam muito mais pelas artes do que pela economia e pela política.


quarta-feira, 25 de julho de 2012

DA CRISE INDIVÍDUAL À CRISE COLECTIVA


Quando chegar ao fim da minha vida deixarei milhares de livros que devia ter lido e não li, centenas de escritores que foram ficando infelizmente para trás.

Por isto assumo a leitura como actividade que, sendo naturalmente fundamental na minha vida, acaba por ser sempre arbitrária, já que nunca poderei levar a bom termo nenhum programa de leitura minimamente competente. Melhor, talvez seja outra a competência da escolha mais ou menos arbitrária das leituras.

É claro que este arbitrário não será tão arbitrário assim. De qualquer forma não advém de um programa com qualquer pretensão científica, se é que isso existe. O meu programa de leitura anda às curvas, para um lado e para outro, ao sabor de circunstâncias diversas, outras leituras, referências diversas, opiniões de amigos, etc.

Seja como for, por mais que faça, haverá sempre muitos escritores importantíssimos que nunca li e muitos outros que li e que talvez não sejam assim tão importantes.

Por outro lado, também sei que o que eu leio não é exactamente o que esses escritores escreveram. O que eu leio é o cruzamento dessa escrita e do meu olhar, das minhas emoções, da história da minha vida.

Vem isto a propósito de Saul Bellow, escritor americano Prémio Nobel de 1967, que há muito desejava conhecer e que, por esta ou por aquela razão, não tinha ainda lido.

Comecei por “Aproveita o dia”, uma novela de 125 páginas, publicada há alguns anos numa bela colecção da Texto editora que divulgou obras de vários escritores justamente galardoados com o Nobel como são os casos de Bellow, Eli Wiesel, Nadine Gordimer, etc.


A escrita de Bellow é poderosa, intensa, lenta, circular, traçando uma espécie de monólogo interior obsessivo de um falhado, incapaz de assumir a incapacidade para organizar a sua vida e que atira as culpas de tudo para cima do pai, da ex-mulher, dos ex-patrões, do vago psicólogo que o encanta e vigariza descaradamente.

William, o protagonista,  perto dos 50 anos, entrega-se cegamente nos braços do vigarista que ele reconhece como vigarista mas de quem recebe um simulacro de atenção, de compreensão, de amor que reclama dos seus familiares que exigem tudo dele e nada lhe dão em troca ou é  ele que é incapaz de recolher dos que o cercam e da vida o consolo que tanto deseja.

O texto traz-nos uma miríade de outros pequenos problemas no cenário  apenas entrevisto de uma sociedade em crise. E fala-nos da importância do dinheiro como símbolo de sucesso  na relação com o pai, médico judeu reformado, para quem a incapacidade de gerir a própria vida  familiar e  económico não é merecedora de ajuda mas de desprezo.

E tudo se passa, quase uma vida,  durante um dia, em Nova York, cidade de todos os sonhos e de  todos os falhanços. 

Este William talvez pudesse ser um desempregado no Portugal de hoje. Ou talvez não. Porque no texto de Bellow o problema é o falhanço individual e no nosso país talvez a cara do falhanço seja colectiva, pelo menos na incapacidade colectiva de reagir aos que tecem e dominam os cordelinhos da crise.


domingo, 22 de julho de 2012

Partilhamos hoje as palavras e a experiência de um leitor muito especial que prontamente aceitou ser convidado dos 7leitores. 
O nosso imenso obrigado a Eugénio Lisboa.



O livro – a leitura – a crítica

 Falar do livro e da leitura – nada me poderia ser mais afim – O gosto pelos livros. O gosto pela leitura. O gosto de falar disso. Desde quando os possuo? A verdade – a  verdade – é que me não lembro daquela fase da minha vida em que ainda não lia. Deve ter existido – mas não me lembro. Para mim, estar vivo e ler foram, desde os alvores da consciência, sinónimos. Dizia Holbrook Jackson que “o objectivo da leitura não é mais livros mas sim mais vida” – com o que estou inteiramente de acordo. Há quem goste de estabelecer a oposição, ia a dizer, a luta entre os livros e a vida. Assim, haveria coisas que são vitais e outras que são livrescas. A vida, por um lado, os livros, por outro. Como se os livros e as ideias e emoções que eles nos oferecem não fossem também parte integrante – e essencial! – da nossa vida: “Eu faço parte de tudo o que li” , observou, com justiça, John Kieram. E eu acrescentaria que tudo o que li faz parte de mim. Aperceber-me da existência de um livro, vê-lo, namorá-lo longamente até um dia ter a capacidade de comprá-lo,  ou convencer meu pai a comprar-mo – fez parte do pecúlio essencial de experiências intelectuais e emocionais que me formaram na adolescência e considero inesquecíveis: a memória de tudo isso permanece e dá luz.
Na adolescência, li muito, li vorazmente, desordenadamente, gostosamente, sem planos preestabelecidos, à balda. De certo modo, é ainda esta a minha metodologia – ler sem método, ao sabor do que me vem à mão e parece que me apetece. É curiosamente, um bom método. Noto, por exemplo, que ao redigir um trabalho qualquer sobre um autor qualquer, apetece-me, nesse momento, ler tudo menos esse autor e aquilo que sobre ele se escreveu. E ponho-me, regularmente, nos intervalos que roubo ao trabalho obrigatório, a ler as coisas mais diversas e mais distantes da área em processo de investigação. Eis que, não raramente, verifico que essas obras trazem, inesperada e deslumbradamente, água ao meu moinho. Encontro nelas o que não procurara – e gloriosamente me serve. Os religiosos dizem que Deus escreve direito por linhas tortas. Achar sem procurar, receber sem para isso trabalhar – eis o produto de um amor descabelado aos livros – mesmo sem o espartilho de um método que nos constrange... Por isso compreendi tão bem e aplaudi do fundo do meu coração as palavras de um grande poeta galês, de língua inglesa, Dylan Thomas, quando observou: “ minha educação foi a liberdade que tive de ler em liberdade, o tempo todo, com os olhos a saltarem-me das órbitas.”
Nisto de ler, os apetites são os mais diversos: desde um D’Anunzio que confirmava a um André Gide, espantado, ter lido tudo, até uma Nancy Mitford que, provocante, gostava de dizer: “Em toda a minha vida, só li um livro e esse livro foi White Fang [de Jack London]. É um livro tão tremendamente bom que nunca mais me dei ao trabalho de ler outro.”
Os locais de leitura variam igualmente: o sofá, a cama, de pé, a andar, na praia (com muita areia à mistura), no combóio e até noutros sítios não mencionáveis directamente mas talvez indicáveis dando um exemplo – para o caso, o grande escritor americano, Henry Miller, que não se importava de confessar: “Todas as minhas leituras foram, por assim dizer, feitas na retrete”.
O leitor voraz lê para explorar, com intensidade, outros mundos – embrenha-se, com volúpia, no casulo fechado dos mundos ficcionais, rejeitando, com firmeza, a luz crua do mundo real que abandonou. A descoberta e exploração de novos mundos é também uma descoberta de nós próprios. “Quando lemos um clássico”, dizia Clifton Fadiman. “não vemos mais, no livro, do que víamos antes. Mas vemos mais em nós do que em nós estava antes”.
Quando o vício de ler – o “vício impune”, de que falava Baudelaire  - toma conta de nós, nenhum sacrifício, nenhuma infracção se interpõe entre nós e a aquisição do livro cobiçado: “Quando eu tenho um bocadinho de dinheiro”, confessava Erasmo, “compro livros; e se sobra algum dinheiro, compro então comida e roupas”. Quando eu era estudante universitário, quantas vezes utilizei o dinheiro que meu Pai me enviara de Lourenço Marques, para um fato, na aquisição de um ou outro volume caríssimo da preciosa Bibliothèque de la Pléiade. O fato ficava sempre para o ano seguinte – o livro é que não podia esperar.
A minha adolescência foi rica em leituras apesar de, até certa altura, me não sobrar o dinheiro para livros. Meu Pai lá iludia, de vez em quando, a vigilância aturada da minha Mãe e ia-me trazendo, às escondidas dela, o último livro acabado de chegar no último paquete vindo de Lisboa (eu vivia então em Lourenço Marques, onde nascera). Mas as minhas principais fontes de leitura, a partir dos 15 anos, foram duas: primeiro, as bibliotecas que os colegas de meu Pai deixavam à sua guarda, quando vinham à Europa, de licença graciosa (a qual chegava a durar 11 meses); a segunda, uma pequena biblioteca de perto de cem espécies, que um colega de meu Pai, chamado Abel Menano, irmão do célebre Menano dos fados de Coimbra, me ofereceu: ali encontrei obras preciosas que ainda hoje conservo, de autores que nunca mais me deixaram: Dostoiewsky, Tolstoi, Turguenev, Joseph Conrad, Balzac, Anatole France, D.H. Lawrence, Vitor Hugo, eu sei lá!
Mas havia ainda outra fonte, à qual devo a revelação de um dos meus grandes amores de sempre. Essa fonte era constituída pelos volumes que, em viagem entre Lisboa e Lourenço Marques, se estragavam por apanharem água salgada no porão dos navios que os transportavam. Mandados para o refugo, alguns eram dali recuperados por meu Pai, que mos trazia em triunfo, quais Lusíadas estragadíssimos mas salvos por um bravo Camões na foz do Me Kong. Foi assim que me chegou às mãos o mais belo romance que até hoje se escreveu – Le Rouge et le Noir, de Stendhal, e, por ele, me foi apresentada a mulher por quem nunca mais deixei de ficar em êxtase – a Senhora de Rênal, de Stendhal, que me recuso a considerar criatura de ficção e a quem visito, em livro ou em sonhos, quase todas as semanas. Eis como a literatura se pode tornar vida, mais vida até do que a própria vida, mais intensa, mais reveladora, mais capaz de nos tornar melhores, mais dedicados e mais fieis. A minha ligação à Senhora de Rênal e ao seu criador, Stendhal, começada nos meus 14 ou 15 anos e ainda em vigor – é algo que não admite dúvidas e de que muito me orgulho.
Foi assim, com livros furtados ao controle materno, com livros fruídos em bibliotecas de empréstimo e com volumes estraçalhados pelo oceano e roubados ao refugo, que o meu vício de ler se foi desenvolvendo e me foi abrindo mundos a haver: a maravilhosa  Assia, de Turguenev, descobriu-me mistérios de alma feminina e fez-me sonhar com paixões bizantinas nos incomensuráveis espaços de uma Rússia remota e atormentada; O Lírio Vermelho de Anatole France, ao mesmo tempo que me explicava melhor o ciúme, que também me afligira, abria-me a visão esplendorosa de uma Florença que logo ali jurei visitar;  Les Thibault, de Roger Martin du Gard, abriu-me Paris e deu-me o gosto secreto por uma Gisèle que o pateta do Jacques deixou fanar-se de amor não retribuído, enquanto se perdia nos labirintos psicológicos de uma Jenny tão complicada quanto interessante; Panait Istrati dava-me a Roménia dos cardos do Baragan, tão diferente de tudo quanto conhecia.
Nos intervalos de me banhar nas águas do Índico, com o meu cão Nero, lia Plutarco e Voltaire, mergulhava na Dinamarca de um dos melhores romances que até hoje li – Niels Lyne, de Jens Peter Jacobsen -  ou na Suécia de Sally Salminen, ou no Père Goriot de Balzac. Pelos meus 16 anos,  A Velha Casa, de Régio, abriu-me as portas da adolescência atormentada de Lélito, que me levou, dois anos mais tarde , já em Lisboa, a gastar um dinheiro , que minha Mãe me dera para comprar bilhetes de combóio para as Caldas da Raínha, na aquisição do segundo volume da descomunal Casa. Julgo que minha Mãe  não se reconciliou nunca com esta minha inesperada mas irresistível infracção.
Lia os livros com paixão, mergulhava neles como quem quer sair do quotidiano, mesmo de um quotidiano apetecido. Li um dia, já a viver em Lisboa, numa biografia do escritor francês André Gide, que este, em viagem de carro, pela Europa, com amigos, se pusera a ler, com absorção intensa, a Guerra e Paz, de Tolstoi. O interesse que o livro lhe provocava era tão profundo que, ao pararem o automóvel diante de algum museu, ou catedral ou palácio, Gide tinha que se conter – com dificuldade – para não dizer aos companheiros que fossem eles fazer a visita enquanto ele permanecia na companhia da Natacha e do Pierre do romance de Tolstoi.
Ali, no Índico, com o Nero à minha beira e com a leitura do melhor que o espírito e o coração dos homens produziram, ia-me preparando para a grande aventura de me arrancar àquele grande continente africano para vir conhecer o Portugal de Lélito, o Paris de Martin du Gard, a Londres de Dickens e a Florença de Anatole France.
Lia com intensidade e atenção minuciosa e, quando viável, com o espírito crítico que me era possível agenciar. Lia muito e procurava ler bem – e relia interminavelmente os livros que já então me tinham marcado. Ler ao acaso, sim, mas não ler sem reflexão: “Ler sem reflectir é o mesmo que comer sem digerir”, dizia Edmund Burke. É possível ler-se muito sem que a leitura nos fecunde. Por isso o grande (e recluso) escritor americano J.D. Sallinger, dizia com não pouca verdade: “Sou bastante iletrado, mas li imenso”. Pode ter-se lido imenso e ser-se razoavelmente analfabeto Num ensaio célebre, António Sérgio estabelecia, com a firmeza e clareza que lhe caracterizavam a prosa pessoalíssima, a diferença entre leitura abundante e leitura crítica; e concluía que se pode ter lido muito e não se ser culto, do mesmo modo que se pode ter lido relativamente pouco e ser-se culto. A natureza da leitura – ser ou não ser uma leitura crítica – é que faz ou deixa de fazer o homem culto. A leitura crítica é uma ginástica. “A leitura é para o espírito o que o exercício é para o corpo”, observava Sir Richard Steele. É – ou devia ser. Porque a leitura também pode ser uma forma de preguiça: lê-se para não pensar. Enquanto leio, não penso... Mas leitura crítica não quer dizer resistência a todo o custo às ideias que o livro propõe. Leitura crítica quer dizer leitura vigilante, feita com a inteligência crítica estimulada, pronta a aderir ou a rejeitar, conforme os casos. De contrário, cair-se-á naquilo que dizia o actor Michael Caine; “Leio livros como um danado, mas tenho o cuidado de não me deixar influenciar por nada do que leio”. O receio das influências é sempre uma confissão de pobreza. As naturezas ricas e possantes absorvem tudo e tudo transformam em produto seu. O grande poeta alemão Goethe dizia, com orgulho, que tudo o influenciava, mesmo escritores de quinta categoria: em todos encontrava sempre alguma coisa de interessante que ele próprio não tinha descoberto.
Quando se exerce uma actividade crítica, quando se ensina literatura nas escolas e universidades, a nossa actividade enriquece-nos com tudo aquilo de que nos lembramos e acorre automaticamente ao toque mágico do texto novo que confrontamos. Disse algures que tenho praticado a crítica e o ensaio “como um exercício criativo da memória. Ou antes um exercício criativo, a partir da memória. Não concebo bem a crítica sem uma memória altamente estimulada e pronta ao assalto”. O crítico George Poulet afirmou: “Criticar é lembrarmo-nos”. “Diante de um texto, a memória excita-se e há um certo número de campainhas que começam a retinir: umas mais próximas e nítidas, outras mais longínquas e difusas. Há que investigar absolutamente tudo – pelo menos, em certos casos, não posso deixar de o fazer: torna-se uma espécie de frenesi. De aí que um crítico desta conformação tenha que ser, de certo modo, um eterno desarrumador de bibliotecas.” Dito isto, há porém que apreciar, com cuidado, o uso que se faz destes exercícios da memória: não se recorda pelo amor de recordar, recorda-se como mecanismo estimulador de aproximações criativas. Não se ensina aos jovens as grandes obras da literatura – ensina-se-lhes, isso sim, o amor à leitura. Neste campo, contudo, os homens extremam-se de modo singular. Montesquieu, por um lado, dizia nunca ter conhecido nenhuma depressão que uma hora de leitura não curasse; por outro lado, o grande poeta inglês deste século, Philip Larkins, macambúzio profissional e amante de jázz, observava (perdoem-lhe a rudeza) que os livros não passam de um monte de trampa (era, curiosamente, bibliotecário da Universidade de Hull). Há-os, como se vê, de todos os formatos e cores.
O espirituoso americano Logan Pearsall Smith gostava de afirmar, com o seu toque de provocação: “As pessoas dizem que a vida é que é, mas eu cá prefiro ler.” Pearsall Smith fazia, mais uma vez, a destrinça entre livros e vida. Destrinça que comecei por recusar, no início desta minha conversa  despretensiosa. O que se vive nos livros e dos livros é muitas vezes – em ideias, em emoções – tão ou mais intenso do que o que se vive na chamada e tão mal definida vida. Dizia alguém que a vida é uma doença incurável. A vida que se contém nos grandes livros é imune à doença. Por isso irá durar enquanto durar a aventura humana.
Eugénio Lisboa
                                                 
Leitor convidado: Eugénio Lisboa nasceu em Lourenço Marques, a 25 de Maio de 1930. Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica, no Instituto Superior Técnico. Exerceu a sua actividade como engenheiro a par da docência de cursos de Literatura Portuguesa em Universidades (Lourenço Marques, Pretória e Estocolmo). Foi conselheiro cultural na Embaixada de Portugal em Londres e presidiu à Comissão Nacional da UNESCO. É, também,  poeta, ensaísta, cronista e crítico literário com vasta colaboração em revistas e jornais moçambicanos e portugueses. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Homem e o Animal



"Enganamo-nos completamente sobre a natureza das grandes experiências totalitárias do século XX se nelas vemos apenas uma persecução das últimas grandes tarefas dos Estados-nação oitocentistas: o nacionalismo e o imperialismo. O que está em causa é agora bem diferente e mais extremo, dado que se trata de assumir como tarefa a própria existência factícia dos povos, ou seja, em última análise, a sua vida nua. Deste ponto de vista, os totalitarismo do século XX constituem verdadeiramente a outra face da ideia  hegelo-kojeviana do fim da história: o homem alcançou finalmente o seu télos histórico e nada resta, a uma humanidade de novo tornada animal, que a despolitização das sociedades humanas através do alastramento incondicional da oikonomia, ou a sanção da própria vida biológica como tarefa política (ou melhor, impolítica) suprema.

É provável que o tempo em que vivemos não tenha escapado a essa aporia. Será que não vemos, à nossa volta e mesmo entre nós, homens e povos sem essência e já sem identidade - entregues , por assim dizer, à sua inessencialidade e intolerância - procurar por todo o lado e às cegas, a custo de grosseiras falsificações, uma herança e uma tarefa, uma herança como tarefa? Mesmo a pura e simples deposição de todas as tarefas históricas (reduzidas a simples funções de política interna e internacional), em nome do triunfo da economia, assume hoje frequentemente uma ênfase na qual a própria vida natural e o seu bem-estar parecem apresentar-se como a última tarefa histórica da humanidade - admitindo que faça sentido falar aqui de uma "tarefa".

As potências históricas tradicionais - poesia, religião filosofia - que … mantinham desperto o destino histórico-político dos povos, foram há muito tempo transformados em espectáculos culturais e experiências privadas e perderam toda a eficácia histórica. Perante este eclipse, a única tarefa que parece ainda conservar alguma seriedade é o tomar a cargo e a "gestão integral" da vida biológica, isto é, da própria animalidade do homem. Genoma, economia global, ideologia humanitária são as três faces deste processo em que a humanidade pós-histórica parece assumir a sua própria fisiologia como último e impolítico mandato.

Se a humanidade que tomou em mãos o mandato de gestão integral da própria animalidade é ainda humana, no sentido da máquina antropológica que, decidindo a cada vez acerca do homem e do animal, produzia a humanitas, não é fácil dizer; nem é claro se o bem-estar de uma vida que já não se sabe reconhecer como humana ou animal pode ser dado como satisfatório … A humanização integral do animal coincide com uma animalização integral do homem."     

Giorgio Agamben


A observação duma gravura na Bíblia hebraica do século XIII que se encontra na Biblioteca Ambrosiana em Milão, lança, Giorgio Agamben, um dos mais influentes e originais filósofos do nosso tempo, numa fascinante reflexão sobre a condição humana, a sua separação do mundo animal e sobre o limite crítico do que define o humano. 

A gravura representa três imagens: a visão de Ezequiel; os três animais das origens (o pássaro Ziz, o boi Behemot e o grande peixe Leviatã); o banquete dos justos ainda em vida quando da vinda do Messias. E nesse último fragmento, à sombra de árvores paradisíacas, os justos de cabeça coroada sentam-se a uma mesa ricamente posta. Nada mais canónico: os justos que ao longo de suas vidas observaram as prescrições da Torá se banquetearão com as carnes de Leviatã e de Bohemot. Há porém um detalhe desconcertante: sob as coroas, os justos têm cabeças inequivocamente animais, de águia, de boi, leão, asno e pantera. E dois instrumentistas, um dos quais claramente símio. 

A interpretação talmúdica sugere que no reino messiânico também o mundo animal será transfigurado. É uma interpretação possível, embora não seja de todo a única plausível. Ou era a intenção do artista sugerir que no último dia o próprio homem se reconciliaria com a sua natureza animal? 

A discussão de Agamben é abrangente e profunda e brinda-nos com uma série extremamente original de interpretações da gravura bíblica e de questões relacionadas. O leque de questões é variado: Bataille e um certo gosto pelo grostesco; o sentido da história de Hegel; a escatologia segundo os filósofos medievais; a definição da vida de Aristóteles, e a separação do homem do reino animal; a taxinomia de Lineu (cuja versão original enumerava as sereias junto das focas e que tinha grande dificuldade de situar o homem); a evolução biológica; a máquina antropológica; a origem da linguagem e a demarcação do estatuto especial do homem; Uexkuell e a percepção animal; Heidegger e as suas difusas definições; Benjamin e Ticiano; e uma reflexão final sobre o nosso tempo pós-político. 

Uma leitura refrescante e estimulante.         


Orfeu B.




domingo, 15 de julho de 2012

FALAR DE LIVROS




FALAR DE LIVROS

(Com muita admiração e amizade a Helena Vasconcelos e Eugénio Lisboa)


Receio muito o exercício da opinião, sobretudo quando se torna "profissional" e de olho gordo posto na gorjeta; quando procura criar poder e influência sob a capa da reflexão e da especialização; quando vive das modas, ou seja, do negócio de circunstância; quando usa as cinco estrelas, quatro garfos, três parafusos e meio, uma qualquer tabela classificativa; quando intencionalmente magoa, exclui, ignora.

Exemplos destes lemos larga e regularmente nas páginas de crítica literária, musical, cinematográfica, teatral, de artes plásticas, etc,dos nossos jornais.

"O intelectual, o mandarim universitário, o rato de biblioteca não frequenta a escola da bravura.”, afirma Georges Steiner.


Quando falo de livros falo de uma leitura conduzida de dentro da minha vida. Um encontro humilde e apaixonado, sem outras preocupações que não as de permitir que essa leitura me acrescente. E há um rio que corre do livro lido ao meu encontro , um rio por onde circulam pequenas luzes que me vão iluminar hoje e amanhã e depois.

Citado por Harold Bloom ("Ler" Junho 2012), afirmava Oscar Wilde que: "A crítica literária é a única forma civilizada de autobiografia".

("Quatro entrevistas com Georges Steiner", Ramin Jahanbegloo, Ediçõs Fenda, Lisboa, 2006)


O problema será talvez quando não se tem biografia e só se tem opinião. Mas o pior ainda é quando a ausência de biografia implica a incapacidade de amar e faz com que o opinante se esconda por baixo da capa enganosa de um saber que se a si próprio como único critério de análise.

Eu leio com paixão. E quando a paixão não se solta e os livro nada me acrescenta ao acto de tactear a vida com os dedos, então nem falo desses livros. Secam à nascença. Ficam muito bem guardados na gaveta do esquecimento.

Voltando a Bloom: "Quando somos mais velhos, queremos que a crítica - como o ensino, a leitura, a escrita - não seja apenas humanista, seja também humana. Tem de ser amor à literatura antes de mais nada.

E acrescente-se de novo Georges Steiner:

“Ler não é sofrer mas, falando com propriedade, estarmos prontos a receber em nossa casa um convidado, ao cair da noite.”

Vale a pena ler os grandes leitores. Aprendemos muito com eles. Harold Bloom, Georges Steiner, Eduardo Lourenço.

E eu sei pouco. Mas tenho para a troca.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Não alcançamos a liberdade, buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim mas uma consequência" Tolstoi


Eugénio Lisboa
Vário, Intrépido e Fecundo - uma Homenagem
Opera Omnia

“Apareceu este ano em Portalegre, como oficial miliciano, o aspirante Eugénio Lisboa, que é um dos rapazes mais inteligentes que em toda a minha vida tenho conhecido” Graças a ele tenho tido, no café Central, conversas como julgo nunca tivera em Portalegre”
A anotação de 1954 no “Diário” de José Régio é referida por João Francisco Marques num livro que reúne testemunhos sobre a pessoa e a obra de Eugénio Lisboa, publicado pela editora Opera Omnia com organização de Otília Martins e Onésimo Teotónio de Almeida. Diversos, escritos uns mais para o homenageado, outros mais para o leitor, em total liberdade de quem os escreveu, por conseguinte desiguais.

Trago aqui este livro como exemplo da necessária atenção, que muitas vezes não damos, à pessoa atrás da obra, a quem não é alinhado mas pensa e tem um discurso próprio. Falta-nos em muitos casos este registo, o de testemunhos de convivência. O valor de um pensador é para lá da obra o rastro de influência nos outros e nas suas obras. 

Das obras será o tempo o exator. Mas a pessoa precisa de ser ouvida no tempo certo de partilhar de viva voz a sua insubstituível experiência. Sobretudo, sendo uma pessoa como Eugénio Lisboa, com uma vida de actividades plurais, dividida por vários espaços geográficos e mentalidades, desde Moçambique onde nasceu e viveu 38 anos, a Inglaterra, Lisboa, África do Sul, Suécia e agora Portugal. Há uma ideia de Portugal só possível em quem vê o país na distância, como acontece, também, por exemplo com Rentes de Carvalho ou Eduardo Lourenço. 

O  livro termina com uma entrevista que é uma breve, assertiva mostra da pertinência do pensamento e opinião de Eugénio Lisboa: 
“(…)Somos um país pobre, mas somos sobretudo um país em que os poderes políticos não gostam de gastar dinheiro com a cultura nem com os seus agentes que são, por regra, incómodos.(…)” Eugénio Lisboa.
Sem dúvida, infelizmente, actual.

Estes setenta e três testemunhos, incluindo os organizadores da obra, de muitas figuras do nosso quadro literário e intelectual, são também uma espécie de retratos dos próprios, pois o reflexo de cada um nas palavras que dirigem ao homenageado revela-nos, também, a forma de cada um estar e ver o mundo.

“Desconfio das torres de marfim, e Eugénio Lisboa também. As suas conferências, os seus ensaios, as suas críticas têm sempre algo de muito especial e próprio. Cada citação, cada referência corresponde à ênfase necessária e adequada de um sentido crítico. E se gosto de ouvir a cadência das citações, a verdade é que as referências de Eugénio encantam-me especialmente, porque sei que trazem consigo o lastro seguro de todo o contexto em que nascem e vivem. (…) através de Eugénio Lisboa sabemos com o que contamos. Sabemos que é um leitor criterioso (ensinando-nos a ler), que nos dá a sua perspectiva exigindo que ao lermos sejamos fieis a um sentido crítico pessoal e próprio. Percebe-se pois porque digo que não há dois Eugénios, escritor e engenheiro, há uma personalidade coerente e rigorosa, em que o espirito geométrico e o espirito de fineza se completam, em que o engenho e a cultura formam um só carácter.” 

Uma citação do texto escrito pelo Dr. Guilherme d’Oliveira Martins que reflecte bem o sentimento de quem lê, com gosto, o ensaísta, o crítico,  Eugénio Lisboa.

Sílvia Alves





terça-feira, 3 de julho de 2012

Espinosa - Vida e Obra


Aquilo por que deveremos lutar é por nos libertarmos das paixões - ou, visto que tal é absolutamente impossível, pelo menos por aprendermos a moderá-las e dominá-las - tornando-nos seres activos e autónomos. Se conseguirmos alcançar esta meta, então seremos livres, no sentido em que seja o que for que nos aconteça resultará não das nossas relações com as coisas exteriores a nós, mas na nossa própria natureza … Por conseguinte, libertar-nos-emos realmente da incómoda instabilidade emocional desta vida. O caminho para atingir este objectivo é aumentar o nosso conhecimento, a nossa reserva de ideias adequadas, e eliminar na medida do possível as nossas ideias inadequadas que derivam não apenas da natureza do espírito, mas do facto  de serem uma expressão de como o nosso corpo é afectado pelos outros corpos. Por outras palavras, precisamos de nos libertar da confiança nos sentidos e na imaginação, pois a vida dos sentidos e das imagens é uma vida afectada e conduzida pelos objectos que nos rodeiam, e confiar apenas na medida do possível nas nossas faculdades racionais. 


Uma biografia soberba dum dos mais fecundos e originais fundadores da modernidade. Um retrato magnífico do homem e das condições sociais, políticas e históricas que, nos Países Baixos do Norte, deram origem ao pensamento dum dos mais expressivos defensores da primazia da razão sobre todas as formas de agir e de julgar. 

O autor, Steven Nadler, apresenta-nos com vivas cores a génese da comunidade de judeus portugueses na vibrante e aberta Amsterdão do início do século XVII, e descreve a evolução intelectual do jovem e brilhante Baruch Spinosa (1632 - 1676), filho de judeus portugueses, desde a sua iniciação na tradição escolástica hebraica até a sua excomunhão em 1656, pela apostasia de declarar que Moisés não era o autor do Pentateuco e que a Tora era um documento humano, cujo verdadeiro entendimento exigia uma leitura histórica e antropológica. 

O autor apresenta-nos também, com grande clareza e elegância, a evolução intelectual do jovem Baruch, agora Benedictus, nos estudos clássicos e na radical filosofia de Descartes (1596-1650). O aprofundamento dos seus estudos na senda da dúvida metódica de raiz cartesiana permitiu-lhe desenvolver e conceber o programa de apresentar a filosofia como um conjunto de proposições demonstráveis segundo o método geométrico inspirado no "Elementos" de Euclides (300 AC), ambição plenamente realizada nos vários livros da sua Ética, publicada postumamente.  

Modesto e reservado, o filósofo conduziu a sua vida de forma exemplar e frugal, desfrutando a felicidade que segundo as suas convicções era o bem maior que se poderia extrair duma vida determinada por actos ditados pela razão e pelo conhecimento. 

A sua obra compreende as contribuições fundamentais: Tractatus de Intellectus Emendatione (Tratado sobre a melhoria do entendimento, 1662), onde defende que a leitura secular das escrituras é a única compatível com a razão e a verdade histórica;  Principia philosophiae cartesianae (Princípios da Filosofia Cartesiana, 1663); Tractatus Theologico-Politicus (Tratado Teológico- Político, 1670), publicado anonimamente, onde estão expressas as ideias fundamentais acerca da separação da política e da teologia e as bases do que hoje entendemos por democracia; Tractatus Politicus (1675/76); e postumamente: Compendium grammatices linguae hebraeae (Compêndio de gramática hebraica, 1677); Ethica Ordine Geometrico Demonstrata (Ética, 1677). 


Orfeu B.