quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"(...)/ao cair da noite. Tenho sempre medo que não voltes." Maria do Rosário Pedreira



A Árvore Vermelha

Shaun Tan

Kalandraka


Setembro é o mês de recomeços. Para os dias de ainda Verão mas, por vezes, de céu carregado de nuvens e ameaçadoras tempestades um livro feliz para todas as idades. Um livro irrepreensível como poucos.

Shaun Tan, ilustrador (e não só), nascido na Austrália, em 1974, deve dar por bem empregue o tempo de estudante em que se dedicava ao desenho e exibia o seu talento de desenhador para compensar o facto de ser o mais pequeno da classe. Tem uma obra maior, merecedora de detalhada atenção e entre vários prémios recebeu, em 2011, o Prémio Memorial Astrid Lindgren (ALMA).

Uma menina e o começo de um dia vazio de esperança. As horas passam e nada melhora. Vemos, em grandes imagens, a ameaça da obscuridade, a incomunicabilidade, a falta de sentido e lógica do que acontece ou a espera interminável sem que nada se passe. Uma avalanche de problemas. Coisas maravilhosas que parecem inatingíveis. Não sabe o que fazer nem sabe ao certo quem é ou onde está. Mas eis que, ao terminar o dia, de regresso ao quarto, encontra uma explosão de cor, que tanto pode ser uma voz que soa, um gesto ou uma ideia, em todo o caso um ponto de evasão de todo o drama do dia.

Um olhar atento sobre as belíssimas e surreais ilustrações far-nos-á descobrir uma pequena folha colorida que a acompanha sem que ela disso tenha consciência. A esperança, mesmo nos dias mais negros, é um pequeno detalhe colorido à espera do nosso olhar.

É um livro luminoso. Ofereçam-no!

domingo, 21 de agosto de 2011

“Não devo falar de flores/em tempos favoráveis/à dor das oliveiras" Licínia Quitério





“Poemas do Tempo Breve”

Licínia Quitério

Edição de autor

Nestes tempos temos livros, blogues e redes sociais e risco do tempo ser excessivamente tomado. Mas, como em tudo, o mal e o bem não residem nas coisas mas em nós, no bom ou mau uso que delas fazemos.

Há uma inegável panóplia de possibilidades no mundo on-line. A cargo de cada um o uso assertivo e comedido, para multiplicar os caminhos mas não dividir, irremediavelmente, o tempo. E sim, podemos pôr este mundo ao serviço dos livros, da sua divulgação, da distribuição, da comunicação com os leitores. Aliás, este blogue (7Leitores) também se inscreve nessa intenção. O mundo cresce, a edição multiplica-se e o que nos resta para orientação e escolha é uma proximidade feita de detalhes e afectos.

Há tempos trouxe aqui um livro de Poesia do Henrique Manuel Bento Fialho, uma limitada edição de autor distribuída apenas por envio postal (recentemente sobre ele escreveu Pedro Mexia, no Expresso/Actual/9/7/2011). Este “Poemas do Tempo Breve” segue o mesmo exemplo de distribuição. Assim devia ser a poesia: apenas palavras atiradas ao vento para quem as souber apanhar… Mas é preciso salvaguardar o lado humano dos poetas que têm o hábito de ser mortais e não viver só de luar.

Foi um acaso que me levou a descobrir esta senhora, o seu blogue e depois o livro. Sigam por aqui e saberão do que falo: http://sitiopoema.blogspot.com/

A vida vai-nos dando passado. Um dia olhamos e reparamos que esse tempo é infinita e irremediavelmente maior que o futuro. Devemos cuidar de ter o melhor e mais intenso passado pois cada dia que vivemos é um dia perdido, apenas ganho no que dele restar de memória.

O livro abre com palavras da escritora Cristina Carvalho e do poeta Joaquim Pessoa. Não são prefácios, no sentido comum do termo, nem cedência de simpatia, apenas palavras de quem partilha a respiração da poesia que Licínia Quitério escreve. “Poesia sem tempo e para todo o tempo”, “de procura de novos caminhos”, diz Joaquim Pessoa saindo-se muito bem da difícil tarefa de falar, poeticamente, desta poesia “desassossegada” e, no entanto, portadora de paz, cheia de alma mas, também, de corpo presente.

Lícínia Quitério também ao seu jeito se apresenta. Começa: “Tenho setenta anos”… O tempo de vida é algo que não se recusa. O que sabemos, em certa idade é diferente do que sabemos em outra. O que fazemos, a partir de um certo momento da vida, com os sentimentos, com as palavras, ousando fazê-lo e não desistindo, não deixando que a vida se perca, não é sinónimo de juventude mas de sabedoria.

“Quem quiser saber de mim há-de saber ler os meus poemas. Se deles gostar, bem poderá ser que de mim goste” diz Lícínia.

E na verdade fiquei a gostar desta senhora. Do modo delicado e genuíno como se partilha na poesia que se impõe “como luz e caminho”, assumindo que é preciso saber esperá-la mas também trabalhá-la, desveladamente. E o resultado, por muito trabalho que tenha dado, tem naturalidade e leveza sem ter ausente a profundidade das mágoas que encerra, a inquietação da presença dos outros como existência ou promessa de existirem algures.

NÃO DEVO FALAR

“Não devo falar de flores/em tempos favoráveis/à dor das oliveiras (…)//Direi então devagarinho/do desenho das dálias/na memória dos canteiros/da palpitação das asas/da borboleta em fuga/do silvo dos comboios/rasando as oliveiras//”

Sente-se uma correspondência discreta e forte entre o escrito e a essência de quem escreve. Gostei imenso de a ler. Pela sabedoria e serenidade que emana da sua poesia, sem, no entanto, perder frescura e alguma inocência que o anúncio do início, “tenho 70 anos”, nos pode fazer estranhar neste tempo em que as pessoas se libertam da Vida demasiado cedo.

POR VEZES

“Por vezes tudo se confunde. As minhas mãos/são sol dentro das tuas e há cintilações nos campos/do Outono onde se guardam nuvens e esmeraldas./(…)/Por vezes sou o Verão a suportar a casa./Por vezes sou a casa e acolho a sombra./Por vezes tudo se confunde e sou a sombra./Por vezes//”.

A Poesia que canta o amor mesmo no meio da solidão, à luz ténue de uma longínqua, quiçá impossível, esperança.

ESTOU SÓ

“Estou só. Semicerro os olhos e vejo-te no longe,
a acenar. A tua mão é a corrente a que me prendo
por vontade, a demorar o tempo de partir.
Hei-de saber, amor, se nome tem esta batida
do meu coração dentro do teu. Vem para o pé
de mim. Senta-te no sofá que guarda a forma
do teu corpo intenso, com cheiro ao veludo das manhãs.
Fala-me mesmo que as palavras nada digam
a não ser o que sempre dissemos e continuaremos
a dizer até ao fim dos dias. Preciso da tua voz
no meu ouvido para saber o canto das marés.
Não tenhas pressa. Amanhã sairemos à rua
e seremos a febre de todas as lutas e abraçaremos
os amigos que não envelheceram, que não adormeceram
nos tapetes de flores. E nós, que nos amamos
para além do nevoeiro, há muito a encobrir a nossa rua,
beijar-nos-emos no meio da multidão, e o sol virá.
Seremos árvores até que delas fique não mais
do que um recorte em águas vivas onde repousa o céu.”

Poesia que embrulha delicadamente a mágoa das partidas, o que fica para trás. O que levamos é sempre o que vimos e sentimos, mais nada. Não vivemos por delegação. Bom e mau tudo passa por nós, pela alma e pelo corpo. São nossas as memórias, são nossas as cicatrizes e a dor cíclica que o tempo traz ao dobrar das datas.

A Poesia é o que fica do indizível.

AMEI O VERÃO

“Amei o verão e as sombras ofertantes
de grutas e desvãos e amáveis
copas aos tórridos amantes.
Imensa a praia onde me deitei
e mais ninguém pisou como eu pisei.
Eram então os dias em que o corpo
se vestia de carmim e açafrão
para receber o desenho dos pássaros
na frescura da lâmina da tarde
e a minha escrita era líquida e nua
a deixar-se tomar por peixes verdes
que um poeta andarilho me oferecera.

Foi claro e breve o tempo da inocência.
A praia essa continua imensa.”

Todos os dias o blogue da Licinia é visitável. http://sitiopoema.blogspot.com/

Como diz nunca se sabe quando os poemas nos visitam. Como nunca sabemos quando os sentimentos batem à porta ou quando entram, não costumam pedir licença, ou quando partem, também sem aviso prévio. A vida continua seja ou não feita de dias felizes, feita das memórias que nos acompanham tornando-nos, simultaneamente, mais densos e mais leves.

“em tempos favoráveis/à dor das oliveiras” a Poesia é o que resta a preencher as mãos, a amparar a alma, a guiar a esperança. Não estou certa de que todos os poetas sempre acreditem mas sei que escrevendo nos ofertam a nós, leitores, o dom de não deixar de acreditar na incessante busca da felicidade.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O SENTIDO DO MUNDO



"Uma das maiores satisfações da minha vida não me foi dada pelos livros que escrevi mas pelos livros que editei"

Isto afirmava Ricardo Menéndez Salmón, escritor e editor, num artigo publicado pela Babélia há cerca de um ano.

Dizia Borges que precisava de duas vidas: uma para ler e outra para escrever. E Menéndez acrescenta um terceiro caminho, o da edição, "...que integra o melhor de ambos os mundos e ensina, como uma imperecível lição de humildade, que bela, necessária e nobre continua a ser esta velha arte de dotar o mundo de sentido através da palavra."

Vem isto a propósito do meu amigo João Rodrigues, editor da Sextante. Ele edita livros de que gosta e fala deles com um entusiasmo que nos obriga a ir lê-los depressa.

Falei-lhe do escritor italiano Erri de Luca e do encanto que tive a ler "O peso da borboleta" de que já aqui falei. O João disse-me que o mais impressionante livro de de Luca era "Três cavalos" e tinha-o ele editado na Biblioteca Âmbar de Bolso de que foi editor e onde publicou alguns notáveis autores.

A colecção acabou. Os seus livrinhos encontram-se por vezes nalgumas feiras do livro a preço de saldo ou mais baixo ainda.

Preparei-me para me fazer ao caminho em busca de "Os três cavalos" quando, inesperadamente, o encontrei no fundo de uma das pilhas dos livros que tenho para ler nos próximos meses, ou anos, ou...

Atirei-me a ele. E foi emocionante. De Luca é um escritor raro. Um poeta. Porque o seu trabalho não é apenas contar uma história. O seu trabalho é reinventar o mundo, encontrar novos caminhos para o entender, para o nomear através do ofício das palavras.

A história é a de um ex-militante político que, por amor a uma mulher depois assassinada, torna-se combatente contra a ditadura dos generais na Argentina.

Depois de uma longa fuga de anos, regressa ao sul de Itália onde se torna jardineiro.

Tem em Salim, emigrante africano, um amigo sólido, um homem como ele, um irmão como se verá no final. Muito entre eles passa pelo não dito ou, melhor, pelas metáforas secas e duras. E tudo também assim: acção e linguagem agarradas ao chão, à busca de um outro sentido para o mundo.

O tempo narrativo é sempre o presente, mesmo o que já aconteceu há 20 anos. se passa à volta das árvores, das ervas, da terra, das azeitonas, do café, do vinho.

O narrador reencontra o amor numa prostituta. Um amor também contido, feito de toques, de cheiros, de geometrias cuidadosas. E messe amor se cruza a sua história de combatente. E tudo regressa ao presente ou talvez nunca daí tenha saído.




sábado, 6 de agosto de 2011

"Pelo sonho é que vamos,/Comovidos e mudos./ Chegamos?/ Não chegamos? Haja ou não frutos,/Pelo Sonho é que vamos.//" Sebastião da Gama

O Professor

Frank MacCourt

Editorial Presença

Frank McCourt tornou-se conhecido com “As Cinzas de Ângela”, o livro com que recebeu, em 1997, o Prémio Pullitzer. Neste seu livro, “As Cinzas de Angela”, foi adaptado para cinema mas nunca vi o filme, conta de forma extraordinária a miséria escura e terrível dos tempos da sua infância, em Limerick, na Irlanda, imagens não farão melhor.

Frank McCourt nasceu em 1930, em Brooklyn, Nova Iorque mas cresceu na Irlanda, a terra natal da família, com muitos irmãos, muita pobreza e um pai alcoólico. A sua vida foi tudo menos fácil. Aos 14 anos deixou a escola para ajudar a família. Aos 19 anos deixa a Irlanda e volta para os EUA onde trabalhando e estudando se torna professor.

A sua vida é ela própria um exemplo de como não há lugar ou adversidade que nos possa vencer. Ao mesmo tempo uma verdade e uma falácia. Acreditemos na melhor possibilidade.

Ser professor é algo que se aprende a ser, como tudo. Ser bom professor também depende, para lá da experiência e do saber adquirido, de um talento inato e variável com que uns e outros são mais ou menos dotados. Exige dedicação, talento e muita paciência, auto-estima também ajuda bastante.

Falhar como professor não faz, directamente, cair uma ponte ou deixa alguém a morrer mas ser professor é um contributo para a formação de todos enquanto profissionais, enquanto pessoas. Há muita responsabilidade, e nobreza, na profissão, na missão que uns executam e outros fingem

Este “O Professor” é um excelente retrato da vida um professor norte-americano ao longo de três década, dos seus dramas, alegrias, expectativas e fragilidades. O retrato, também, de uma sociedade, de uma escola à imagem dessa sociedade. As semelhanças com os dias de hoje são muitas.

O prólogo são oito páginas que vos aconselho, certa de que elas vos levarão a ler o livro mais do que algo que eu sobre ele possa dizer. Em algum momento, em alguma escola, algum professor se reverá naquelas reflexões.

“(…) onde é que eu arranjei coragem para pensar que seria capaz de lidar com adolescentes americanos? Ignorância. Foi daí que veio a minha coragem. Estamos na era Eisenhower. E os jornais falam da profunda infelicidade dos adolescentes americanos. São os Filhos Perdidos dos Filhos Perdidos da Geração Perdida”. Os filmes, os musicais, os livros falam da sua infelicidade: Fúria de Viver, Sementes de Violência, West Side Story, À Espera no Centeio. Têm um discurso desesperante. A vida não faz qualquer sentido! (…)”

(Se quiserem ouvir os “Deolinda” enquanto lêem…)

“Se falarmos com agressividade ou rispidez perdermo-los. É isso que, em geral, recebem dos pais e das escolas. Se contra-atacam com o seu silêncio aquela turma está acabada para nós.”

E, no entanto, nenhum professor pode abdicar de firmeza no seu discurso.

“A trinta anos casei com a Alberta Small e fui tirar o mestrado em Literatura Inglesa (…) O grau de Mestre ajudar-me ia a subir na visa, a ser mais respeitado e a ter um ordenado mais alto como professor.”

As coisas não mudam tanto assim…

“Os professores universitários podiam subir para o estrado e dar as aulas que lhes apetecesse dar, sem nunca terem de recear que alguém o contradissesse ou questionasse. Era uma vida invejável. Nunca tinham de dizer a ninguém, Senta-te; Abre o livro; Não, não podes ir lá fora (…) Tinha inveja dos professores universitários em geral, das suas quatro ou cinco aulas semanais. Eu tinha vinte e cinco aulas por semana. Eles tinham toda a autoridade. Eu tinha de conquistar a minha.”

Uma verdade. Por muito que os professores universitários digam que não é tanto assim…

“Mr. McCourt, o que vem a ser isto nesta sala? Os seus alunos estão a ler receitas? Por amor de Deus! A cantar receitas? Está a gozar connosco? Quer fazer o favor de explicar o que é que isto tem a ver com o ensino do Inglês? Onde é que estão as aulas de Literatura inglesa ou americana ou lá o que seja (…) estes miúdos estão a ser preparados para entrar nas melhores universidades do país. É assim que está a contribuir para isso?”

Todos os que conhecem a realidade da escola sabem que há muita vida para lá dos planos. Na escola onde entram todos e levam com eles a família e a sociedade onde crescem, preparar os alunos para o melhor, a melhor universidade, o melhor emprego, a melhor família, uma melhor sociedade é um tortuoso caminho sem receita e com muitas inovações pelo meio.

“Estava na altura de me reformar, de viver da reforma de professor que não era nada generosa. Vou ler os livros que deixei por ler durante estes trinta anos. Vou passar horas a fio na biblioteca (…) andar pelas ruas, beber uma cerveja, (…) aprender a tocar guitarra e cem canções para acompanhar à guitarra, levar a minha filha Maggie a jantar no Village, escrever nos meus cadernos. Pode ser que saia qualquer coisa. Hei-de sobreviver”

Ler, o mais possível, a única coisa que um professor (e um aluno) deve fazer sem limite no início, no meio e no fim de tudo o que pretenda levar a bom porto.

E há o humor, (por vezes negro) na vida de um professor, sobre esse não transcrevo exemplos, há tantos!

Este livro, “O Professor”, foi publicado em 2005. Frank McCourt morreu em 2009.

Numa altura em mais uma vez nos preparamos para, em breve, recomeçar o ano lectivo com um novo habitante na 5 de Outubro, os mesmos alunos, professores e pais… Há coisas a desenhar a régua e esquadro, a aplicar com todo o rigor matemático. Mas há também o Homem com a complexidade de afectos que subverte todas as equações.

Uma boa leitura para todos, Nuno Crato incluído.