domingo, 27 de dezembro de 2009

A MÚSICA DA FOME



Entro na leitura de Clézio como se entrasse numa igreja ou numa catedral. A frase inicial “Conheço a fome, senti-a.” soa como um arco tenso que me atira a flecha das palavras sem adornos e me coloca frente a uma raiz carregada de emoção e verdade.

Essa emoção conduziu-me ao longo do livro entregue às palavras trabalhadas musicalmente num andamento cuidadoso, contido e seguro.

Tudo se passa nos olhares dos personagens, nas suas interrogações e memórias que se cruzam para construir o tempo da 2ª Guerra Mundial em França. O tempo da fome. E não é só de fome de comida que o livro fala, embora seja esse o seu ponto de partida e o seu cenário de fundo onde se move a principal personagem, Ethel que atrevessa a fome enquanto atravessa a adolescência.

Todo o romance me transportou para um tempo que não foi o meu, uma cidade que não foi nem é a minha, uma forma de olhar que não será a minha. E, no entanto, deve ser esse o sinal da boa literatura ou simplesmente da literatura, reconheço-me nas ruas, nos sobresaltos, nos olhares e nos silêncios que vão anunciando o naufrágio de uma família francesa com origem na Ilha Maurícia como o próprio autor.

Naufrágio dentro de outro naufrágio. Porque o pai, Alexandre, embarca em todos os negócios falhados, todos os naufrágios anunciados. E o único sonho verdadeiro, partilhado pela pequena Ethel e pelo tio avô, a construção da Casa Cor de Malva, acaba por falhar com a morte do tio avô e o apodrecimento das madeiras.

A mãe, Justine, embora se mantenha de pé até ao fim, falha perante o amor de Alexandre com Maude, e perde-se em discussões de que Ethel vai ouvindo aqui e ali apenas farrapos e reflexos.

No salão, à volta de Alexandre, juntam-se chauvinistas, anti-semitas, reaccionários, fascitoides que através dos seus diálogos nos vão dando a compasso a música do caminho para o abismo da guerra.

A guerra chega e vem a fome, descrita em pinceladas comoventes. E esta fome,
física, de tão absorvente, até parece aliviar a outra, a fome de alegria e de sonho.

O amor de Ethel por um silencioso inglês, amor aparentemente realizado embora sem palavras, leva-a para o Canadá no fim da guerra e da adolescência, afastando-a assim desta música e desta fome que talvez não termine, conforme nos é sugerido pela visita do filho de Ethel a Paris nas páginas finais.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O CONTO NORTE-AMERICANO NA ACTUALIDADE: RICHARD LANGE


Lange, Richard Lange, tem sido considerado pela crítica como um continuador de Raymond Carver ou, pelo menos, como alguém que lhe está muito próximo. Não sei se será exactamente assim. Enquanto em Carver as descrições objectivas de situações e de comportamentos (verbais e não verbais) das personagens assumem um papel central no processo de construção da história, em Lange as descrições não têm a mesma centralidade no processo narrativo, nem se situam num plano de pura objectividade. Constituem, sim, referências para um conhecimento do mundo de emoções, de pensamentos do narrador, enquanto personagem principal da história.
Se podemos considerar Carver um escritor pós-modernista (na acepção que lhe é atribuída por Douwe Fokkema), o mesmo não se poderá dizer de Lange, que se situa entre o modernismo e o pós-modernismo, na medida em que utiliza elementos de um e de outro destes dois movimentos, como se poderá verificar num dos seus livros mais recentes, “Dead Boys” (Little Brown and Company, USA ou Albin Michel, France).
Estamos, pois, perante uma escrita híbrida, o que não lhe retira legitimidade. Em última instância, podemos considerar que é uma expressão da cultura de uma época em que foram ultrapassadas as oposições entre escolas literárias.
“Dead Boys” é uma colectânea de doze contos que se estendem por cerca de 290 páginas (na edição francesa), que abordam temas variados, a constituir um fresco da sociedade norte-americana de hoje. “Bank of America”, o primeiro conto, é um texto que, do ponto de vista formal, deve algo a Carver, nomeadamente na organização das sequências preparatórias do assalto ao banco. De destacar a caracterização das personagens que compõem o grupo que prepara o assalto. Caracterização indirecta, decorrente da sua participação no processo que antecede a acção, mas extremamente conseguida. Personagens de nomes sugestivos, como Moriarty, o cérebro, o eixo do mal.
Num outro conto, “Fuzzyland”, Lange relata-nos a relação entre um irmão e a sua irmã, relação marcada pela violação da irmã por um desconhecido, o que nos sugere o clima de violência que se vive naquela comunidade da pequena burguesia das imediações de Los Angeles/Hollywood. Violência que se esconde nas pregas de um viver e de um estar em que, aparentemente, nada acontece. O incêndio que lavra nas montanhas que rodeiam a cidade é um marcador que pontua a narrativa e anuncia o drama que se oculta no quotidiano do autor-narrador. Nada é explícito, tudo se vai revelando insinuosamente, a criar uma tensão difusa, mais causadora de perplexidade do que de mal-estar.
“Tout ce qui est beau est bom” é o título (na edição francesa) de um dos contos mais característicos de Richard Lange, estruturado sob a forma de conjunto de fragmentos, aleatórios em relação à história que se vai urdindo (a progressiva perturbação psíquica de alguém abandonado pela namorada). Fragmentos que têm, ainda, uma outra função: revelar ao leitor o esqueleto a partir do qual se construiu a história. O que não é habitual na literatura ficcional, que nos apresenta a história acabada e nunca o processo da sua construção.
Por tudo isto e por algumas razões mais, uma pergunta: para quando uma tradução portuguesa dos contos de Lange?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A Ilha das vozes


A mensagem do José Fanha tem vários pontos de contacto com o que escrevo agora. Também eu tenho um livro, A Ilha do Tesouro do Robert Louis Stevenson, na prateleira a aguardar um espaço entre as leituras vagabundas. Também na mesma colecção da Presença saiu recentemente uma selecção (sempre do Borges) de contos do Stevenson (A Ilha das Vozes). Ambientados quase todos nas ilhas para onde o autor se retirou por motivo de doença, entramos num mundo de magia, feitiços, encantos e aventura. Globalmernte o livro deixou-me encantado, mas o mesmo não posso dizer do conjunto da colecção que contem alguns volumes brem fraquitos.


Boas festas com boas leituras

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

BARTLEBY, O ESCRIVÃO



O que é escrever bem?, perguntou-me uma das minhas filha. Não é fácil encontrar resposta imediata. Mas estou certo que se quiser dizer a alguém o que é escrever bem dar-lhe-ei a ler este conto ou novela de Melville.

Herman Melleville escreveu um dos mais notáveis romances da história da literatura: "Moby Dick". É obrigatório lê-lo, farto-me de dizê-lo às filhas. E eu, miserável leitor vagabundo, tenho-o adiado na estante das urgências e envergonhadamente confesso que ainda não o li.

Mal vi este "Bartleby" agarrei-me a ele numa espécie de acto de contrição. Trata-se de um conto único, construído em torno de uma personagem enigmática e simbólica, Bartleby, o escrivão, sobre o qual muitos outros escritores se tâm debruçado, nomeadamente Jorge Luís Borges que faz a apresentação do conto nesta "Biblioteca de Babel" em que o grande escritor argentino juntou algumas obras primas da literatura fantástica e que, em boa hora, a Presença tem vindo a publicar, contando já com obras de Papini, Chesterton, Edgar Allan Poe, Kipling ou Jack London.

São pequenas jóias publicadas com a deliciosa apresentação gráfica da edição italiana.

Bartleby é o escrivão que começa a trabalhar no escritório de um notário e que se recusa a obedecer a qualquer ordem do patrão argumentando apenas que: "Preferia não fazer isso." E o narrador, o seu patrão fica paralisado perante o inesperado da resposta que se vai repetindo.

De início Bartleby prefere não fazer pequenas tarefas, depois, prefere não trabalhar e pasa o dia à janela. Quando o patrão o despede, Bartleby prefere não sair do escritório. Incapaz de lidar com a situação

É fantástica a sequência de reflexões que o patrão/narrador faz para tentar compreender as razões de um comportamente cada vez mais absurdo e desesperado que levará Bartleby à morte, provavelmente porque prefere não viver.

O ritmo da escrita de Melville que nos leva a mergulhar progressivamente nesse absurdo é irresistível.

E quando chegamos ao fim, sem saber bem o que dizer, ficamos revelados e envolvidos na frase com que o autor termina escrevendo:

"Ah! Bartleby! Ah! Humanidade"

sábado, 19 de dezembro de 2009

"ARQUIVO POÉTICO DA GRANDE GUERRA"




Há anos, há muitos anos, descobri num alfarrabista do Porto um livro que recolhe muita da produção poética de soldados, de oficiais, de sargentos portugueses que combateram em França durante a Primeira Grande Guerra (1914-1918). Poesias, dezenas de poesias, que vão de 1917 a 1918, os anos de permanência do exército português em França , A obra, que se intitula "Arquivo Poético da Grande Guerra", foi organizada por Almeida Russo, "tenente miliciano de artilharia", e foi publicada no Porto, em data não mencionada, mas que não deve ultrapassar os inícios dos anos vinte. Nela se incluem poemas de valia e de estilos muito diferentes, todos subordinados a uma mesma grande temática: a guerra. A guerra e os pensamentos, os sentimentos de quem nela participa (e vê a morte em cada granada de morteiro que lhe cai na trincheira). A morte, o perigo, o medo, a coragem, a saudade, a esperança, atravessam as páginas deste cancioneiro de soldados que mal sabem escrever, de jovens oficiais com arrebiques de cultura de salão. Textos escritos na lama das trincheiras ou nas tarimbas dos campos-prisão alemães. Campos repletos de oficiais apanhados na derrocada do 9 de Abril de 1918, em La Lys. Entre eles, Hernâni Cidade, com os sonetos Pátria Gloriosa e Pátria Dolorora (será Dolorosa?).
De tudo o que li, quero fazer sobressair dois poemas. O primeiro, de autor não mencionado, intitula-se "Oração" e foi escrito no campo-prisão de Breesen in Mecklemburg, e constitui um dos relatos mais fidedignos da batalha de La Lys (o maior desastre militar português depois de Alcácer-Quibir). Descrição cuidada, de quem tem algum domínio da arte poética, descrição em tudo coincidente com os relatos feitos posteriormente por quem lá esteve. Entre eles, Hernâni Cidade, futuro professor da Faculdade de Letras de Lisboa e figura grande da literatura e da cultura portuguesas de meados do século XX. O poema divide-se em três partes: na 1ª, canta-se a mansidão da natureza nesse amanhecer do dia 9 de Abril; na 2ª, o fragor, a loucura da batalha; a 3ª parte fala-nos do silêncio que regressa ao campo de batalha, agora coberto de mortos e feridos. Uma autêntica sinfonia à Prokofiev, em filme de Eisenstein.
A ilustrar o que acabo de dizer, transcrevo as primeiras estrofes:

Já rompia a madrugada,
Nem um só tiro se ouvia;
Par'cia a guerra acabada,
Bem-dita Virgem Maria!

***

De repente, sobre as linhas
Começa a nevoa a trepar;
- Adeus homens e casinhas,
Já não vos posso enxergar.

Na segunda parte, sobressaem versos como os que se seguem:

Nisto o silencio findou
Naquela imensa fornalha:
Passava, correndo, a metralha.
- Senhor Deus, onde é que estou?

***

Chovem balas e granadas;
Fusilaria tremenda;
No ar há clarões de fogo;
Não há ninguém que se entenda.

***

O silencio da vida há pouco
É agora gritaria…
Cada homem é um louco...
Valha-nos Santa-Maria!...

***

Os valados levam sangue...
Já cheira a carne queimada...
Ai que medonho festim!...
Que medonha madrugada!...

***

Gemidos, profundos ais,
Vinham numa voz geral.
- Pobres noivos, tristes pais.
Ai! Portugal, Portugal!...

A terceira e última parte dá-nos testemunho da derrocada das nossas tropas e da carnificina que se lhe seguiu. Portanto, da nossa Derrota, da Vitória da Morte:

Rapaziada, gente môça,
Quasi toda ali morreu;
Mas todos morreram nobres:
Desde o fidalgo ao plebeu!

Dobra, dobra coração!
Dobra num sino dorido!
Vai dizer a cada mãe
Que tem o filho perdido!

***

«Ai minha mãe, minha mãe,
Que morremos sem ninguém»

E a morte passava e via.
- Padre Nosso, Ave Maria!...

Sim, uma oração, mas também um hino à tragédia de um povo que não tem nas veias a vocação da belicidade...
Para além de constituir um documento histórico de valor, este "Arquivo" também nos dá a dimensão humana dos que combateram na Grande Guerra. Nomeadamente do soldado saído da sua aldeia para ir bater-se nas planícies do leste da França, terra que nada lhe diz, habitada por gentes estranhas, de falas arrevesadas. E entre os "poetas soldados", como lhes chama o organizador da colectânea, avulta Américo Mendes de Vasconcelos, "O Palhaes", do Regimento de Infantaria 13, de Vila Real, morto na linha da frente, em La Gorgue. Poemas eivados de ironia, de humor, de dramaticidade, de crítica social e auto-análise psicológica, a constituírem um dos textos mais impressionantes desta antologia. O poema inicia-se com a descrição da partida do seu regimento de Vila Real, a viagem até à estação da Régua, desta ao Porto e daqui para Lisboa, onde embarcam no navio que os há-de levar até França, o local onde os esperam todos os combates.
Na transcrição de excertos, que a seguir se faz, guarda-se a grafia da escrita original, o que permite ver algumas das dificuldades ortográficas de "O Palhaes", que em nada desvalorizam o texto, antes, pelo contrário, lhe confere força da autenticidade. O poema inicia-se com o lamento do soldado que tem de partir para a guerra, mas rapidamente adquire uma tonalidade muito própria, na qual se expressa um finíssimo sentido de humor, em que nada, ou ninguém é poupado – nem o próprio:

No dia 21 de Abril
Grandes casos presenciei:
Partiu o 13 para França...
Eu muitas lagrimas chorei.

Às 10 horas da manhã
Tocou a deitar correias.
- Foi um toque que me fez
Até perder as ideias.

***

Chegámos á estação...
Só se ouviam gritos e choros
- Choravam as mães por os filhos,
As cachopas pelos namôros.

***

Pois dali até á Régua
Só se via gente chorando,
Dizendo adeus aos seus filhos
Com alvos lenços voando.

Então na Regua é que vi...
- Fiquei meio maribundo.
Só se ouvia gritar...
- Até parecia o fim do mundo.

***

Desembarcamos em Lisbôa
Com ordem superior,
E dali a pouco tempo
Entramos para o vapor.

Eu ao ir para aquele monstro
Só me vingava em dar ais.
- Onde vieram espetar
Com o desgraçado do Palhaes!

***

Nisto chama-me um marujo:
- «Venham, não tenham preguiça»
Quando me espetam nas mãos
Com um colête de cortiça.

Mas isto que «bem assêr»
Com estas fitas compridas?
Responde logo o marujo:
«Isto é o salva vidas».

E ponha-o já no peito
Depressa, não seja teimoso,
Que vamos atravessar
Um sítio muito prigoso.

Ao ouvir aquelas frases,
Deu um salto meu coração...
Lá vai a Palhaes passar
Ao buxo dum tubarão.

***

Um gritava: ai minha mãe,
Não a torno a ver mais!
E eu de mim só dizia:
Ai desgraçado Palhaes!

Mas um dos meus camaradas
Portou-se um heroi e soldado...
Apresentou-se na prôa
Com a muchila equipado!

Lembrava-se o herói soldado
Que podia ser punido
Se morresse afogado
Sem o que lhe tinham distribuído.

Outro torna para traz:
«Que tal está minha cabeça...
Já deixava o cantil,
A mais a pá picareta.»

Chegado a França, as dificuldades adensam-se, mas o seu bom humor tudo lhe permite ir superando:

Tornamos a saltar em terra.
Eu, com a barriga vasia,
Dirigi-me a um Estaminet
A preguntar o que havia.

Pedi trigo á portugueza.
Nem trigo nem brôa vi.
Responde-me uma cachopa:
- Meu garçon eu não cumpri.

Tornei a entrar no comboio
Com a barriga a latejar
- Ai desgraçado Palhaes!
Onde vieste parar!

Desconsolo no ventre, mas também na "cama", que o espera na primeira noite de acantonamento:

Numas pequenas cortelhas,
Foi os nossos aposentos,
Aonde viviam cabras,
Rècos, e alguns jomentos!

Um molhito de palhuço
Foi-nos servindo de colchão,
Para assim encobrir
Que se dormia no chão.

Mas é na frente que tudo acontece: o trágico e o cómico; o heróico e o brejeiro. Sobre a "madmoázel" que um seu camarada seduz (ou que por ela é seduzido), diz "O Palhaes" poeta:

Era formosa e bonita,
Lá isso não faltava nada:
Tinha 24 anos
E já era desdentada.

Então o alferes médico
Mandou chamar o rapaz,
Perguntando-lhe se estava
Adiantado o fatacaz

E responde o pobre Magála,
Cheio de medo e tormento:
- «Mal cheguei a esta terra
Entrei logo cá p’ra dentro».

[Sobre o termo “fatacaz”, o organizador do “Arquivo” diz-nos que, por uma questão de pudor, algumas expressões tiveram de sofrer modificações…]

De tudo se fala, até (e principalmente) das aflições do soldadinho português nos confrontos com um inimigo bem mais poderoso e aguerrido:

Que horas tão aflictas,
Quando cahe a morteirada,
E granadas de artilharia,
E granadas de espingarda.

Ó que terriveis momentos
A que se havia de chegar!...
Quando cahe um rapasito,
Anda tudo por o ar.

Eu já me vi num assunto...
O meu rabo era o duma agulha...
Foi quando fui escalado
Para fazer uma patrulha.

Enfim, uma autêntica história trágico-marítima-terrestre, em que se expressa muito do que éramos em 1917, do que ainda somos, e talvez do que nunca deixaremos de ser. Enfim, um poema que nos devolve algo do que é essencial à definição da nossa identidade enquanto nação, enquanto povo – enquanto alma...

domingo, 13 de dezembro de 2009

O MAIS MISTERIOSO DOS MISTÉRIOS



Abro os suplementos literários dos jornais portugueses, espanhóis, franceses e a notícia é sempre a mesma. Folheio as revistas, os magazines literários desses países e a notícia também lá está. O título da obra pode variar, o autor pode ser outro, mas, ao fim e ao cabo, nada muda. E isto há anos e anos. Nos últimos tempos, no entanto, a coisa acentuou-se ainda mais. Um mistério para o qual nunca consegui explicação. Mistério de tal modo banal que já nele nem atentamos – o que o torna ainda mais misterioso. Estou a referir-me, apenas e tão só, a uma temática literária que ameaça transformar-se em algo de eterno, ou seja: o holocausto dos judeus na segunda grande guerra; a tragédia dos judeus perseguidos pela máquina de extermínio dos nazis; a odisseia dos judeus em busca de um porto de abrigo. Enfim, os judeus, os judeus, os judeus.
Evidentemente que todos esses crimes nos horrorizaram e continuam a horrorizar. Evidentemente que é algo que não pode nem deve ser esquecido, para não voltar a repetir-se. Evidentemente. Mas que tenhamos de continuar a suportar livros e livros sobre o mesmo assunto, é mistério para o qual não encontro explicação. Algo de aberrante, cujas consequências não são evidentes. Banalização da tragédia e, daí, a sua desvalorização? Possivelmente. Agravamento dos sentimentos mórbidos que vivem no fundo de todos nós? Sem dúvida. Desvio das atenções para os crimes que se cometem todos os dias nas mais variadas regiões do mundo – alguns da autoria de judeus que governam o estado de Israel? Talvez um pouco de tudo isso e ainda algo mais, que não consigo descortinar.
O conhecimento da História é imprescindível para nos compreendermos, para nos situarmos, mas o uso e o abuso da História faz-nos correr o maior dos riscos: o de ficarmos cegos para o que está a acontecer à nossa volta. O Mal é sempre o Mal. Não há Mal de primeira e Mal de segunda. E se não podemos intervir no Mal acontecido, podemos, devemos tomar partido em relação ao Mal que está a acontecer. O nosso combate é o do tempo presente – tudo o resto, alienação – ou uma porta que nos conduz à alienação.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A Ilha dos Pinguins



Não deixa de ser extraordinário que no início do século XXI uma obra literária sobre um tema bíblico possa ainda causar polêmica. Também não me parece crível que os intervenientes (de ambos os campos da contenda) ainda tenham fólego e pretendam que qualquer tipo de discussão racional sobre a matéria seja possível. Relativamente à substância da fé, não há razão para supor que argumentos lógicos, factuais e históricos tenham qualquer efeito demonstrativo, pois a crença não está baseada nas leis da realidade. Na verdade, eu sempre supus que o assunto já estivesse arrumado, e que as esferas de influência e acção já estivessem há muito delimitadas. O vigor das reacções e a pretensão de que a discussão é nova demonstraram que eu estava equivocado ao assumir que por ser anacrónica a temática não acenderia as paixões.

Mas quando as discussões causam-me bocejos, eu costumo procurar o que um velho mestre escreveu sobre as matérias em debate. E tenho que dizer que não fiquei nada decepcionado com a verve dum velho amigo doutros tempos, no caso Anatole France, ao examinar a questão da moralidade derivada da religião e da evolução ética da humanidade ao longo dos tempos.

Escrito há mais de um século (1908), a Ilha dos Pinguis descreve desde a sua gênese, a evolução da Pinguínia, a civilização que teve origem na transformação dos pinguins em homens. S. Mäel era um santo homem que dedicara a sua pia vida à catequese e à salvação das almas dos habitantes de muitas ilhas. Já com uma idade avançada, meio surdo e quase cego, é tentado pelo diabo a instalar uma vela na sua improvável embarcação de pedra, para assim poder chegar mais rapidamente ao seu destino e salvar mais almas. O engenho do demónio leva-o através de mares de gelo, até uma ilha habitada por pinguins. Convencido que chegara à ilha da contrição, impressionam-lhe os seus habitantes pelo seu silêncio e pela pureza dos seus corações. Ensina-lhes então o Evangelho, e convencido que estava que as aves haviam sido iluminadas pelo ensinamento, passa a batizá-las por três dias e três noites.

No Paraíso contudo, uma assembleia composta por clérigos e doutores, na presença do próprio Senhor, discute a validade do duvidoso baptismo. Argumenta S. Patrick:

"O sacramento do baptismo é nulo quando ministrado a aves, como o sacramento do casamento é nulo quando ministrado a um eunuco."

Contra-argumenta o papa S. Dâmaso, que para saber se um baptismo é válido, há que considerar quem o ministra, e não quem o recebe. Afirmação que levanta a questão: mesmo que o recipiente seja uma ave? Um quadrúpede? Um objecto inanimado? Uma estátua? O grande Santo Agostinho, responde que com certeza! As fórmulas sacramentais estendem-se aos espíritos brutos e à matéria inerte.

A longa discussão não chega a consenso, mas por fim o Senhor decide por validar o baptismo dos pinguins, ainda que correndo o risco de que no processo de adquirirem uma alma esta se lhes escape e vá para o Inferno. Assim, o Senhor declara: Sede homens!

A partir desta metamorfose evolui a Pinguínia como as outras civilizações. Ao uso dos primeiros véus, segue o pecado. A desigualdade de força muscular e da agressividade dos indivíduos dá origem ao assassínio no processo de delimitação dos campos e da instauração da propriedade. Segue-se um período dominado pela superstição e pelo mito do dragão, que na verdade não passava dum astuto pinguin que aterrorizava os habitantes da Pinguínia para roubar-lhes os bens. O próprio acaba por inventar um esquema para derrotar o dragão (cuja vestimenta era então envergada por crianças inocentes) e fundar a poderosa dinastia dos Draco.

Depois desta fase, desenvolve-se a história da Pinguínia em torno das extravagâncias e excentricidades de seus reis e rainhas. Mas tempos renovados e mais próprios surgem após o renascimento e à idade média. A Pinguínia é agora um próspero regime republicano. Mas as novas leis para defender a propriedade, que durante séculos pertencera à nobreza e ao clero, e que agora está nas mãos dos burgueses e dos proprietários rurais, não são menos terríveis.

O abençoado príncipe da deposta dinastia de Draco vive no exílio à espera de que nobres e membros influentes da igreja criem o caos necessário que desmoralize o regime republicano e reestabeleça a monarquia. Mas o novo regime resiste, pois adapta-se melhor que o antigo às vicissitudes dos novos tempos.

Bastante ilustrativo deste estado de coisas foi o caso Pyrot. Pyrot, um filho de Israel de modesta condição, cioso por conviver com a aristocracia e de servir o seu país, entra para o exército dos Pinguins. O general Greatauk, ministro da Guerra não lhe suportava o zelo, o nariz adunco, a vaidade, o gosto pelo estudo, a sua conduta exemplar, e responsabiliza-o por todos os problemas.

Uma manhã, o general Panther, chefe do Estado Maior, informa Greatauk que oitenta medas de feno haviam desaparecido e possivelmente vendidas a baixo preço à Marsuína, a arqui-inimiga potência estrangeira. Greatauk exclama espontaneamente: "Dever ser Pyrot!"; "Só nos resta prová-lo", concorda Panther ... Suponho que não seja necessário continuar.

E nesse passo evolue a Pinguínia, de modo que as medidas mais descabidas dos governos têm frequentemente origem em questões menores, incluindo também os descaminhos amorosos de membros do executivo. E naturalmente, pode-se sempre contar com "o patriotismo dos bancos" que todos os dias "reclama uma expedição civilizadora à Nigrícia", enquanto "o monopólio do aço cheio de ardor em proteger as nossas costas e defender as nossas colónias, exigia freneticamente couraçados e mais couraçados". E quando não há nada para fazer calar o clamor popular relativo à alguma matéria envolvendo corrupção, tráfego de influência, e assuntos afins, o governo manda prender alguns opositores importantes e incómodos (socialistas naqueles tempos).

A civilização Pinguin atinge então o seu apogeu. Na sua maior cidade, quinze milhões de homens trabalham à luz de lanternas, sob um céu cuja claridade não atravessa os fumos das fábricas. No seu seio "as paixões que prejudicam o aumento ou a conservação dos bens eram consideradas desonrosas" ... "O Estado assentava firmemente em duas virtudes públicas: o respeito pelo rico e o desprezo pelo pobre."

O epílogo da civilização Pinguin? A auto-destruição perpetrada por alguns visionários ...

Naturalmente, Anatole France não se refere à crise e à derrocada inevitável do mundo quando conduzido exclusivamente pela ambição material com a terminologia que hoje utilizamos, mas não escapou à sua arguta análise que as causas dos problemas do seu tempo não se alterariam substancialmente no futuro. São o fruto da história e nas ambições desmesuradas dos indivíduos que se traduz na História da humanidade. A sua solução pode parecer ingénua e idealista, contudo hoje sabemos que um mundo baseado em grandes disparidades materiais não é viável. No início do século XX, estas disparidades e a luta por hegemonias deram origem a duas guerras mundiais. No início do século XXI, discutimos o aquecimento global e a solução de crises que hoje entendemos serem globais; as guerras são mais locais; mas por quanto tempo?

Porém, o que é mais evidente ao se ler Anatole France e os seus contemporâneos, é a sensação de que os escritores de então tinham a profunda convicção da necessidade do seu trabalho no processo de construção dum mundo mais justo. Sobretudo na primeira metade do século XX, os escritores não eram membros criadores da dita indústria do entretenimento. Eram livres pensadores a serviço da humanidade.

E enquanto a polêmica do dia se desenvolve, ou é substituida por outra igualmente enfadonha, eu vou novamente à procura de livros interessantes, muito provavelmente escritos por antigos mestres.

Orfeu B.

domingo, 29 de novembro de 2009

CINEMA: MÚSICA E IMAGEM




"Uma música que não se ouve, num filme, é uma má música. Mesmo que seja belíssima." Assim o afirma Ennio Morricone, o mais célebre dos actuais compositores de música para cinema, em entrevista dada ao jornalista Carlos Vaz Marques e publicada no Diário de Notícias. Achei curiosa esta afirmação, que Morricone desenvolve e justifica durante a entrevista. Curiosa porque se contrapõe a uma outra, generalizada ao longo de décadas anteriores, ou seja: a melhor música de um filme é aquela que não se ouve... E, mais curioso ainda, é o facto de se dar como exemplo da bondade de tal afirmação a música de um outro grande compositor italiano de música de filmes, dos anos cinquenta, sessenta, setenta – Nino Rota.
Qual a razão desta divergência? A evolução do gosto do espectador de cinema? Possivelmente. A influência dos filmes de televisão, em que o elemento musical avulta e se impõe por si mesmo? É bem possível. Ou a necessidade, imposta pelo produtor, de autonomização da banda musical do filme, a fim de ser comercializada em disco? Sim, sem dúvida. É evidente que todas estas explicações – e mais algumas – devem ser tomadas em conta, mas há um problema de fundo, que pode ser formulado de uma maneira simples (que talvez peque por simplista): o que é mais importante, em todo e qualquer momento do filme, a imagem ou a música? Ou, perguntando de um outro modo: qual daqueles dois elementos filmicos deve assumir a posição de subordinante? Note-se que a tradição, vinda do cinema mudo, valoriza a imagem. E será dentro desta perspectiva que tem cabimento a ideia de que a melhor música é aquela que não se ouve. A estética cinematográfica era a estética da imagem. Os restantes elementos filmicos (diálogos, ruídos de fundo, música) tinham como função a sua valorização. Estamos, pois, perante uma concepção de "integração" pela subordinação do elemento "fraco" no elemento "forte." O que, claro, nada tem a ver com o ideal da sínteses das artes, teorizado por Kandinsky – teoria com reais possibilidades de concretização no Cinema.

E se há tantas dificuldades numa verdadeira síntese entre dois elementos de uma mesma arte – a arte cinematográfica –, a que distância estaremos nós da grande síntese de todas as artes, de Kandinsky? A distância que vai da realidade ao sonho? Talvez, mas não é através do sonho que a arte se tem construído, ao longo dos tempos?

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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

COMO QUEM COME PÃO OU BEBE VINHO


O que é fundamental em Sepúlveda é a sua vida e a de quantos com ele se cruzaram em sonhos e utopias.

O seu material de trabalho é a memória dessas vidas, a sua e as que outros lhe depositaram nas suas mãos generosas.

E digo generosas porque generosa é a sua prosa. Curta, incisiva, cheia de ternura pelos que sonham ou sonharam, pelos que fizeram da sua revolta um acto de solidariedade e poesia.

Sepúlveda atravessou um continente durante anos, bebeu-o, sofreu-o na carne, amou-o, entregou-se à vida como ela lhe chegou, cheia de injustiças, de causas, de lutas, de canções, de amores e abraços

Certamente por isso, mas não só, Sepúlveda não é homem para ficar a arredondar longos parágrafos nas grandes construções poéticas da linguagem. Tem pequenas e notáveis histórias para contar e fá-lo de uma forma rápida e eficaz. E nem por isso deixa de soltar nas suas palavras a poesia, a ternura e a bondade tanto quanto a indignação e a revolta de quem nunca virou a cara ás grandes causas, nem na vida, nem a literatura.

”A sombra do que fomos” é a história do regresso dos antigos combatentes a um país que já não existe como eles o viveram 30 anos antes. Livro amargo, irónico e doce. O próprio autor resumiu-o de alguma maneira ao afirmar numa entrevista que: “Nunca se volta do exílio”.

Como todos os livros de Sepúlveda este lê-se como quem come pão e bebe vinho. Ficamos de bem connosco próprios e com saudades nem sabemos bem de quê. Porque tudo aqui é melancólico e lavado. Ficamos amigos destas personagens. Companheiros deles. Apetece dar-lhes o braço e seguir pelas ruas do mundo a cantar.

domingo, 15 de novembro de 2009

JOHN CHEEVER, CONTISTA DA BURGUESIA NORTE-AMERICANA




John Cheever é um dos mais proeminentes escritores norte-americanos dos anos 40 a 70 do século XX. Romancista e contista notável, a sua obra começa finalmente a ser editada em Portugal, como é o caso do livro “Contos Completos I”, lançado no mercado pela Sextante Editora. Obra que constitui um fresco da vida quotidiana da pequena e média burguesia norte-americana, a viver nas grandes cidades (como Nova Iorque) ou em pequenas cidades das periferias. Contos urbanos que exprimem com clareza o espírito gregário da sociedade americana. Textos que retratam uma burguesia que trabalha (os homens, principalmente), que se embebeda nos fins de semana (e, por vezes, nos fins de tarde), que faz amor, que ama os filhos, que tem como única finalidade a ascensão económica e social. 28 contos, em 413 páginas, que se lêem com prazer, quase sempre com emoção. Contos que se poderão agrupar de formas várias. Pelos locais em que acontecem: em edifícios em altura da grande cidade ou em moradias com jardinzinhos das pequenas cidades das periferias. Pela intensidade da vida urbana ou pela pacatez dos locais de férias. Contos em que a personagem central é o autor-narrador ou que se centram nas diversas personagens criadas pelo autor. Textos que obedecem a uma narrativa linear ou que são “perturbados” por um acontecimento inesperado, uma evidência que dá um novo sentido à história. Textos em que as sensações inesperadas têm um papel decisivo na orientação da narrativa ou que se desenvolvem à volta de ideias feitas, hábitos, tradições estereotipadas.
Enfim, uma multiplicidade de abordagens que revelam a riqueza do universo ficcional de John Cheever e a panóplia de soluções narrativas de que dispõe. O que não significa que a obra não tenha unidade. Tem e grande, tanto na estrutura como no estilo narrático, em que a ironia, subtil, quase velada, ilumina situações e personagens, conferindo-lhes sentidos específicos, como poderemos ver através de alguns exemplos:
- “Balada Sentimental” e “O Pote de Ouro” são dois textos muito diferentes, mas que encerram a mesma mensagem: o que é essencial esconde-se no que habitualmente contactamos, mas que não vemos, ou porque não podemos, ou porque não queremos. Se o primeiro, a “Balada”, é uma história de morte e destruição, que se oculta numa aparência de vida e amor, já o segundo, “o Pote”, é uma história de amor e felicidade, que decorre no dia-a-dia da vida de uma casal, e que constitui, em última instância, o seu verdadeiro “pote de oiro”. Nos dois textos, o mote: a mulher é causa e é efeito;
- As descrições obsidiantes do quotidiano correspondem a uma estratégia comum a quase todos os contos. Descrição que tanto pode conter os sinais da tragédia que se avizinha (caso de “Os Hartleys”), como conter os germes do ridículo que há-de fazer naufragar a história no despropósito do “non-sense” (caso de “No dia em que o porco caiu no poço”).
- Em todos estes textos, é notável a utilização sistemática de descritores que se articulam com os sentimentos das personagens. Descritores que tanto podem assumir a forma de gestos indutores de um clima de erotismo e paixão (“O autocarro para Sr. James”), como de inquietação, de perversão (“O Rádio enorme”).
Histórias, pois, de uma burguesia que foi o esteio do enriquecimento dos Estados Unidos da América, no período do após-guerra de 1939-1945. Do enriquecimento e da progressiva perda de valores morais de uma sociedade que vive do imediato e para o imediato. Ou, por outras palavras, estes “Contos Completos” são, em última instância, uma obra que assume o valor de um tratado de etnografia urbana, que nos abre várias portas para a compreensão da civilização norte-americana dos dias de hoje.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

DESCRIÇÃO CINTÍFICA E DESCRIÇÃOLITERÁRIA


Por vezes, o menos evidente é o que está mesmo debaixo dos nossos olhos. E foi o que me aconteceu durante anos. Por razões profissionais, investiguei, ensinei e escrevi sobre métodos e técnicas de observação. Principalmente sobre métodos e técnicas de observação naturalista. Por amor pela literatura, li e reli obras de ficcionistas, nomeadamente daqueles que se situam na nossa contemporaneidade. E, espantosamente, só recentemente é que se me tornou evidente a semelhança que existe entre determinados textos científicos que decorrem da observação naturalista e descrições literárias de autores do pós-modernismo.
As bases da observação naturalista foram estabelecidas por Charles Darwin e da sua aplicação resultou umas das obras maiores da Ciência, “A Origem das Espécies” (1859). Já a caminho do fim da vida, Darwin escreve uma “Autobiografia” (1876), na qual nos diz: “… penso que sou superior à capacidade comum dos homens por observar as coisas que escapam facilmente à atenção, e em observá-las com cuidado. A minha aplicação na observação e na recolha de factos foi quase tão grande quanto devia.”
A observação naturalista consiste, em última instância, numa forma de “observação objectiva”, realizada em meio natural. A sua aplicação nos domínios da Psicologia e das Ciências da Educação tem-se revelado extremamente fecunda, a partir de meados do século XX, contribuindo para o progresso científico dessas ciências.
Numa tentativa de simplificação, como convirá a uma crónica bloguista, poderemos dizer que a observação naturalista obedece a cinco grandes princípios: 1) não é uma observação selectiva – o observador procede a uma acumulação de dados, pouco ou nada selectiva, passível de uma análise rigorosa; 2) preocupa-se, fundamentalmente, com a precisão da situação, isto é, com a apreensão de comportamentos ou atitudes inseridos na situação em que se produziram, a fim de se reduzirem ao mínimo as dúvidas referentes à sua interpretação – assim, por exemplo, as falas dos observados deverão ser transcritas em discurso directo, sempre que possível; 3) a continuidade é um dos princípios de base que possibilita uma observação correcta – a selecção dos acontecimentos é algo de arbitrário que se verifica apenas no laboratório, pois o processo vital é caracterizado pela ininterrupção; 4) a finalidade é estabelecer “biografias” compostas por um grande número de unidades de comportamento, que se fundem umas nas outras; 5) há que evitar, na fase de observação propriamente dita, toda e qualquer interpretação de ordem subjectiva – quando esta se impõe deve ser apresentada como uma inferência, sujeita a confirmação posterior.
A título de exemplo, vejamos um extracto de um protocolo de observação naturalista referente a uma sala de aula:

“A (aluno) 6 entra na sala e bate com a porta. O professor tinha-o mandado ‘tomar ar’. Alguns colegas pedem-lhe material emprestado (A19 e outros). Não vendo a sua folha de cartolina, A6 circula perguntando aos seus colegas se a tinham visto. Exclama em voz alta: ‘Pff!’ O aluno parece zangado por não encontrar na mesa a sua folha de cartolina.
O professor interpela-o: ‘Então, começas a trabalhar, ou não?’ Vai ao pé da mesa do aluno, põe um pouco de ordem no material que aí se encontra e regressa à sua secretária. Agressividade do professor em relação a este aluno. A preocupação parece ser a de o controlar.”
Nota: as inferências do observador estão em itálico.

Atente-se, agora, em dois autores, Peter Handke e Raymond Carver, habitualmente considerados como autores de referência do pós-modernismo. De Peter Handke, transcrevo uma descrição de “A Angústia do Guarda-redes Antes do Penalty” (Relógio D’Água):

“A empregada tinha-se juntado a eles com uma revista na mão; juntos, olharam lá para fora. Bloch perguntou se o homem que fazia os poços tinha voltado a aparecer. A locatária, que apenas tinha ouvido a expressão ‘voltado a aparecer’, começou a falar dos soldados. Bloch, em vez disso, disse ‘voltado’e a locatária falou do rapazinho mudo. “Ele nem sequer podia gritar por socorro!” disse a empregada, ou antes, leu num artigo da revista que tinha na mão. A locatária falou de um filme em que tinham misturado pregos numa massa para bolo. Bloch perguntou se os guardas na torre de vigia tinham binóculos: de resto havia qualquer coisa que brilhava lá em cima. ‘Daqui nem se vêem as torres de vigília lá em cima,’ respondeu uma das duas mulheres. Bloch reparou que, por terem estado a fazer bolos, tinham farinha na cara, em especial nas sobrancelhas e na linha do cabelo.
Saiu para o quintal, mas como ninguém o seguiu, voltou para trás. Colocou-se de tal maneira na music-box que ainda havia espaço para outra pessoa. A empregada, que estava agora sentada atrás do balcão, tinha partido um copo. Ao ouvir o barulho, a locatária veio da cozinha, mas não olhou para a empregada mas para ele. Bloch rodou o botão atrás da music-box para pôr o disco mais baixo. Em seguida, ainda enquanto a locatária estava à porta, voltou a pôr a música mais alto. A locatária atravessou a sala à frente dele, como se a estivesse a medir. Bloch perguntou-lhe quanto é que ela pagava de renda ao proprietário da casa. Hertha parou ao ouvir esta pergunta. A empregada pôs os cacos dos vidros numa pá. Bloch dirigiu-se a Hertha. A locatária passou por ele e foi para a cozinha. Bloch seguiu-a.
Como um gato ocupava a segunda cadeira, Bloch ficou de pé ao pé dela. Ela falou do filho do proprietário, que era namorado dela. Bloch pôs-se à janela e fez-lhe perguntas sobre ele. Ela contou-lhe o que fazia o filho do dono do prédio. Sem que ele lhe fizesse mais perguntas, continuou a falar. Bloch avistou na borda do fogão um segundo frasco de conserva. De vez em quando ele perguntava: Então? No fato-macaco que estava pendurado na moldura da porta, avistou uma outra régua. Ele interrompeu-a e perguntou-lhe em que número é que ela começava a contar. Ela hesitou, parou até de descascar a maçã. Bloch disse que tinha reparado que recentemente começava a contar no número dois; esta manhã, por exemplo, tinha sido quase atropelado porque pensou que tinha tempo suficiente até ao segundo carro; ele simplesmente tinha passado por cima do primeiro. A patroa respondeu com um lugar comum.”

Destacamos a expressão “como se estivesse a medir”, pois, na verdade, trata-se de uma inferência. Interessante será ainda a utilização do discurso directo: “Daqui nem se vêem as torres de vigília lá em cima.” Estamos, pois, perante uma descrição naturalista de grande precisão, digna dos observadores científicos mais exigentes…


O contista norte-americano Raymond Carver privilegia o diálogo e os comportamentos das personagens, em detrimento da situação em que se dão, o que é compreensível, pois o conto obedece a uma dinâmica própria, que não se compagina com descrições pormenorizadas que têm a situação como pano de fundo. Do seu livro de contos “Telefona-me se Precisares de Mim” (Teorema), transcrevo o seguinte:

“- Vamos – disse ela.
Pus o carro a trabalhar e seguimos para a auto-estrada. No semáforo antes da auto-estrada vimos um carro à nossa frente sair da via a arrastar o silenciador de escape roto, de onde voavam chispas.
- Olha para aquilo – disse Nancy – Pode incendiar-se.
Esperámos até vermos que o carro conseguia sair da estrada para a berma.
Parámos num cafezinho ao lado da estrada, perto de Sebastopol. ‘Combustíveis, Pessoas e Carros’, dizia o letreiro. Rimos daquilo. Parei em frente ao café, entrámos e fomos para uma mesa de janela, ao fundo. Depois pedimos café e sanduíches. Nancy aplicou o indicador à mesa e começou a desenhar figuras na madeira. Eu acendi um cigarro e olhei para fora. Vi um movimento rápido e depois percebi que estava a olhar para um colibri nos arbustos junto à janela. As suas asas mexiam-se numa mancha de movimento enquanto ele mergulhava o bico numa flor do arbusto.
- Nancy, olha – disse eu – Está ali um colibri.
Mas o colibri voou nesse momento, Nancy olhou e disse: - Onde? Não o vejo.
- Estava aí ainda há um minuto – disse eu. - Olha. Lá está ele. É outro, parece-me. É outro colibri.
Ficámos a ver o colibri até a empregada nos trazer o que tínhamos pedido e o pássaro voar ao sentir o movimento e desaparecer atrás do edifício.
- Ora aí está um bom sinal, acho eu – disse. – Colibris. Os colibris, dizem que trazem sorte.
- Já ouvi dizer isso – disse ela. – Não sei onde, mas ouvi. Bem – disse ela – sorte é do que precisamos. Não achas?
- É bom sinal – disse eu – Ainda bem que parámos aqui.
Ela concordou. Aguardou um momento e depois deu uma dentada na sua sanduíche.”

Para melhor esclarecimento da escrita pós-modernista, recorde-se o que Carver escreveu, em 1983:

“Para que os pormenores se tornem concretos e ganhem sentido, a linguagem usada deve ser o mais exacta e rigorosa possível. As palavras podem, mesmo, ser tão precisas que pareçam insípidas; porém, se forem bem utilizadas, farão soar todas as notas, em todos os registos.”

Cem anos após Darwin, Carver parte de alguns dos princípios por ele seguidos para descrever situações que constituem a essência dos seus contos. Digo, de alguns dos princípios, pois o pós-modernismo valoriza o fragmentário e não o “continuum”, embora possa haver continuidade dentro do fragmento (atente-se, por exemplo, no texto de Handke, citado).
Autores como Douwe W. Fokkema (“Modernismo e Pós-modernismo”, Vega) estabelecem uma destrinça clara entre modernistas e pós-modernistas:

“Enquanto o código modernista assentava na selecção de construções hipotéticas, o sócio-código do pós-modernismo baseia-se numa preferência pela não selecção ou por uma quase-não-selecção, numa rejeição de hierarquias discriminadoras e numa recusa da distinção entre verdade e ficção, entre o passado e o presente, entre o relevante e o irrelevante.”

No entanto, para Douwe Fokkema, a diferença essencial entre modernistas e pós-modernistas consiste na centração dos primeiros no sujeito pensante e sensível, ao passo que os pós-modernistas privilegiam a observação do que lhes é exterior, valorizando os comportamentos dos observados em detrimento da descrição do seu mundo interior.


Na realidade, estas diferenças nem sempre se verificam, pelo menos de um modo claro. Como exemplo e para encerrar esta crónica, que já vai longa, citarei Clarice Lispector e a sua crónica “Porquê?” (in “A Descoberta do Mundo”, Indícios de Oiro):

“Um dia o rapaz viu sua namorada na esquina conversando com duas amigas. Porque sentiu ele um mal-estar como se ela sempre tivesse mentido e só agora ele tivesse a prova? No entanto ela nunca dissera que saía ou que não ria nem conversava. Mas a ideia que ele fizera dela fora traída pela visão nova: junto das amigas, ela parecia uma outra pessoa.
O pior é que também ela não se sentiu bem quando ele contou que a tinha visto. Fez-lhe muitas perguntas: como é que eu estava? com que roupa? eu estava rindo? E ele sentiu que, se houvesse possibilidade de se explicar, e não havia – proibiria que ela se encontrasse com as amigas. Ela pensaria erradamente em ciúmes. A ideia de que ela pudesse imaginar com simplicidade coisas favoráveis a si própria, como se objecto precioso de ciúme, deu-lhe pena e ele achou-a ridícula.
De qualquer maneira, desde que vira nova faceta dela ao estar conversando na esquina, de algum modo a desprezava. Como não entendia porquê, procurava acusá-la: parece uma criada que depois de lavar os pratos vai de mãos vermelhas conversar na esquina. Mas não era a verdade, nem ele conseguiu se convencer com o próprio argumento. Só que agora permanecia frio quando ela lhe contava, por exemplo, o que sonhara de noite. Olhava-a de olhos bem abertos e sem carinho, bem abertos para não recebê-la, como se lhe dissesse: você pensa que me engana? Você é outra pessoa, eu vi você conversando na esquina.
Nunca mais se entenderam bem, e o namoro não durou muito. Terminou friamente, sem saudades.”


Do mesmo modo, muitas das descrições científicas de situações e comportamentos apresentam este carácter “híbrido”, o que não lhes retira legitimidade. Pergunta inevitável: quem influenciou quem? A questão talvez não se possa reduzir a uma relação linear de causa e efeito. Talvez estejamos, sim, perante duas formas (a científica e a literária), igualmente válidas, de conhecimento do homem e da sua condição nos tempos de hoje, duas formas que se apoiam mutuamente – e se complementam.

sábado, 7 de novembro de 2009

MAIGRET E OS CRIMES DE MONTMARTRE



Simenon é senhor de uma arte única no romance policial: a capacidade de nos envolver apaixonadamente em ambientes lúgubres, tristes, habitados por gente pobre que vive as suas vidas pequenas em bares, cafés, cabarets.

A narrativa não se perde em rodriguinhos. É rápida mas nunca linear. Maigret caminha em círculos fechados em torno de cheiros, pequenos gestos, respirações, vícios. Há sempre uma sensação de erotismo barato a pairar sobre os seus inquéritos. Há sempre o descascar da cebola das aparências que encobre as vidas pobres e condenadas até fazer Maigret chegar ás motivações, as ódios, aos medos e aos crimes.

Simenon terá traçado nos seus romances um extraordinário painel de uma Paris (e às vezes não só Paris) sombria mas humana, triste mas palpitante, miserável mas capaz tanto da pior canalhice como da mais bela generosidade.

A grande personagem destes romances que já li e reli e volto a reler é o Comissário Maigret. Mas não menos importante é a própria cidade com a sua poderosa respiração subterrânea.

Neste romance, a morte da streep teaser situa Maigret num dos centros simbólicos da cidade, o bairro de Montmartre, e no cenário que lhe é mais caro: a noite, o bas fond, a chuva. E surgem os drogados, os apaixonados, os bufos, os miseráveis, os que sonham muito, os que se contentam com pouco, uma galeria de pequenos clowns urbanos que habitam o fim da noite. E eu continuo a apaixonar-me por eles, a revoltar-me com eles, a querer salvar a bela rapariga que já seguiu para as gavetas da morgue.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DENNIS McSHADE



Dinis Machado era director literário da Ibis, propriedade de Roussado Pinto que também escrevia romances policiais na sua colecção Rififi sob o pseudónimo de Ross Pynn.

Dinis Machado estava a precisar de dinheiro e Roussado Pinto ofereceu-lhe 18 contos (terá depois ficado por 20 contos) para escrever 3 romances policiais.

Assim, em menos de um ano, nasceram os três policiais assinados por Dennis McShade que em boa hora a Asírio & Avim reedita.

A farsa do pseudónimo americano resultou tão bem que, chamado à Censura a quem o autor começava a cheirar a esturro, Dinis Machado, enquanto editor, contornou num passe de magia o Major de serviço, dizendo-lhe que não valia censurar o livro. Era o último livro que publicavam do autor e que o que ele escrevia era daquelas americanices lá deles que a nós não nos aquecia nem arrefecia.



O protagonista chama-se Peter Maynard numa homenagem ao Pierre Ménard do famoso conto de Jorge Luís Borges.

Maynard, o herói, digamos assim, não é um detective como convém mas um assassino que passa o tempo a ouvir Mozart, Beethoven, Debussy ou Bach e a fazer referências literárias aos grandes clássicos da literatura e do cinema.

Ainda ao contrário dos clássicos do género, Maynard não bebe álcool mas apenas água e leite porque tem uma úlcera.

Para além de uma deliciosa ironia, Dinis Machado mostra desde o início como tem mão, ritmo, capacidade de criar tensão dramática em meia dúzia de pinceladas de escrita.

As histórias são mínimas, têm uma Beretta e um silenciador, umas quantas ruivas de curvas deslumbrantes que caem, obviamente, aos pés do protagonista, mais meia dúzia de equívocos e uma boa dose de gangsters peitudos, estúpidos e intratáveis. Tudo muito Dasshiell Hammett. Quer dizer, simples, linear, enxuto, sem arrebiques. Quase série B.

Quase! Apenas quase. E aí é que entra o talento e o ofício do autor. À medida que lemos vamos percebendo que há alguma coisa mais. E não são só os magníficos monólogos interiores de Maynard que ganham intensidade e consistência com o correr da narrativa. É qualquer coisa mais a que eu não encontrava nome para dar.

Ouvi Saramago afirmar numa recente entrevista qua a literatura é feita de 70% de linguagem. E era isso. O que faz destes policiais de Dinis Machado/Dennis MacShade é a linguagem que nos vai levando, encarrilando, envolvendo, e torna a leitura num acto intenso e quase musical.

Resultado: acabei de ler o segundo e vou de corrida para o terceiro.

domingo, 1 de novembro de 2009

"EU LEVARIA O FOGO!"


!"

Cocteau tinha acabado de se instalar, com todo o cuidado, na sua nova casa de Milly-la-Forêt, a casa que escolhera para viver os últimos anos de vida. Entrevistado na rádio, o jornalista pergunta-lhe: "Agora, que tem uma casa, vamos supor algo de desagradável. Se deflagrasse nela um incêndio, quais os objectos que levaria consigo?" Cocteau reflecte um momento, antes de responder: "Eu creio que levaria o fogo!"
É o fogo que Cocteau persegue desde sempre na adesão e na invenção dos movimentos de vanguarda, no trabalho poético, na prática da arte, do teatro, do cinema, na aventura do ensaio. E, acima de tudo, na postura perante a vida. Disso tem ele consciência – e das consequências que daí lhe possam advir. "O poeta que aceita prosseguir a estrada a pé, até ao fim, torna-se uma vítima da sociedade, que o expulsa como indesejável. Ele perturba (...) Ele é a ordem sob a forma de desordem. Um aristocrata na figura de um anarquista (...)". Neste extracto do "Discurso de Oxford", lido na cerimónia do seu Doutoramento "Honoris Causa" por essa Universidade, ele diz duas coisas essenciais: a primeira, que é um poeta; a segunda, que é um poeta que segue um caminho próprio – o da eterna busca do fogo.
Falar de uma obra de Cocteau, seja ela um filme, uma peça de teatro, um livro, uma pintura, descontextualizada da pessoa e da época, é algo que não tem sentido. Por isso, estas considerações iniciais sobre o autor. Por isso, duas ou três considerações ainda, sobre
a cultura da França no Antes e no Após-Guerra 1939-45. É a cultura da emoção e da ideação estética: da procura do Belo sob todas as formas em que ele se possa ocultar – nas Artes, nas Letras, na Filosofia, na Intervenção Política. Chave para essa pesquisa: a Poesia. Poesia que reinventa a Beleza, aquém a além do quotidiano. O Maio de 68 é o culminar (e o findar) deste período eminentemente poético da cultura francesa. É o cântico final a que Cocteau, morto em 1963, já não assiste.
Ora, é exactamente dentro desta perspectiva que Cocteau é grande e é único, pela fidelidade total à Poesia, ao longo do seu percurso criativo. Se quisermos organizar a sua obra por categorias, não podemos deixar de seguir a classificação proposta por Pierre Chanel: a) Poesia; b) Poesia de Romance; c) Poesia Crítica; d) Poesia de Teatro; e) Poesia Gráfica; f) Poesia Cinematográfica.
Tudo é Poesia, tudo é Fogo, em Cocteau.
Estou em crer que, de todos os seus filmes, os mais próximos da essência poética são "A Bela e o Monstro" e "Orfeu". É evidente que não estou a tomar em consideração "O Sangue de um Poeta" (1930), realizado noutra época e noutro contexto da cultura francesa.
"A Bela e o Monstro" é uma fábula que tem de ser vista com a "ingenuidade" que habita o olhar da criança – "Era uma vez...", propõe-nos Cocteau, no início do filme. Uma fábula, portanto, um texto mágico, no qual se defrontam as duas formas clássicas da Magia, a do Mal e a do Bem. Ou seja, a do Poder e Riqueza e a do Amor. Tudo o que possuo, possuo-o por Magia, diz o Monstro, prisioneiro do Reino do Mal. A magia do monstro, a magia do poeta maldito que Cocteau sempre foi, a ilusão do ter, a dificuldade do ser. O ser é a Bela, que nada tem, porque só se tem. Portanto, é. É Beleza, é Bondade, é Verdade. A sua beleza física é a expressão da verdadeira beleza, a da alma. E assim surge a possibilidade do encontro: não será no fundo do ser mais abjecto que se esconde a beleza mais pura, mais pura porque ainda não se revelou?
É pelo olhar – o olhar do homem, o olhar da câmara – que o encontro se torna possível. O olhar que entra dentro da alma e que "actualiza" a "virtualidade" do Amor. Amor, Magia do Bem, que torna belo o que até aí aparecia como feio. Por isso, o Monstro pede à Bela que não o olhe nos olhos, para não perder a sua identidade, para não adquirir uma nova identidade, a da Beleza. Mas a Bela também precisa que Ele a olhe, para que o "monstro" que tem dentro de si se revele.
É pois uma história do Encontro, para além dos desencontros que as contingências do quotidiano inexoravelmente provocam. A linguagem utilizada é a da câmara cinematográfica, e é magistral. Mas não só: neste filme, Cocteau realiza uma das experiências mais arrojadas da história do cinema, a da síntese das artes. Cinema, não como a sétima arte, mas como a arte das artes: pintura (atente-se no estilo da escola holandesa, presente ao longo de toda a película); música (a partitura de Georges Auric recria e reintegra cenas, emoções, gestos, ideias); teatro (o desempenho dos actores - movimentos, dizeres, ritmo da acção, jogos fisionómicos - a cenografia, o décor e a iluminação são teatro puro, mas que só adquirem sentido se tocados pela varinha da câmara de filmar); fotografia (em si mesma, uma obra de arte; em movimento, cinema); poesia (diálogos, alguns dos mais belos poemas de Cocteau).
Por isso, e apesar disso, é cinema. Nomeadamente, pela especificidade da linguagem, estruturada segundo uma gramática cinematográfica, inovadora sem dúvida, mas clássica no desenvolvimento das ideias e dos sentimentos. A relação da câmara com os rostos, a sobreposição do olhar da câmara em relação ao dos actores, a utilização sistemática da virtualidade do espelho, a decomposição do corpo em elementos de acção autonomizada (o braço, a mão, sem o suporte do seu corpo, mas "vivos"), a profundidade de campo, as cortinas, as roupagens roçagantes, a emprestarem volatilidade à postura hierática das figuras em cena, tudo isto, digo, são elementos centrais de uma apurada linguagem fílmica, que confere uma dimensão etérea a esta obra de arte, como só o Cinema o pode fazer. A eteridade do fogo que Cocteau sempre consigo transportou.

Em 1997, a Associação de Estudantes da minha faculdade, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, organizou um ciclo de cinema, em que era exibido "A Bela e o Monstro", de Cocteau. Como conhecem as minhas fraquezas cinéfilas, quiseram saber se eu estava na disposição de escrever algo sobre o filme: "Como era um filme do seu tempo..." E se era, Deus meu! A primeira vez que o vi foi nos anos cinquenta, em sessão do Cine Clube do Porto, no Cinema Batalha, creio. De tal modo me tocou, que pensei escrever um artigo sobre a fita e o seu autor. Pouco tinha em casa sobre o Cocteau cineasta e pouco havia na biblioteca do Instituto Francês do Porto. Por isso, recorri à Livraria Divulgação, onde pontificava o Fernando Fernandes. Evidentemente, ele tinha o que mais ninguém tinha e, coisa ainda mais espantosa, sabia o que não tinha e... o que precisava de ter! Pouco tempo era passado, já eu dispunha de tudo o que necessitava para escrever o meu texto. Não o fiz, na altura, fi-lo agora, utilizando, em grande parte, os livros que ele me havia conseguido – quarenta anos atrás… Por isso, dediquei este escrito ao Fernando Fernandes, a fim de ser publicado na obra de homenagem que lhe foi dedicada em 1999: “Fernando Fernandes. 47 Anos de Divulgação da Leitura” (editada por Campo das Letras).

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Do que estou a falar quando falo sobre correr



Pain is inevitable. Suffering is optional

What I talk about when I talk about running
Haruki Murakami

Esqueçam o escritor reflexivo e contemplativo à espera de que as musas lhe incendeiem a imaginação. Não de todo! O escritor dos momentos mágicos, dos personagens que comunicam com os animais e os minerais, o criador de situações insólitas e inesperadas é um corredor de fundo que transformou o hábito de correr num complemento indissociável da sua vida de romancista, tradutor, comentador, e mais recentemente de activista de causas humanitárias.

Um beatnik dos músculos então? Também não de todo, pois Murakami não pretende criar nenhuma filosofia, fundar um ashram ou uma seita de seguidores. Do que estou a falar quando falo sobre correr é um livro confuciano: versa sobre treinos, preparação para maratonas (pelo menos uma por ano), respiração, dor física, tempos, reminiscências de provas de longa distância e de triatlo, e sobre a história do envolvimento com a corrida e a sua ligação umbilical com a vida de escritor. A filosofia, se é que se pode disso falar, é extraída ao longo do percurso, no processo de se atingir objectivos bem definidos.

Mas naturalmente, a conexão é nos dois sentidos. O capítulo entitulado Praticamente tudo que sei sobre escrever ficção eu aprendi correndo todos os dias é ilustrativo duma relação que não é acidental e que o autor pretende que perdure até o fim, exactamente como a sua capacidade de escrever e criar. Afirma Murakami, que ao terminar o seu primeiro livro, aos 33 anos, descobriu que a vida dum escritor era fisicamente extenuante, pouco saudável e associal. Sentiu então a necessidade urgente de se exercitar. A inaptidão para os desportos em grupo e a simplicidade da corrida de fundo facilitaram-lhe a escolha do desporto a praticar. A legendária disciplina nipónica fez o resto.

Reitera Murakami, eu seria um outro escritor se não fosse o facto de ser um corredor de fundo, de modo que a fórmula correr e escrever, escrever e correr transformou-se numa segunda pele, num modo de estar e de ver as coisas. Mas é fundamental sublinhar que o autor não pretende vender a receita a ninguém. Destaca que a entrega sem reservas e o desejo de atingir o máximo dentro dos seus próprios limites tornaram-se ao longo dos anos os seus objectivos no que se refere à escrita e às provas de fundo. Conta-nos também que o sucesso inesperado do seus primeiros livros revelaram-lhe um caminho profissional que não antecipava de todo ser o seu. Os ingredientes? Talento, objectivo e resistência. Para escrever ou para correr? Para ambas, responde-nos Murakami, pois são para si actividades intimamente interligadas.

Assim, através da leitura deste despretensioso livro somos levados a uma identificação simples, mas também elegante: a de que escrever um romance é algo como correr uma maratona. Exige treino, dedicação, resistência, e uma vez iniciado o processo não há espaço para andar, pois foi-se treinado para correr. A felicidade do autor com a naturalidade desta identificação é mais que evidente, e ao ponto dele não se coibir de apontá-la como uma essência existencial, como vê-se quando imagina o seu epitáfio:

Haruki Murakami
1949 - 20**

Escritor (e corredor)

Pelo Menos Ele Nunca Andou



Orfeu B.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

LETRAS PÚBLICAS VERSUS LITERATURA?



A Casa da América Latina, sita na Av. 24 de Julho, muito perto das docas do porto de Lisboa, realizou, sob o impulso do poeta e livreiro brasileiro Ozias Filho, um conjunto de recitais de poesia de poetas da América Latina. Recitais que tiveram êxito assinalável, se se tomar por medida o número dos que a eles assistiam e o fervor com que o faziam. A selecção dos poemas é do Ozias e dele também é a organização da sessão (escolha dos "diseurs" - entre os quais ele avulta -, convite a músicos que executam peças musicais dos países a que pertencem os poetas que nessa noite são lidos). O cuidado, o entusiasmo que o Ozias em tudo põe, está na origem deste sucesso. Bem haja, pois, o Ozias, por tudo o que tem feito pela Poesia!
Mas... mas estas leituras públicas contribuirão, realmente, para o incremento da literatura? Não sei, não sei mesmo. As minhas dúvidas decorrem de coisas várias. Principalmente, da postura dos que vão a essas sessões. Assim, estou em crer que os que as frequentam assumem uma atitude de espectador-consumidor, que se contenta (e se "delicia") com o que lhe é proposto. Nada questionando, nada mais querendo saber, nem sobre o autor, nem sobre a sua poesia – muito menos sobre a época, a situação histórico-literária em que foi escrita. Enfim, é alguém em estado de pura receptividade, sem qualquer postura crítica. As palmas que explodem a seguir à dicção de todo e qualquer poema, revelam bem esse estado da "plateia". O poema funciona, em última instância, como um catalisador da emoção de quem o ouve, emoção que será, na maioria das vezes, o reflexo da emoção que o "diseur" põe na sua interpretação. A passagem, sem interrupção, de um poema a outro, de um poeta ao que se lhe segue, gera um efeito de torrente de um rio caudaloso, em que a música e o calor das palmas, geram uma energia que transforma a sala num condensador de alta voltagem, o que me leva a formular, no fim de cada sessão, a mesma interrogação: quantos adoradores daquele culto poético terão, em casa, um livro de poesia? Ou, dito de outro modo: a poesia será, para eles, apenas sinónimo da interpretação que lhes é fornecida por quem a diz? Algo de epifenoménico que se esvai quando a sessão chega ao seu termo? Talvez sim, talvez, não – espero bem que não...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A RAINHA DO CINE ROMA



Pepetela afirma a pópósito:

"Quem tiver peito fraco é melhor nao tocar neste livro Porque ele é duro, cru, verdadeiro No entanto, no fim, fica um fiozinho de açúcar, emoldurando uma réstea de esperança."

De facto, "A rainha do Cine Roma" é um mergulho no lado mais negro da humanidade. salvador da Baía, prostituição infantil, álcool, droga, roubo, violência, estupro, transexualidade, corrupção dos que mandam, miséria levada até ao extremo, abandono, tremenda solidão.

Sabemos que o autor, mexicano a viver no Brasil, faz trabalho social com crianças e meninos de rua

Todo o livro, que é uma espécie de "Capiães da areia" do tempo do crack, ferve, amachuca-nos, arrepia-nos, faz-nos conviver dificilmente, dolorosamente, com uma realidade assustadora.

O Pepetela tem mesmo razão: "Quem tiver peito fraco..." No entanto, como também ele diz, ao lado da desesperança mais completa há sempre um fio de humanidade, uma luzinha ao fundo do túnel, a perspectiva positiva deixada por um escritor que acredita que, apesar de tudo, a vida ainda vale a pena e todos temos uma reserva de generosidade que pode sair cá para fora até nas piores circunstâncias.

É claro que o autor tem tanta e tão suja realidade para verter na sua escrita, que por vezes se esquece de se vigiar e de se conter. Repete-se, torna-se previsívelm aqui e ali, quase melodramático. No entanto, pergunto-me eu se é possível fugir às teias do melodrama quando tratamos da miséria moral absoluta, essa miséria que sustentou o desencolvimento desse estilo literário que teve seguidores tão respeitáveis como Zola ou Vítor Hugo.

Afinal, 150 anos depois, o capitalismo, na sua versão neo-liberal, mantém grandes bolsas de miséria pelo mundo fora e, por mais que se negue o papel da literatura na denúncia dessa miséria, os que como Reyes contactam com ela e tentam salvar dela alguns seres humanos, têm todo o direito e, se calhar, têm todo o dever de fazer da literatura um campo de batalha onde se luta por um mundo um poucochinho melhor.

A ternura e a solidariedade que o romance nos oferece ou nos promete é uma janela aberta, uma janela bem mais habitável que o retrato horrível que da Índia nos dá, por exemplo, em "O Tigre Branco", o premiado escritor indiano Aravid Adiga, onde parece não haver qualquer resto de esperança na humanidade.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O CORAÇÃO DOS PONDERS




Já o Albano tinha aqui falado com entusiasmo dos contos de Eudora Welty. E eu fiquei de água na boca. Fui comprar a correr "Os ventos e outros contos". Mas foi ficando na pilha crescentes da urgências muito urgentes.

Apareceu entretanto, da mesma autora, um romance: "O coração dos Ponders".

Depois... Os livros têm destas coisas... Trepam uns por cima dos outros, chamam-nos baixinho, insinuam-se. "O coração dos Ponders" impôs-se. E que felicidade lê-lo!

O mundo de Eudora é o do Sul dos EUA. O mesmo de Faulkner e de outros como Flanery O'Connor. Mundo puritano, racista, mesquinho, fechado sobre si. Só que outros o tratam de dentro de uma máquina de produzir tragédias e Eudora do alto de uma fantástica ironia.

A narradora dirige-se directamente ao leitor Talvez esteja mesmo a falar com o leitor, a leitora, ou talvez não. Talvez o interlucotor ausente seja uma vizinha. Ou alguém com quem Edna earle compartilha uma série de comentários e opiniões sobre a cidade onde vive, os seus habitantes e, sobretudo sobre o avô e o tio Daniel

A figura do tio Daniel será o grande rio que atravessa a narrativa nas palavras da sobrinha e narradora mas só tem sendito em contraponto com a própria cidade, a pequena cidade com a polifonia das suas famílias, dos seus criados negros, dos seus caixeiros viajantes, dos seus advogados, juízes...

O olhar de Edna Earle, aparentemente conciliador, pacificador, bondoso,esconde toda uma série de preconceitos, de mentiras e falsidades, num registo que não nos permite perceber excatamente se ele é apenas ingénuo ou de uma perversidade requintada

Apesar das palavras de Edna que afirma repetidamente que o tio é a melhor e a mais generosa pessoa do mundo, a ambiguidade da ironia ficará sempre a pairar no nosso espírito. O tio Daniel era tonto e louco, ou um personalidade negra, malévola e totalmente pervesrsa? Ele teria efectivado os dois casamentos? E a morte da segunda esposa que Edna diz o pior possível sob o manto das suas palavras doces? O tio Daniel, que nas palavras da sobrinha adorava a esposa, tê-la assassinado? Ou terá sido a própria Edna?

Saber quem e como ela foi morta é o menos. O mais importante é torrente de belíssima escrita, a força do monólogo, o poderosíssimo exercício da ironia, o desenvolvimento da acção num crescendo que atinge o seu pleno com a tremenda cena do julgamento no tribunal

O mais importante é percebermos que, em literatura, tão importante como a história que se conta é a forma como se conta essa história. E nesse campo, Eudora Welty atinge uma altura invulgar.


A tradução de José Mário Silva (vale a pena ver o seu bibliotecariodebabel.com) é simplesmente magnífica, o que não é tão frequente como isso, embora a Relógio d'Água seja normalmente exemplar no cuidado das traduções e das revisões.

EPIFANIA EM CLARICE LISPECTOR



Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e foi para o Brasil com dois meses de idade. Viveu com os pais em várias cidades e acabou por se fixar no Rio de Janeiro, onde morreu em 1977. Por muitos críticos considerada a mais importante escritora de ficção de língua portuguesa do século XX, Clarice publicou, em 1944, o romance "Perto do Coração Selvagem", o primeiro dos 26 livros que constituem a sua obra (contos, romances, crónicas e literatura infantil). Obra de juventude, nela já está contido o essencial do universo clariciano: os temas que irá desenvolver, as estruturas narráticas básicas, que permitem transformar as emoções, os pensamentos das personagens em texto literário de uma densidade nova na língua portuguesa. E - sempre - a invenção de uma linguagem muito própria, não só feita de imprevisto no manuseio da terminologia (às vezes, quase barroca), como também na construção da frase (quantas vezes, apenas assente na repetição). Uma linguagem em que os silêncios dão sentido ao que foi dito e ao que ficou por dizer[1].
Para que se possa escrever assim, com subtileza, com força, com magia, é preciso amar a sua língua. E é o que acontece com Clarice: "Amo esta língua" (diz-nos ela). "Não é uma língua fácil. É um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve querendo roubar às coisas e pessoas a sua primeira camada superficial. É uma língua que por vezes reage contra um pensamento mais complexo. Por vezes o imprevisto de uma frase causa-lhe medo. Mas eu gosto de manejá-la – tal como outrora gostava de montar um cavalo para o levar pelas rédeas, umas vezes lentamente, outras a galope."
Se a palavra é o seu domínio (sobre o mundo, sobre si mesma), a escrita é a sua vocação: "(...) nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei porquê, foi esta que eu segui. Talvez porque, para as outras vocações, eu precisaria de uma longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E para escrever, o único estudo é mesmo escrever."
Para Clarice, escrever é viver. Numa entrevista concedida alguns meses antes de morrer, ela diz: "Quando não escrevo, estou morta." E termina a entrevista afirmando: "Neste momento, estou morta. É do meu túmulo que vos falo."
De entre os seus múltiplos textos, eu queria fazer sobressair as suas crónicas, os seus contos. Fundamentalmente por uma razão: é nos seus "escritos fragmentários" que se encontra muito do que é essencial à sua literatura. E, entre esses textos, sobressaem as crónicas, nomeadamente as que escreve para o "Jornal do Brasil", do Rio de Janeiro. É ela, ainda, que nos fala da sua perplexidade sobre a sua escrita enquanto cronista: "(...) um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crónica, e disse-lhe desesperada: "Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?" Ele me disse: "É impossível, na crónica, deixar de ser pessoal. Mas eu não quero contar minha vida para ninguém (...)"
Crónicas que, quer ela queira, quer não, constituem pedaços de si própria. Crónicas que ela, por vezes, transforma em contos ou integra nos seus romances. Romances nos quais brilham esses "indícios de oiro", que lhes conferem luminosidade, transcendência. Clarice, uma escritora do fragmentário? Sim, em grande parte. A própria técnica de recolha de elementos para a sua escrita aponta nesse sentido: ela recolhia, em tudo o que fosse papel, os acontecimentos, as emoções, os pensamentos que lhe iam surgindo no fluir do seu quotidiano. E será exactamente a partir desses fragmentos que poderemos penetrar no que é essencial à sua escrita: a epifania.
O conceito de epifania tem uma origem bíblica e, nesse sentido, poderá definir-se como sendo a irrupção de Deus no mundo. No Antigo Testamento, a epifania está ligada ao "ouvir", no Novo Testamento, ao "ver". Ora, na literatura do século XX, este conceito revelou-se extremamente fecundo, tanto na construção do texto, como na sua análise. O seu êxito deve-se a James Joyce, o qual, na opinião do seu principal biógrafo, Richard Elmann, o foi buscar à Epifania do Fogo, primeira parte do livro de Gabriel d'Annunzio, O Fogo.
Mas Joyce nem sempre entendeu o mesmo por epifania. Em Stephen Hero, escreve: "Por epifania, ele (referia-se a Stephen) entendia uma súbita manifestação espiritual, que surgia tanto no meio das palavras ou gestos mais corriqueiros quanto na mais memorável das situações espirituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registar tais epifanias com extremo cuidado, pois elas representam os mais delicados e fugidios momentos da vida."
Mas se em Stephen Hero a epifania corresponde a um modo de ver o mundo, já no Retrato do Artista Quando Jovem será um "processo de criar um universo, por meio da palavra poética." Neste livro, já não se "experencia" a vida, mas pretende-se, sim, reconstruir o mundo. Para Harry Larvin, citado por Olga de Sá, Joyce pretende, em última instância, "criar um substituto literário para as revelações da religião." A sua última obra, Finnegans Wake, é a expressão final desta intenção (já evidente no Retrato e em Ulisses). Se quisermos simplificar o que dito foi (o que é sempre perigoso quando se trata de Joyce), poderíamos formular a questão deste modo: a epifania joyceana começou pela palavra e atingiu a sua plenitude na estrutura e na dinâmica da linguagem da sua "escritura".
Caminho diferente foi o de Clarice, conhecedora que era da obra de Joyce. Conhecimento de Joyce, sim, mas também influência sua, a começar pelo título do seu primeiro livro, "Perto do Coração Selvagem", extraído de uma frase do "Retrato do Artista Quando Jovem": "Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida." E, na verdade, em Clarice, a linguagem está perto do coração da vida. É pela linguagem que ela pesquisa e encontra – e se encontra! A linguagem é o instrumento que lhe permite estabelecer a "escritura" que a ultrapassa – e a salva. "Escritura" que tem a epifania como processo, não como técnica. Em última instância, podemos dizer que toda a linguagem, em Clarice, é epifánica. E nisso se distingue de Joyce, pois, desde o seu primeiro livro, toda a sua obra se poderá caracterizar como uma epifania do eu.
É nos pequenos textos que o processo epifânico se torna mais evidente. Não só o processo, como também o que dele resulta, ou seja, o esplendor estético da sua prosa poética. Para terminar, transcrevo um dos textos que integram "A Descoberta do Mundo'', e que constitui um exemplo preciso do que afirmei: "Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Pôr puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe."
Estamos, pois, perante uma situação clássica de epifania, de iluminação feita amor, carinho, de identificação com o Belo, o Bem. Mas o texto (extraído do conto "Perdoando Deus") não pára, continua: "E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos. Toda trémula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois factos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois factos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar?"
"Os dois factos (diz Clarice) tinham ilogicamente um nexo". A sua ligação não é, pois, do domínio da lógica; é, sim, do foro do não racional (não do irracional). Ou seja, do âmbito do epifánico. Ou, mais precisamente, estamos na presença de duas epifanias: a última, de sentido negativo, a funcionar por contraposição à primeira. E será exactamente através deste jogo de claros e escuros que o texto ganha uma espessura, uma densidade, muito características – a espessura, a densidade que transformam a "escritura" de Clarice Lispector num caso único na ficção de língua portuguesa do século XX.


Este texto foi lido na apresentação da obra de Clarice Lispector “A Descoberta do Mundo” (editada por Indícios de Oiro).


[1] Sobre o silêncio em Clarice Lispector, consultar Menegolla, Ione Marisa, A Linguagem do Silêncio, São Paulo, HUCITEC, 2003.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

ANDREA CAMILLERI OU A ESCRITA NO MASCULINO




Várias razões me levaram a ler o livro de Andrea Camilleri, “O Fato Cinzento” (Bertrand Editora): por se tratar de um escritor que eu não conhecia; por serem raras as traduções de obras italianas; por o autor ser considerado um dos grandes escritores italianos da actualidade; por a crítica valorizar esta obra, nomeadamente pelo modo como a temática é tratada.
Camilleri (agora com 84 anos) dá-nos uma história tradicional, que, contrariamente ao que alguma crítica diz, deve mais a Tolstói do que a Chekov: um cavalheiro, alto funcionário de um banco, em Palermo, casa com uma jovem, 25 anos mais nova, e passa a viver obcecado pelo desejo que a sua bela e erotizada mulher lhe provoca. A história, bem construída, é-nos apresentada pelo ângulo de visão do marido, que oscila nos sentimentos que a relação conjugal lhe vai provocando e, daí, nos juízos de valor sobre a sua mulher. Talvez por isso, o Corriere della Sera, o jornal italiano de grande circulação, escreve: “Camilleri segue o batimento da alma feminina como ninguém”. Frase que os editores portugueses colocaram na capa do livro, o que nos pode fazer crer que este romance caracteriza com propriedade o sentir, o pensar da mulher. Ora, em minha opinião, passa-se exactamente o contrário: é do homem, do sentir do homem velho, que a obra trata, do modo como ele vê a mulher que ama e deseja, do modo como o seu progressivo envelhecimento vai condicionando a sua visão sobre a companheira – infiel, belíssima e controladora da relação conjugal até aos mais ínfimos pormenores.
Na realidade, talvez as coisas não possam deixar de ser assim. Ou talvez sejam poucos os casos em que tal não aconteça, isto é, que o escritor caracterize a mulher sem se centrar nas suas próprias emoções ou que a escritora caracterize o homem não se centrando no seu sentir, no seu pensar. E entre as excepções conta-se, sem dúvida, Henry James (“Retrato de uma Senhora” e “Daisy Miller”, por exemplo). Possivelmente, pelo toque de feminilidade de que o autor deu mostras ao longo da vida...
Do que escrevi, que não se infira que desaconselho a leitura desta obra. Antes pelo contrário: Andrea Camilleri é um escritor que sabe contar uma história (mesmo quando esta se desenvolve à volta de uma temática tradicional), um escritor que domina a técnica da escrita, com soluções próprias de estrutura narrática, adequadas ao desenvolvimento de um enredo que se centra na vivência psicológica das personagens.

domingo, 4 de outubro de 2009

Um poema para Lublin



O, Wanderer, a shadow accompanies you as always and the night is bathed in a silvery afterglow. Leave this town light-hearted, the way it greeted you.

A poem about Lublin.

Józef Czechowicz.


Todo poeta sabe que deve honrar a sua cidade. O chamamento pode ser precoce ou tardio, mas é inevitável. Não importa o locus, o fundamental é como o poeta conduz o caudal de sensações-emoções-recordações associando-as aos elementos da paisagem urbana. Não há guias ou modelos, a profundidade do exercício é a única forma de transformar memórias em esquinas, lembranças em catedrais, sonhos em castelos.

O poeta polaco Józef Czechowicz, depois de combater como voluntário na guerra contra a União Soviética em 1920, estudar em França e viver entre Lublin e Varsóvia, retorna, qual uma enguia que volta ao mar para encerrar o ciclo duma vida, para a sua Lublin quando da invasão da Polónia pela Alemanha em 1 de Setembro de 1939 e acaba por morrer soterrado em 9 de Setembro quando dum bombardeamento da Luftwaffe.

A sua homenagem a Lublin é de 1934, mas é na verdade intemporal. Józef Czechowicz canta, numa preciosidade de livrinho que contem um único poema, uma Lublin que é tão mística como a Lublin real, com a sua simbiótica arquitetura medieval, renascentista e barroca. E num percurso pedonal dominado pelas sombras da noite, o poeta celebra a cidade que foi o centro da união da Polónia com a Lituánia no século XVI, da renascença da cultura polaca, e da Reforma. E com o toque mágico dumas escasssas palavras, o poeta recorda tudo isto e também que Lublin foi conhecida como a "Oxford Judia", dada a concentração de estudantes de toda a Europa que para ali iam estudar o Talmude e a Cabala nas suas yeshivas, as Academias Talmúdicas ou Academias Rabínicas.

A voz de Józef Czechowicz é única e universal, como a de todos os poetas. Exprime a beleza numa linguagem que só os poetas sinceros conhecem:

... oh Caminhante, o que te toca indelevelmente a alma é que a tua amada cidade já te acolheu e abraçou ...

Cinzeles, graves na memória a inscrição do portão do cemitério:
"Retido na poeira eu durmo - e da poeira
Eu resurgirei no dia final" ...

Dominado pela tristeza, perdido em pensamentos e indiferente ao mundo, oh Caminhante, tu percorres a cidade emudecida. Aqui e ali, na rua principal ouves os habitantes a conversar, aqui e ali ouves o ruído dum portão que se fecha.

...

Foi nessa modesta esquina que te compraram uma corneta de brinquedo. Naquela outra que te despediste da tua mãe e irmã antes de partires para o front. E aqui é a casa onde vivenciaste os mais ternos sentimentos.

Foi ali que experimentaste o primeiro momento de poesia ouvindo a cidade antiga à noite.

Transformes a memória em verso. A essência das noções, memória e poesia, tão próximas que estão uma da outra.

Este é um verso.

O céu transforma-se, ainda que a noite não tenha perdido a sua força,
o vento ainda sopra antes de se extinguir.
O céu sussurra em púrpura.
O vento - não é mais vento - sorri.

...

E agora?

...

Boa noite cidade antiga, boa noite. Estradas brancas conduzem ao norte, através de sendas estreitas, sendas através de miríades de sendas. O Caminhante é apenas um ponto negro numa delas.

Ele desapareceu atrás do monte.

Boa noite, cidade,

boa noite ...

Orfeu B.