quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Navio dos Homens


"O mais importante é unir as nossas forças. Agora já sabemos o que poderíamos ter conseguido unindo as nossas forças. Mesmo que chamem o contratorpedeiro, se formos todos sem uma única excepção, salvar-nos-emos."

Konikosen
Takiji Kobayashi

"Um bestseller inesperado" segundo o New York Times, "Obra-prima", diz-nos o Le Monde des Livres, "Romance fenómeno" segundo o Les Temps. São algumas impressões que ornam a capa dum livro que já vendeu 1.600.000 exemplares em todo o mundo e isto depois de estar esquecido durante décadas. "Konikosen", ou Navio fábrica de enlatar caranguejos em japonês, é dos dado saber ser um clássico da literatura japonesa. Eu diria simplesmente que é um clássica da literatura. Konikosen retrata as condições de trabalho desumanas a que estavam sujeitos os pescadores de caranguejo no mar de Kamchatka. Escrito em 1929 pelo escritor Takiji Kobayashi (1900-1933), que também era sindicalista e colaborador do Partido Comunista, a sua reputação valeu-lhe a eleição para o cargo de secretário da Associação de Escritores Japoneses. Faleceu ainda muito jovem quando em 1933 foi preso pela polícia secreta e torturado até a morte.

"Konikosen" é um livro duma força extraordinária, não obstante da sua óbvia motivação política e ideológica e a sua narrativa programática. Um livro cuja leitura sugere bem conhecidos épicos da literatura "proletária", mas que são clássicos da literatura universal, tais como "As condições da classe trabalhadora em Inglaterra" (1844) de Engels, "Germinal" (1885) de Zola, "Vidas Secas" (1938) de Graciliano Ramos, "As vinhas da ira" (1939) de Steinbeck, "Fanga" (1943) de Alves Redol, "Levantado do Chão" (1980) de Saramago, entre muitos outros. Distingue-se "Konikosen" pela ligação explícita ao comunismo soviético, o que eu diria ser inevitável dadas as condições de proximidade geográfica com a União Soviética e as circunstâncias históricas particulares que sucederam à guerra entre Rússia e Japão no início do século XX. "Konikosen" é um livro onde um personagem anónimo faz a declaração inicial que marca toda a narrativa: "Vamos até o inferno." Mas por fim, a exploração desmesurada dos patrões, a crueldade do encarregado, a conivência do capitão e a cumplicidade da marinha levam os inicialmente dóceis e amorfos pescadores à revolta e a tomada de consciência de que só unidos poderiam fazer frente á brutalidade das condições de trabalho que lhes eram impostas. "Konikosen" propicia-nos uma leitura poderosa e tristemente actual.
Através da sua leitura, percebemos a natureza desumana das forças sociais em acção no Japão no início de 1930 e compreendemos mais claramente a génese do nacionalismo doentio e militar que varreu aquele país e o empurrou a celebrar uma aliança macabra com o fascismo europeu (Alemanha, Itália, Hungria, Bulgária e Roménia) em 1940.

Igualmente interessante parecem-me ser as condições que levaram à reedição e renascimento do interesse neste livro. Em 2008, por força da crise financeira internacional, a classe trabalhadora no Japão sofreu um acentuado processo de degradação das suas condições de vida, e neste terreno tristemente fértil, o aparecimento dum artigo a discutir o livro num jornal de grande circulação, o Mainichi Shimbun, em Janeiro de 2008, deu origem a um interesse generalizado, a que veio a se denominar "konikosen boom". O fenómeno culminou com o sucesso inesperado da versão "manga", que havia aparecido em 2006, mas sem grande repercussão", e com uma versão cinematográfica. Não tenho informações de outras implicações sociais. Finalmente, apetece-me dizer que não é só a crise financeira que torna livros como "Konikosen" embaraçosamente actuais, mas também o facto essencial de que uma parte da humanidade ainda não está livre de relações de trabalho e de situações de exploração que são indignas da condição humana.


Orfeu B.


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A memória dos livros

"A Misteriosa chama da Rainha Loana" de Umberto Eco, Difel, 2005

Ser leitor é algo que nos envolve num sem número de circunstâncias. Os livros que lemos ancoram memórias. Quem nunca mudou de casa, não amaldiçoou o peso de caixas cheias de livros e não se sentou no chão esquecido do mundo e da mudança a reler um livro reencontrado? Parte da nossa vida é feita de (re)leituras. Uma parte de nós é feita de memórias.

Giambattista Bodoni, Yambo como todos lhe chamam, é um bem sucedido alfarrabista de Milão que aos cinquenta e nove anos sofre um AVC e perde a sua memória autobiográfica. No entanto, sendo um leitor voraz, a par do desconhecimento de si,mantém toda a memória das leituras feitas, os conhecimentos históricos e as referências literárias.

Desabitado de si, não se lembra do próprio nome, não reconhece a mulher ou as filhas . O afecto está ligado à memória. Sem a memória nada somos e os outros nada são para nós. Atravessa o livro esta condição perturbante da doença, a perspectiva real e assustadora de passarmos por algo assim. Mas Umberto Eco leva-nos de forma enternecedora pelos meandros da convalescença e poupa-nos como se partindo em viagem e olhando a paisagem esquecêssemos a dor de não poder caminhar.

Yambo, seguindo a sugestão de Paola, sua mulher, volta à casa da sua infância, em Solara, no campo, onde nasceu no Natal de 1931. Aí, entre livros, álbuns de banda desenhada, revistas, discos de outros tempos, cadernos de escola religiosamente guardados, vai tentando recuperar a memória feita de imagens fictícias e reais. Eu desconhecia muitas das referências a publicações periódicas, pela dupla distância da época e país, daí que de bom grado me teria levantado para fazer uma viagem a Itália e perder-me num alfarrabista em busca das reproduções que aparecem pelo meio do livro. (Seria também interessante ver o percurso de leituras portuguesas correspondentes…)

No caminho pelo meio dos livros, seus heróis, suas mulheres, Yambo descobre/recorda Lila seu amor de juventude perdido, esquecido, morta já há muitos anos. Entretanto, sofre um segundo AVC e mergulha de novo na penumbra. Fica prisioneiro do corpo, em coma, incapaz de comunicar. Mesmo assim ainda percorremos com ele memórias de infância, dos pais, dos programas de rádio… “voltarás para mim/porque o único sonho és/do meu coração./Voltarás/ porque sem teus beijos lânguidos /não viverei.”... Uma canção do fim da emissão como um apelo, uma promessa a um qualquer soldado perdido nas estepes, durante a guerra. Folheamos álbuns de selos, seguimos reflexões sobre Deus e seus mandamentos, memórias de Mussolini e da Itália fascista que também foi a da infância de Umberto Eco e continuamos a atravessar livros e a encontrar os seus personagens no meio de um nevoeiro cada vez mais cerrado. Acompanhamos Yambo na derradeira tentativa de ver Lila, como se a vida tivesse sido apenas um pretexto para esperar o momento de reencontrar, como Cyrano, no limiar da vida “a mais bela das criaturas”, o seu amor.

Povoam as páginas inúmeras ilustrações de livros, álbuns de BD, revistas… Este é um bom exemplo de um livro cheio de potencialidades para uma versão digital. Há um lado bom nos dois mundos: no de papel e no digital. Neste último aquela ideia da viagem a Itália para me perder num alfarrabista podia cumprir-se instantaneamente. E, se assim fosse ,talvez eu não estivesse já aqui a falar-vos de um livro que vos aconselho ler mas ainda a viajar com Salgari, com Dumas… Ou qual Beatriz seguindo Dante.