quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

JORGE LISTOPAD - PARA ALÉM DO TEMPO E DO ESPAÇO; ENTRE O SONHO E A REALIDADE

Como se poderá depreender pelo título desta crónica, não será fácil escrever sobre o livro que Jorge Listopad acaba de publicar na Cavalo de Ferro – “Remington. Contos”. Jorge Listopad é uma personagem complexa, homem culto, inteligente, sensível, de trato afável. E todas estas características se expressam na sua escrita. Escrita elegante, com um domínio de linguagem como só um autor português de origem estrangeira sabe ter. Daí, a sua fixação nas palavras: as existentes e as que não existem. Sobre as primeiras, diz-nos no início do conto “Ponte em Odeceixe”: “A palavra nomeia. O nome fala. Às vezes com uma força inaudita”. A propósito das que não existem, termina do modo que se segue o conto “Jacuzzi no Cairo”: “Como é sabido que não sabemos inventar novas palavras, pelo menos criamos novas realidades, novos passados, novos acasos. E tu, quando leres este texto, que música te vai apetecer ouvir? Que música estarás a ouvir?” Estas últimas linhas revelam a faceta principal de Listopad autor: o teatro enquanto arte de síntese – a história, a decoração, a palavra, a música. A estrutura teatral deste livro é visível em muitos dos seus contos (veja-se, por exemplo, “Praga sem pontes”, com o seu décor, movimento das personagens, intensidade do diálogo, na fase inicial do conto). Como disse anteriormente, Jorge Listopad é um autor complexo, e este livro expressa abundamente essa complexidade. Duas características são bem patentes: o culto da Beleza e a impregnação erótica dos textos que o compõem. Textos que vivem da mestria da articulação entre o sonho e a realidade, em que presente e passado se fundem e adquirem uma lógica que só pode significar no estado onírico. E é exactamente no sonho que se concretiza de modo mais evidente o erotismo que sublima o desejo sexual: “Que estranho não a ter visto até aquele momento no grupo, quando se sentava debruçava-se, e foi assim que pude ver-lhe os seios nus ou apenas um seio; era bonita essa visão, como se fosse possível apaixonarmo-nos por alguém desconhecido e que pouco depois esqueceríamos para sempre”. Eis um exemplo extraído do conto “Bolívia”, um entre muitos outros. Outra face da escrita de Listopad é a procura do que não se pode alcançar, até porque não existe: “Procuramos sempre o que não há” (última frase do conto “Pró-Diário”). E, por vezes, nem no sonho se consegue vislumbrar o que já havia sido entrevisto, como nos diz na parte final do conto “Vale das Borboletas Mortas” – o paraíso para sempre perdido. Do alto dos seus 90 anos, Jorge Listopad já vive na eternidade, como nos diz nos dois últimos textos desta obra (“Chamo-me Orfeu” e “Sigmas, Sinos”). E o livro termina com este parágrafo: “Tu, que me estás a ouvir, faz de mim o que quiseres, pensa comigo até onde puderes, enquanto eu continuo a semear os sigmas e os sinos sonoros que tocam... tocam... tocam...” Obrigado Jorge Listopad e até sempre amigo, poeta semeador de sigmas, de sinos.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

CREIO PORQUE É ABSURDO

Credo quia absurdum (ou seja, “Creio porque é absurdo”) é assim que se inicia o novo romance de Luís Joyce-Moniz, intitulado “Dualistas: O Hipnotista Abade Faria e o Enigma da Descorporização em Vida” (Edições Colibri, 2013). Luís Joyce-Moniz é um autor diferente na moderna literatura portuguesa. Psicólogo de formação e profissão, é professor catedrático aposentado da Universidade de Lisboa, onde exerceu uma forte influência na formação (teórica e prática) de estudantes de cursos de Psicologia. Joyce-Moniz foi o grande introdutor em Portugal de modelos e metodologias que tinham como suporte a Psicoterapia Cognitiva. O que não foi tarefa fácil, numa época em que predominavam as correntes que se filiavam em princípios e práticas da Psicologia Analítica. Durante anos, Joyce-Moniz publicou uma série de obras de carácter científico e formativo, aliás, com êxito assinalável. Embora tivesse entrado, em jovem, no campo literário, como autor teatral, foi só em 1998 que iniciou a sua carreira como romancista. Primeiro com a publicação de “In & Out”, logo seguida, em 2000, do “Corpo Conversivo”, ambas as obras editadas pela Relógio d’Água. Em 2002, publica, pela Quarteto, “A Psicologia não Existe”. Dotado de uma inteligência brilhante, de uma intensa curiosidade pelo que ao Homem é essencial, possuidor de uma cultura profunda em vários domínios do saber, Joyce-Moniz expressa muitas dessas qualidades nos seus romances, sem esquecer a sua formação de base em Psicologia. Ora, o livro que agora se publica será talvez aquele em que o autor leva mais longe as suas qualidades de romancista. Não só pelo tema (a dualidade corpo-espírito), como pela trama em que se desenrola a acção e se apresenta o pensamento das personagens que intervêm ao longo do processo narrativo. Subjacente ao que acabei de dizer, está uma estrutura dramática eivada de mistério e conflitualidade, que o aproxima do romance policial, em que a acção se situa no plano psicológico. Ou seja, a partir de certo momento, o texto adquire o ritmo de um policial cinematográfico, tal a força da visualização da descrição e a dinâmica de que se vai impregnando. A história, propriamente dita, desenvolve-se ao longo de 18 capítulos e “está redigida no presente do indicativo e a narrativa reflecte o pensamento e as acções do protagonista, Claude Navarro (embora este não seja o narrador)”, no dizer do autor. O “auteur savant”, na expressão de críticos literários franceses, permite ao autor, portanto aquele que “sabe”, uma maior liberdade na introdução de conceitos (hipnose, sugestão, meditação, concentração, indução, sono lúcido, e outros) e na textura do drama psicológico. Conceitos e práticas que o autor domina cientificamente (veja-se o seu livro “Hipnose, Meditação, Relaxamento, Dramatização”, publicado em 2010, pela Porto Editora), cujas aplicações práticas nos descreve neste seu romance, em que acção se passa na Índia do Sul, local onde viveu e de que tem um conhecimento profundo. Permitam-me, ainda mais, algumas notas. Uma, sobre o modo como o dualismo espírito-corpo é compreendido nas três religiões da India: hinduísmo, jainnismo e budismo; outra nota, sobre o Abade Faria, português de finais do século XVIII, inícios de XIX, nascido em Goa e vivente em Paris, que ficou célebre pelas suas teorias e práticas sobre estados de alteração da consciência, de que o sono lúcido será a mais relevante. A última nota que quero deixar é algo que não é uma qualidade menor deste romance, antes pelo contrário: a finíssima linha erótica que o percorre e que tem o seu epílogo na parte final da obra. Fruto de uma saída do corpo mal sucedida, o espírito de Claude Navarro fica a pairar, em dificuldade de voltar ao corpo, o que poderá originar a sua morte física. Mas, finalmente, a situação resolve-se: “Jananee, em carne e osso, e com aqueles cabelos longos negros magníficos sobre as costas, está estendida em cima do seu corpo. ‘Claude, por favor, não morra agora…’ Não morre. Não morre, porque autoscopia, adieu. Como pode não acabar de pairar, se a vê e revê colada a ele, num boca a boca que imagina frenético? ‘Claude, não se atreva a morrer nos meus braços.’ Está quase a senti-la em cima dele. Da última vez que se entesou, foi no almoço de Vandiyur Mariamman Teppakulam, e os seus joelhos só se tocavam de quanto em vez. ‘Claude, regresse à vida!...’ Coragem. Que ela aguente, pois ele vai já na descensão. Antevendo-se a reincorporar tantas vezes quanto puder. ‘Claude…’ Cortando a brisa nocturna, desce vertiginosamente na direcção dos corpos. Se ela puder reter-se, ele desiste do dualismo para sempre.” Em suma, estamos perante uma obra com um argumento superiormente concebido e, acentue-se, muito, muito bem escrita.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Qual é a palavra?



loucura
loucura para que
para que
qual é a palavra -
loucura disto -
de tudo isto -
loucura de tudo isto -
adquirida -
loucura dado tudo isto -
vendo
loucura vendo tudo isto -
isto -
qual é a palavra -
isto isto -
isto isto aqui -
tudo isto isto aqui -
loucura dado tudo isto -
vendo -
loucura vendo tudo isto isto aqui -
para que -
qual é a palavra -
ver -
mirada fugaz -
parece ver fugazmente -
precisa parecer que vê fugazmente -
loucura pela necessidade de parecer ver fugazmente -
qual -
qual é a palavra -
e onde -
loucura pela necessidade de parecer ver fugazmente o que onde -
onde -
qual é a palavra -
ali -
lá -
para além do lá longe -
longínquo -
longínquo para além do longe -
enfraquecido, vago -
enfraquecido, vago ao longe para além do lá qual -
qual -
qual é a palavra -
vendo tudo isto -
tudo isto isto -
tudo isto isto aqui -
loucura para ver qual -
mirada fugaz -
parecer ver fugazmente -
necessidade de parecer ver -
enfraquecido, vago ao longe para além do lá qual -
loucura pela necessidade parecer ver fugazmente -
qual -
qual é a palavra -

qual é a palavra

What is the word, Samuel Beckett

(Tradução de Orfeu B)


Há dias, ou ontem, ou antes, pouco ou muito, eu esperei por Godot por cerca de duas horas no Teatro Nacional São João (TNSJ) do Porto. Eu sabia que ele não viria, mas lá estive e fiquei para recordar-me da revelação que a leitura de Beckett me tem sido ao longo da vida.

Horas de espera, menos de dois meses depois de ter ido, também ao TNSJ, ver a enterrada viva, declarar que os dias são felizes. E vale a pena dizer que o monte que serviu de toca/campa para Molly era poroso e de cortiça. E é natural esperarmos pelo fim do jogo. Pela conclusão da trilogia. Ou simplesmente pelo fim, pois tudo em Beckett é sobre o fim. Embora não se trata de um estilo, ou de um modismo do seu tempo (1906-1989); não, em Beckett a acção e os movimentos forçados dos personagens decorrem das leis da inércia, das leis da psicologia, das normas metafísicas da alma humana na sua mais absoluta solidão. E os factos colam-se às palavras pelas afinidades da essência e da existência. As palavras, que segundo Beckett, são as únicas entidades que rompem o silêncio. E estas sucedem-se arrastadas pela inviabilidade do discurso (eu nunca uso o termo absurdo por considera-lo insuficiente, demasiado indistinto) e pela arbitrariedade dos acontecimentos na estrutura geral do cosmos. As palavras emulam a fluidez do tempo, e simultâneamente, materializam a impenetrabilidade dos significados, admitindo-se que faz sentido atribuir significado às coisas. Mas suponho que Beckett não acreditava em significados. Suponho que Beckett tinha crenças baseadas em movimentos e palavras. No sentido colectivo que as palavras têm ou podem adquirir se forem repetidas ao ponto de criarem condicionamentos emocionais. 

Para Beckett os territórios são brancos, e o público tem que os vislumbrar nos olhos dos seus personagens. São angústias de autor e de espectador a reflectirem-se infinitamente, de olhos para olhos, como se fossem um fogo frio que impregna a todos, mas que, por mero acaso, poupa uns quantos do verdadeiro exercício de entender: "Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem".    

E enquanto esperamos, há a deplorável vileza do amo que acaba cego, a submissão abjecta do escravo, que inunda os ouvintes com pensamentos conexos pela ausência de nexo. Pensamentos que inspiram Estragon e Vladimir a perguntarem-se: "Pensar? E isto já nos aconteceu?" 

Mas tudo em Beckett é um ancore do fim. E claro há o fim do último poema, What Is The Word (Qual É A Palavra) :

folly -
folly for to -
for to -
what is the word -
folly from this -
all this -
folly from all this -
given -
folly given all this -
seeing -
folly seeing all this -
this -
what is the word -


O fim que é um início para quem compreende qual é a palavra, ou o que é a palavra. Um início que marca o verdadeiro fim. O único fim possível.

Orfeu B.
   


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O BISPO ALUCINADO




Albano Estrela fala do seu último livro (O bispo alucinado, Lisboa, edições Colibri, 2013) como sendo um livro «estranho». Mas reconhece-se imediatamente nele o seu estilo fluente, claro, escorreito e rápido, sem grandes pormenores, ou só os necessários para caracterizar personagens e situações, sem aparentes preocupações de estilo, enfim, com aquela maturidade de quem já não está para entrar na primeira (ou última) moda que lhe apareça nem muito preocupado com o que do livro possam dizer em termos de caracterização ou de catalogação literária.
A obra é constituída por duas novelas: “Um portuense em Paris entre a espiritualidade e a licenciosidade”, ou “A paixão segundo Santo Hirondino” (podemos escolher o que mais nos agradar) e uma segunda intitulada “ O bispo alucinado”, que dá título ao livro.
Da obra consta ainda uma Nota de apresentação, onde Albano Estrela explica a origem e a razão de ser das duas novelas, e um prefácio «Da paixão que nos ilumina na vida e na morte”, de Ana Viana, aliás excelente e que caracteriza, muito bem, toda a problemática das novelas em que se sente que o Autor está, sem estar; não se identificando com as personagens compreende-os e sente em si os problemas que os angustiam e a procura ansiosa a que votaram as suas vidas apaixonadas.
Pela apresentação que do livro faz o Autor ficamos a saber que a primeira novela é baseada numa personagem real da sua juventude portuense, e cujo itinerário foi acompanhando com alguma irregularidade pela vida fora, e a segunda foi-lhe sugerida por notícias, a princípio avulsas, e informações posteriores, umas com rigor histórico, outras mais ou menos lendárias, sobre D. António Luís Veiga Cabral e Câmara, bispo de Bragança e Miranda entre 1793 e 1819.
A primeira novela baseia-se pois em memórias pessoais do Autor e procura reconstituir o itinerário literário, cultural e espiritual de um amigo de juventude, com quem conviveu em algumas tertúlias portuenses, personalidade controversa e problemática, de invulgares capacidades intelectuais, que oscilando entre o erotismo mais desbragado e a espiritualidade mais exigente, não cessava de multiplicar interesses e acumular experiências que lhe haviam de permitir escrever, um dia, uma obra-prima que sintetizasse todas estas vivências. Passando por situações laterais e personagens curiosas, a viver dramas anódinos, que dir-se-ia diluídos no quotidiano prosaico da cidade, capazes todavia de situações extremas e de desenlaces fatais. Ou seja, são personagens perdidos no dia a dia, para o que parece concorrer a aparente simplicidade com que são relatados os factos e as situações, mas com a densidade dramática que só os desenlaces finais tiram da invisibilidade e as tornam muito mais complexas do que se pensaria.
E é aqui que radica grande parte do dramático que, na aparente ausência de dramatismo, a prosa de Albano Estrela consegue. O que parece contraditório, mas não é. Face a uma literatura que tem tendência para usar demasiadas palavras para produzir o drama, diluindo-o, é necessário reduzir o drama ao mínimo de palavras para este voltar a sê-lo, ou a poder ser. E isso consegue Albano estrela com uma prosa clara e elegante, e com uma grande capacidade de empatia pelas personagens e de entrada nos ambientes em que estas se movem.
Isto é particularmente notório na segunda novela, “O bispo alucinado”, em que, em poucas páginas, se reconstitui, com aparente facilidade, o quarto de moribundo de um bispo que sente, nos últimos dias de vida, necessidade de relatar as suas experiências espirituais porque ouviu vozes do alto que lhe ordenam que o faça. Toda a tensão psico-afetiva e toda a espiritualidade já meio demencial e alucinada perpassam, com suavidade, por aquele quarto, onde sentimos a morte pairando negra e, ao mesmo tempo, a força da espiritualidade mais violenta e ardente. Dai Ana Viana dizer, no prefácio, que se trata de duas novelas «magistralmente escritas».
Por outro lado, há, na primeira novela, o velho problema das vivências necessárias à criação. Ou inibidoras? Ou desnecessárias?
É, como se sabe, um problema eterno e sem solução fácil. Passa pelos autores que, em fichas, cadernos de apontamentos, blocos de notas, “moleskines” de vários tamanhos e categorias de elástico, gravadores, registos vários, acumulam ideias, esquemas, esboços, resumos, expressões idiomáticas, regionalismos, neologismos, etc., procurando guardar experiências e mais experiências que lhes permitam plasmar, um dia, em obra, todas essas diversas vivências e informações.
E ao lado os autores que, pelo menos aparentemente, não ligam nada a isso. E se metem num quarto, se sentam à mesa, de preferência voltados contra a parede, como Dulce Maria Cardoso, ou forrando janelas e paredes com pesados e duplos cortinados, como Marcel Prust, e sem terem vivido grande coisa, pelo menos na aparência («Navegar é preciso; viver não é preciso») como disse Pessoa retomando a fala de «marinheiros antigos e a turma toda dos seus heterónimos, ou de Kafka, começam a tirar da cabeça, a puxar, na solidão silenciosa, os fios das mais variadas e inesperadas experiência imaginadas ou rememoradas ou fantasiadas, criando obra. E às vezes que obra! Que, se calhar, nem tinham pensado escrever, nem para a qual se tinham andado a preparar, desleixando experiências, esquecendo, deixando pelo caminho muita coisas.
É um dos grandes dramas por que passam todos os escritores e que Albano Estela retrata muito bem, em relativamente poucas páginas, seguindo, quase sempre de longe, e com grandes prazos de intervalo, o itinerários do seu antigo amigo “Hirondino”, personagem rica, complexa, contraditória, sempre carente, à procura de experiências novas que lhe permitissem também a compreensão da natureza humana, além da obra perfeita, a síntese salvadora que uma vida intensa, múltipla e rica merecia. Mas que se confronta com a morte e com o falhanço (a inutilidade?) das suas experiências, todavia vividas e ricas e maravilhosas, mas que se multiplicaram sem, pelo menos na aparência, uma ”solução” salvadora. O que nos leva a perguntar, com a simplicidade e o drama que a pergunta contém: o que salva uma vida? O que a redime? E o que há na nossa vida de irrepetível ou de cíclico? E de passageiro ou de eterno? A última frase da novela é, sobre isto, ambígua e esclarecedora: «Não sei se me reconheceu, mas estou em crer que sim, pois, quando me despedi, abriu os olhos e o seu olhar foi atravessado por aquele lampejo que iluminava as nossas noites na cave do Café Rialto, sessenta anos atrás».

João Boavida

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A PERSONAGEM E O ACTOR


Depois de há poucos meses me ter estreado na leitura de Ana Teresa Pereira com o notável romance "O Lago", tenho para mim a saborosa obrigação de entrar mais e mais na sua excelente escrita.

"As longas noites de chuva em Nova Orleões", tem óbvia relação com "O Lago". O mesmo ambiente, Londres, chuva, nevoeiro, os seus teatros, os actores, os pequenos almoços, os pubs, os perfumes, as flores, um universo de subtilezas distantes da evidência solar do Sul.

A acrescentar, a permanente referência à literatura, ao cinema e aos actores de filmes, todos anglo-saxónicos (quase todos do tempo do preto e branco e não por acaso, certamente), criando um permanente diálogo entre ficções e tempos, uma forma de ampliar a narrativa através de uma teia de referências a palavras, textos e rostos que, se por um lado, iluminam e explicam, por outro, estabelecem redes de ambiguidade e, por vezes, muito inquietantes identificações.

Se depois de ler estes dois livros, não soubesse quem era a autora, pensaria tratar-se de uma escritora inglesa, de tal maneira a paisagem, a cultura, a respiração inglesa impregnam a escrita de Ana Teresa Pereira.

A personagem central, Kate, é uma actriz que se vai dissolvendo na personagem que se prepara para levar à cena. E que se vai apaixonando ou deixando apaixonar pelo seu autor e actor, também. Mas é também, talvez, o retrato de cada um de nós à procura, desmunidamente, da nossa própria personagem na vida, do nosso perfume, da nossa roupa, da nossa assinatura, em busca de saber quem somos, e levados a viver perdidamente entre o real e a ficção, entre o natural e o cultural, entre o amor e a ideia de amor.

"O importante é amar alguma coisa e a partir daí pode-se começar de novo, começar de novo uma e outra vez."

A acompanhar esta novela, temos 3 contos de perfil próximo do gótico Ainda mais ingleses que a própria novela, se possível. Ou melhor, devedores de estratégias narrativas negras, ambíguas e fascinantes de autores como Ana Teresa Pereira que domina o mecanismo da estranheza e do arrepio.

Um dos contos fica para mim como dos melhores contos que já li, "A Sombra"

No final, saído desta notável literatura carregada de chuva, nevoeiro, e da extraordinária ambiguidade da negritude semi-gótica, corri em busca de um escritor mediterranico, alguém do lado da luz, da transparência, da fraternidade. Talvez Erri de Luca, Panos Karnesis ou Ignácio Martinez de Pisón... Talvez...