quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
O apocalipse dos trabalhadores
"HORA AZUL" de ALONSO CUETO
Mais um dos autores publicados em português que mostram como é poderosa e variada a literatura sul-americana.
O início é enganador. Parece uma xaropada light sobre a vida da burguesia bem posta da capital do Peru. Estive quase-quase para o pôr de parte. Só não o fiz porque conheço a editora (Mercado das Letras)e acredito no seu critério de escolha editotial. Tinha que haver ali um gato escondido. Eu é que não via o rabo de fora. Mas rápido apareceu.
O romance é contado na primeira pessoa por Adrián, advogado de sucesso, com escritório de luxo em Lima, secretária, clientes de dinheiro, uma família irrepreensível, mulher social e atenta, filhas amorosas, missa ao domingo, carreira brilhante e estável.
O ritmo narrativo é sólido, contido, sem sobressaltos. A escrita muito segura. No entanto, e sem que o ritmo se altere, com a morte da mãe, Adrian vê-se subitamente confrontado com o passado do pai, militar com a vida passada na guerra bárbara contra o Sendero Luminoso, um grupo guerrilheiro de suposta inspiração maoísta com métodos de terror que exerceu uma actividade feroz durante os anos 80 e inícios da década de 90.
Na guerra suja entre exército e Sendero, o pai de Adrián torturava, matava, violava jovens camponesas mais ou menos suspeitas de dar apoio aos guerrilheiros e mandava matá-las depois. Um dia, no entanto, apaixonou-se por uma dessas raparigas que conseguiu fugir-lhe e de que não se conhece o rasto.
Adrián fica obsecado pela busca dessa jovem e mergulha no outro lado da cidade e do país. Percebe então que o mundo social em que se move vive à margem da miséria, da pobreza, da violência. Vai cada vez mais fundo ao passado, em busca da rapariga que seu pai amou, movendo-se numa vertigem crescente que nos confronta com os relatos da guerra terrível que marcou a vida daquele país durante muitos anos, em que os métodos bárbaros de violação e tortura eram comuns na época a muitos países da América do Sul.
Não se trata de um livro mais ou menos folclórico sobre relatos de uma guerra suja. É mais do que isso. É um livro muito consistente e inquietante sobre a procura das raízes, a conquista da memória por mais dolorosa que ela seja. E nesta procura da memória encontrei, a certa altura, um paralelo com a nossa guerra colonial cuja memória está por construir, sabendo nós, no entanto, que a abertura à luz dessa memória pode ser o abrir de uma perigosa caixa de Pandora.
domingo, 28 de dezembro de 2008
A fome
Em resumo, um livro cheio e grande sobre quase nada. Notei também no paralelismo 8também acentuado pelo Paul Auster) com esse conto extraordinário (e escrito mais tarde do que este romance) do Kafka que é "O artista da fome".
Umas boas entradas em 2009 com boas leituras e com os votos de que surjam surpresas literárias antigas e novas para todos nós.
sábado, 27 de dezembro de 2008
"AGÊNCIA Nº 1 DE MULHERES DETECTIVES"
Alexander McCall Smith, nascido na antiga Rodéria, é médico de Medicina Legal na Universidade de Edinburgo e especialista em bioétnica. Escreveu cerca de 60 romances nomeadamente os que fazem parte da séria "Agência nº 1 de Mulheres detectives".
Confesso que sou um fanático das aventuras da extraordinária de Mma Ramotswe, do Botswana, que resolve vender a pequena manada de vacas que o pai lhe deixa em testamento para abrir a 1ª Agência de Mulheres Dtectives daquele país.
Os casos que Mma Ramotswe resolve são os "crimes" possíveis num país como o Botswana. Uma delícia. Pequenos roubos, desavenças conjugais, mistérios do quotididiano que Mma Ramotswwe resolve com uma finura de espírito e um bom senso desarmantes.
Para além de Mma Ramotswe, as figuras secundárias não lhe ficam atrás: a sua secretária Mma Makutsi e o mecânico de automóveis Mr. J.L.B. Matekoni que se tornará marido da detective e ambos acabarão, quase contra-vontade, por adoptar duas crianças em que uma delas, a menina deficiente, revela um excepcional talento para a mecânica de automóveis.
É também enternecedor todos eles acharem que, com todas as suas limitações, vivem no melhor dos mundos e preservarem aquilo que acham ser a ética, a solidariedade e os justos valores colectivos do Botswana.
Mma Ramotswe e os seus amigos são bons, calorosos, defensores do bem, da moral, da bondade, da solidariedade,e da tradição que por vezes até se torna questionável.
Cada livro é um momento de raríssimo prazer na forma como traça um retrato de África cheio de ternura, ingenuidade e doçura, na forma como, ainda, denuncia a corrupção, o machismo, a aldrabice, o atraso auto-complacente.
Foram publicados 3 títulos. Mas há mais que estão por traduzir. E é uma pena. Na editora disseram-me que não têm tido vendas significativas. Por isso lanço um apelo: façam propaganda, digam aos vossos amigos e aos filhos (a partir dos 11/12 anos) para lerem as aventuras da Mma Ramotswe. Aumentem as vendas, façam com que a editora se sinta encorajada ou mesmo encurralada e tenha de continuar a publicar os livros de Allistair McCall Smith.
Quando tiver tempo para consolidar o meu inglês será para ler Shakespeare no original, e Marlowe, e William Blake, e Dickens,e Yeats, e T.S. Eliot, e Oscar Wilde, e Dylan Thomas, e... E também as aventuras de Mma Ramotswe porque os livros em que se contam as suas aventuras são um entretenimento que nos deixa de bem connosco e com a vida e essa também é uma das funções da literatura.
sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
Gente das Nuvens
"Gens des Nuages"
Jemia e J.M.G. Le Clézio
A propósito do texto do mestre-amigo-cúmplice Albano Estrela sobre a obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, recentemente galardoado com o prémio Nobel de Literatura de 2008, arrisco umas breves linhas sobre um dos belos livros de viagem deste autor franco-mauriciano, desta feita escrito conjuntamente com a sua esposa, Jemia.
Viajar pelo Saara marroquino em busca de traços do processo migratório dos antepassados de Jemia é o objectivo declarado deste relato. Contudo, a envolvência da paisagem dá margem a reflexões transcendentes e universais. A dureza do ambiente e o seu silêncio imperturbável sugerem uma magia invisível, um absoluto irredutível que esculpidos em cada marca da paisagem balizam e fundem o fluxo histórico colectivo e individual. Só a leveza e o mistério dos nômadas do deserto, gente das nuvens, parece ser capaz de compreender verdadeiramente o que nos escapa, "o equilíbrio entre o sagrado e o profano, entre a palavra divina e a justiça humana. E o amor pela água e pelo espaço, o gosto do movimento, o culto da amizade e da generosidade. Apesar de nada possuirem para além dos seus rebanhos."
E não há economia de meios para descrever o poder transformador da viagem, "um progresso na direcção de uma nova dimensão. Pois, aqui em Saguia el Hamra, o passado não é o passado, ele mistura-se com o presente como uma imagem sobrepõe-se a outra. Como se sobre uma face se pudesse vislumbrar os traços que a engendraram, ou como se através das palavras de um mito pudesse surgir a verdade."
Mas exortam os autores que "o Saara não é só a beleza dos crepúsculos, da ondulação sensual das dunas, das caravanas de miragem. Aqui é um país onde o nível de vida é um dos mais baixos do mundo, onde a mortalidade infantil é a mais elevada (35%, contra menos que um por mil nos países industrializados). Onde a água dos poços é amarga; onde só a água da chuva, permite o deleite da água doce."
Mas é nesta paisagem que o presente sugere uma "via para a eternidade", onde "A dureza mineral ..., o desenho das nuvens, cada detalhe do horizonte são iscas visíveis para um outro vale onde reina o amor do santo pelo seu povo." Foi na intimidade aberta destas paragens que umas das grandes correntes filosóficas da história encontrou terreno fértil, uma escola do pensamento que unificou a lei do Profeta com a razão dos gregos, com a força bíblica, com a profundidade da meditação Vedanta, o sufismo de origem persa. Pois há no deserto uma "verdade sem forma".
Suponho que a leitura das belas páginas deste relato induz sobretudo sentimentos móveis, que dê asas à lei da atracção. Pois o deserto a muitos atrai (como outros são atraídos pelos mares, e outros pelas vastidões geladas). Mas a mim sugerem acima de tudo uma calma nostalgia. A da memória dos desertos por onde viajei e a do poema que lhes dediquei (O Poema do Deserto), já lá vão 20 anos.
Orfeu B.
CARTA INÉDITA DE SERPA PINTO
quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
A SÍNDROME DE ULISSES
Neste ano tenho andado à volta dos autores sul-americanos da geração que sucede á dos 5 ou 6 "monstros" da literatura que são Neruda, Borges, García Marquez, Carlos Funtes, Octávio Paz e mais um ou dois.
Cabem aqui vários nomes, Sérgio Pitol, Sepúlveda, Bolaño, Laura Restrepo, David Toscana, Guillermo Fadanelli e vários outros, entre os quais o colombiano Santiago Gamboa.
"A síndrome de Ulisses", de Santiago gamboa, é um livro poderoso e envolvente sobre um tema que me é caro: o desenraizamento e as permanências culturais e comportamentais das emigrações.
A primeira das três partes que compõem a narrativa oferece-nos um magnífico cruzamento de histórias de várias personagens da emigração económica e a emigração ou exílio político em Paris, com as suas motivações, desesperos, obsessões, desejos, misérias e grandezas. Temos os sul-americanos, os árabes, um coreano, os africanos, os de leste.
A segunda parte tem alguns aspectos especialmente interessantes: a história de Nestor, o ex-guerrilheiro colombiano, jogador brilhante de xadrez, desaparecido numa história de recorte policiária; em simultâneo surge-nos o inesperado amante de Nestor, professor francês de filosofia, comunista e homossexual; a história de Jung, o coreano que que lava louça num restaurante e faz tudopara conseguir arrancar a mulher a um hospital psiquiátrico de Pyongyang e mandá-la vir para Paris mas que se suicida porque não consegue voltar a enfrentá-la; a do marroquino Salim que quer libertar-se da obsessão por um romance argentino mais ou menos obscuro descoberto na sua cicdade de Marrocos e que faz o doutoramentp para, através de uma rigorosa análise literária, conseguir exulsar de si a obsessão por aquele livro.
Segue-se uma espécie de descida ao delírio do sexo. Parece haver algum excesso de voyeurismo que, no entanto, quanto a mim, pode ser explicado porque o espaço do exílio é também o espaço da falta de raízes e da quebra de todas as regras em especial no sexo onde emigrante porventura encontra o úinico espaço de liberdade e de busca desmesurada de afecto e consolo.
Uma das caracteísticas deste romance é a das referências literárias constantes que parecem ser uma preocupação desta geração de escritores sul-americanos (a julgar por Bolaño). Cheiram por vezes a um certo novoriquismo cultural ou procura de uma clientela da elite “culturalesca", ou ainda a uma forma de fuga ao real (quer seja um real ficcional ou não) e a um trabalho fundo sobre a própria linguagem.
Como Bolaño, escritor chileno que é uma espécie de referência obrigatória para os jovens escritores latino-americanos, Santiago gamboa vai também pegar em personagens reais personagens reais (Goytisolo, Neruda, etc) para as misturar na ficção.
Com Gamboa percebemos bem a questão da perda doéspaço de pertença, do folclore associado aos dencontros e desencontros da emigração onde os homens e as mulheres ficam a viver num limbo mais ou menos agressivo onde é preciso desenrascarem-se e esperar que o tempo lhes traga o dia de sorte que às vezes não vem.
A terceira parte parece um pouco apressada. O autor precisa de acabar e desata a acabar deixando tudo em aberto como, se calhar, convém.
O fundamental é que tem um magnífico fôlego narrativo, desenha muito bem algumas das personagens e faz-nos sentir os locais, o ambiente, a temperatura, a terrível angústia do emigrante, esse animal que perdeu o seu território materno por vezes para sempre.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
LE CLÉZIO NOBEL DA GRANDE LITERATURA FRANCESA
J.-M. Le Clézio há muito que é considerado um dos nomes maiores da literatura francesa da segunda metade do século XX. Galardoado aos 23 anos com o prémio Renaudot, pelo seu livro de estreia, “Le Procèss-verbal”, terá de esperar 45 anos para que lhe seja atribuído outro grande prémio, o Nobel, em 2008 (note-se que, em 1980, a sua obra “Désert” tinha sido distinguida com o Prémio Paul-Morand, da Academia Francesa). O que é de estranhar em país tão pródigo em prémios literários, como é a França.
Francês das sete partidas, as dezenas de obras que publicou expressam muito da sua errância por terras e gentes várias, cadinho da mundivivência de que a sua obra é feita – o que lhe confere uma dimensão universal, que não retira um cunho pessoal a tudo quanto escreve: as personagens dos seus romances, das suas histórias, são a expressão das suas vivências de menino, de adolescente, de jovem adulto. Através delas e da sua evolução na teia da acção em que estão inseridas, entramos no seu universo, no que ele tem de mais íntimo, portanto, na pesquisa incessante de si mesmo. “Escrevo para tentar saber quem sou”, diz-nos em entrevista publicada na revista “Lire”, de Novembro último. E acrescenta: “Sou incapaz de falar de mim de outra forma que não seja a ficção”. Falar de si, sim, mas através de uma linguagem que aprisiona um mundo de emoções, de sentimentos, de desejos. O que é evidente em qualquer um dos seus livros traduzidos em português. De entre eles, não posso de deixar de referir “A Febre”, editado pela Ulisseia, não por ser uma das suas obras de maior relevo, mas por agrupar um conjunto de histórias, cujo tema foi tirado de uma experiência familiar, no dizer do autor. Histórias escritas nos primórdios da sua carreira literária, histórias relativamente curtas, histórias que me impressionaram pelo experimentalismo da escrita e pela exploração da “pequena loucura”, que vive dentro de cada um de nós.
Histórias que têm raízes no existencialismo francês, mais próximas de Camus do que de Sartre. Alguns dos temas centrais nas obras de estes autores são uma constante nos textos de Le Clézio: as obsessões; o pesadelo sem saída; a ruptura eminente; a inquietação verruminosa; a inutilidade do estar; a descida contínua para o nada.
Um autor “negro”, este Le Clézio dos primeiros tempos? Em parte, talvez. Mas só parcialmente, pois todas as nove histórias que constituem a obra tendem para um ponto de ruptura, que tanto poderá ser o início da descida sem remissão aos infernos, como um sinal de libertação.
Seja como for, algo é indiscutível: J.-M.Le Clézio é um autor com um poder de observação notável, que lhe permite alcandorar-se a um lugar cimeiro na descrição de situações que configuram a existência do homem em busca da sua identidade.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
UMA NOVA LITERATURA?
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
A paralizacao da creatividade
Abraco da fria Bruxelas
domingo, 14 de dezembro de 2008
Para além do espírito dos lugares
And next year’s words wait another voice.”
“Little Gidding”
T.S. Eliot
Todo o “ismo” tem fronteiras afirmativas imprecisamente definidas. Separam-se os “ismos” entre si, muito mais pela negação do que repudiam e do que pretendem superar. Para além da fronteira há sempre uma “terra de ninguém”, minada pela dubiedade e pela identidade não completamente assumida de fórmulas já gastas ou por inventar. Aquém, há um baldio de ideias em estado embrionário, projectos algures especificados no respectivo manifesto de intenções/revoluções que ainda não têm cores próprias ou capacidade de mobilização.
No seu “ismo” de eleição (ainda que seja só o de Narciso), todo o autor vasculha por entre os baldios acima sugeridos, o protótipo do projecto seguinte. Inquieto, sôfrego procura vestígios para aquilo que, depois dum árduo esforço, será a redempção seguinte (e que parece ser sempre definitiva).
Não me envergonho da escolha algo banal que me serviu de bússola no meu projecto literário mais recentemente terminado, “O Espírito do Lugar”. A pretenção de capturar a essência dos lugares, das situações e os correspondentes estados de alma é o mais básico dos impulsos descritivos. Há contudo, uma sensação de oportunidade perdida por não o ter povoado com outros personagens identificáveis. Por não ter inventado outros actores para emprestar mais orgânica e respiração à trama do texto. O exercício assemelhasse-me agora ao da pintura duma natureza morta. Necessário, embora irremisivelmente incompleto, quando se tem a sensação que havia meios para temas mais abrangentes. Mas, ..., havia, há, haverá ? Suponho que não há como sabê-lo à partida. Imagino que este salto para o vazio é a parte mais inquietante do processo criativo, e também o que tem de mais excitante e aliciante. Penso que as obras de arte só são dignas do epíteto quando estão impregnadas com a ambição da transcendência, da superação.
E servem os “ismos” também para este fim. Balizam os esforços. Potenciam as ambições. São o contexto que apoia a linguagem para o ciclo que se encerra. Para o seguinte há que se criar um novo universo. Uma voz completamente renovada.
Orfeu B.
FINALMENTE AO DÉCIMO SÉTIMO...
“Em ‘Le Monde’ de fins de Agosto de 2004 vem publicado um longo artigo sobre a ‘rentrée’ literária em França, que me deixou impressionado: prevê-se a saída de 661 novos romances, dos quais 440 franceses. Note-se que em 1994 eram ‘apenas’ 364... E dos 440 romances franceses, 121 são de autores que publicam, agora, a sua primeira obra. Enfim, um espanto para início de ano literário – apesar de tudo, números um tanto inferiores aos do ano anterior.
Como se poderá gerir esta massa enorme de obras, lançadas no mercado de uma só assentada? Quais os mecanismos de promoção seguidos pelos editores, pelos distribuidores, pelos autores? Ora, na opinião do jornalista (Alain Salles), só a conjugação de quatro factores poderá catapultar uma obra para o sucesso: apoio de uma grande editora; obtenção de um prémio literário; divulgação da obra nos meios de comunicação; permanência prolongada nas bancas das livrarias. É evidente que outros factores também poderão ajudar (e em muito) ao sucesso. Por exemplo, o autor (ou aquele que tem o nome na capa...) ser figura conhecida da televisão, do ‘jet set’, do futebol... E (por que não?) a obra ter algum valor literário e tratar de assunto de actualidade – factores que, estou em crer, de cada vez têm menos importância...
E, a corroborar o que dito foi, uma outra jornalista e crítica literária, Josyane Savigneau, fala-nos, em artigo do mesmo jornal, do caso de Alain Fleisher, romancista de excelência, que já publicou dezasseis obras, todas sempre preteridas pelos júris de prémios literários, que preferiram distinguir obras cuja notoriedade se extinguia no dia seguinte ao da atribuição do prémio. E Josyane Savigneau faz votos para que o último romance deste autor desconhecido, ‘La Hache et le Violon’, agora lançado, não soçobre no mar de indiferença em que se diluíram os seus dezasseis livros anteriores. E eu estou certo que sim, que, desta vez, a obra vai singrar, não fosse ela objecto de artigo de página inteira, no mais prestigiado dos jornais franceses...
A dificuldade de uma obra sair do anonimato conheço-a eu – e bem –, tanto como autor, como editor. Na verdade, o acesso à divulgação da obra não decorre do seu valor, mas de múltiplos factores, que nada têm a ver com o seu valor, pois os grupos, os ‘lobbies’, exercem um controlo dificilmente contornável. Mas nem sempre foi assim. Estou a recordar-me do que acontecia nos anos cinquenta, sessenta, em que havia críticos, que não só liam as obras, como procediam a recensões literárias de qualidade. Entre eles, há a destacar os nomes de João Gaspar Simões e Óscar Lopes. Mas outros também exerceram um magistério digno de menção, tanto em páginas literárias de jornais diários, como em revistas de cultura – Nuno Sampaio foi um deles. Todos, quase todos, esquecidos ou em vias de desaparecimento da memória do Portugal da Cultura.
Por vezes, leio algumas críticas – negativas – ao modo como João Gaspar Simões e Óscar Lopes exerceram a sua função de críticos literários. Ao primeiro, aponta-se o seu pendor impressionista, a ausência de um método ‘científico’ de análise de texto; ao segundo, Óscar Lopes, critica-se a utilização exclusiva de um determinado método – o materialismo dialéctico, presente em toda a sua obra. Admitamos que assim tivesse sido, mas que saudades, Deus meu, que saudades desses dois mestres e do magistério que exerceram durante dezenas de anos! Podemos discutir as ideologias que perfilhavam, podemos discordar dos critérios de análise literária que utilizavam, mas não poderemos – nunca – pôr em dúvida a sua independência, o seu labor, a sua competência, a sua vigilância. E quando for feita a história da crítica literária em Portugal, eles serão – tenho a certeza – nomes maiores a reter, a estudar. A servir de exemplo, espero.”
sábado, 13 de dezembro de 2008
SEM DEIXAR O 7 COMO MARCA PASSAREMOS A SER MAIS
Somos 7 à partida mas algumas das nossas participações têm sido escassas. Relapsas, mesmo. E daí? Não estamos aqui para sofrer mas para nos divertir. Ninguém tem de sentir-se obrigado a nada.
No entanto, esta coisa de fazer blogs tem armadilhas levadas da breca. Começamos a brincar. Depois sentimos que do lado de lá do éter alguém aparece para nos ler. Às vezes são silênciosos mas sentimos-lhes a presença. E criamos uma obrigação. Uma regularidade. Talvez uma exigênica perante nós próprios. E uma espécie de culpabilidade quando falhamos.
No mês de Novembro visitaram-nos cerca de 600 pessoas. Voltaram alguns. Leram-nos. Quer dizer, mesmo em silêncio oferecemos qualquer coisa a alguém. Eu, como sou teimoso, acredito que este espaço é um espaço talvez único, certamente límpido e sem nenhum objectivo que não seja a partilha da reflexão sobre as nossas queridas leituras.
Entretanto para manter a vivacidade e regularidade do bog pôs-se a hipótese de alargar o número de participantes. O nosso novo parceito será o Orfeu B., cientista, poeta, professor do IS Técnico, brasileiro.
Continuaremos a ser "7leitores" mesmo que passemos a ser 9 ou 10.
Benvindo Orfeu.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
A ovelha negra e outras fábulas
Existiu no centro da selva, há muito tempo uma extravagante família de plantas carnívoras que, com o passar do tempo, tomaram consciência do seu estranho costume, principalmente devido aos constantes rumores que o bom Zéfiro lhes trazia de todos os cantos da cidade.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
Depois do escuro
sábado, 29 de novembro de 2008
UMA MORTE ANUNCIADA
Até aí, tudo “normal” para um cidadão da URSS, apanhado nas engrenagens da História desse país, como centenas de milhar ou de milhões de outros concidadãos. Tudo “normal” se não fossem duas coisas a distinguir Babel do comum dos mortais: é dos grandes escritores russos do século XX; é um homem de morte anunciada, que nada faz para fugir ao seu “destino”.
Tudo isto vem a propósito da publicação do seu primeiro livro em Portugal, “Contos de Odessa e Outros”, das Edições Dinossauro. O autor, no entanto, não era totalmente desconhecido entre nós, pois o primeiro conto desta colectânea, “História do Meu Pombal” (dedicado a Máximo Gorki) já havia sido publicado, creio que na revista “Ficções”. Isaack Babel, que tem Tchekov como antepassado legítimo, cultiva uma linguagem precisa e despida de ornatos, que o coloca na primeira linha dos escritores realistas do século XX, que fazem da emoção a razão de ser das suas histórias. A emoção que confere profundidade ao sentir (e ao agir) das personagens.
Outra virtude têm também estes “Contos”: são um fresco impressionante dos judeus russos a viverem na Ucrânia, nas primeiras décadas do século XX. Enfim, um exemplo da pujança da moderna literatura russa.
Mas o que eu pretendo com este meu texto é algo de muito específico: uma reflexão sobre a morte anunciada de Isaack Babel. Enquanto vive Máximo Gorki, a sua escrita e a sua vida não correm perigo. Gorki, o intocável, reconhece os seus grandes méritos literários, e, sempre que necessário, intervém a seu favor. Mas Gorki morre em 1936 e os problemas de Babel começam a agravar-se. É um momento de grande tensão política na URSS, em que os intelectuais, os artistas, os escritores são compelidos a cerrarem fileiras à volta de Staline e dos bonzos do regime que ditam os princípios a que a cultura deve obedecer. A cultura oficial, de encomenda, em que se incensa o chefe supremo. O que, obviamente, não corresponde minimamente ao conceito de literatura de Babel. No entanto, o regime político não parece muito interessado em eliminar fisicamente Babel (um dos escritores mais populares da sua época) e, assim, são-lhe facultadas várias oportunidades para sair do país e juntar-se à sua família refugiada na Bélgica. Ele sai, mas não fica... volta! O seu lugar é a URSS.
Ora, é este o grande enigma que não consigo explicar: o que leva um homem (inteligente, culto, lúcido) a arrostar com um destino que ele sabe adverso? Um homem que não se submete, não recua, um homem que se mantém íntegro, sereno e isento até ao fim. De onde lhe vem esta determinação, esta força? Da consciência histórica do povo judeu a que pertence? Da consciência de que a recusa em pactuar é a mais poderosa das armas de que dispõe? Seja como for, a sua vida e a sua morte constituem a mais exemplar das denúncias da política cultural do regime soviético. Um exemplo que não se apagará da memória dos homens.
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
EUDORA WELTY PARA ALÉM DOS LIMITES DA ESCRITA
Quando acontece é um milagre. E acontece nos contos de Eudora Welty (1909-2001), acontece a escrita irromper para além dos seus limites, a criar um mundo mágico de sensibilidade e inteligência, em que o indizível se faz palavra e a sua transcendência. De entre os seus contos, agora publicados em Portugal (“Os Ventos e Outros Contos”, em edição da Antígona), escolho “Os Ventos”, pela singularidade da estrutura narrativa e pela mestria no “manuseio” de um género de fronteira – a prosa poética. Prosa poética de uma mulher que, através das suas personagens, dá testemunho de si e da sua condição. Escrita no feminino, sim, mas sem concessões ao feminismo. Escrita em que coexistem várias narrativas (portanto, leituras), que se entretecem ou se autonomizam, conforme o ângulo em que se situa o leitor.
O que dito foi aplica-se integralmente ao conto citado, “Os Ventos”. Ventos trazidos pelo equinócio de fim de Verão, a anunciar a época das chuvas e a fazer oscilar a casa onde vive uma menina e a sua família. Ventos que, numa noite de tempestade e insónia, varrem o que resta do Verão e as emoções, os desejos de uma menina e lhe anunciam a entrada na adolescência.
Um livro que anuncia uma escrita nova, advento do minimalismo literário. Li e reli este livro de contos (bem traduzido, bem prefaciado por Diana Almeida) e, quanto mais o fazia, mais me interrogava sobre o paralelismo que ia encontrando entre a sua escrita e a de escritoras europeias suas contemporâneas, como Virgínia Woolf. O que me surpreendeu, dada a inserção da autora nos padrões da cultura do sul dos Estados-Unidos. Como é questão que não vi referida nos que têm analisado a sua obra, a minha dúvida subsiste: influência ou mero paralelismo cultural?
Uma última nota, para mim de grande relevância: o universo weltyano concretiza-se preferencialmente através dos seus contos, género considerado menor na época em que escreveu a maior parte desses contos. Foi preciso esperar algumas dezenas de anos para que este género literário fosse “reabilitado” e passasse a ser um “género maior”, para que se fizesse inteira justiça ao seu espólio literário.
Algum dia, o conto, a novela curta, a crónica serão considerados género maior, em Portugal? Talvez já não seja para os meus dias…
domingo, 23 de novembro de 2008
A POESIA É OUTRA COISA
Num suplemento literário de “Le Monde” (“Le Monde des Livres”), deste mês, vem publicada uma recensão a um livro organizado por Gérard Pfister, “La poésie c’est une autre chose” (Ed. Arfuyen). Nessa obra, o autor compila “1001 définitions de poésie” (na verdade, parece que não são tantas…) e, através delas, procura caracterizar a poesia e o acto poético. Tarefa a que se têm devotado não só teóricos da literatura, mas também poetas – e que sempre têm fracassado. Alguns, e eu talvez esteja com eles, consideram que a poesia não é literatura. Ao afirmá-lo, não estão a resolver a questão, mas a complicá-la: se não é literatura, o que é, então? Entre as opiniões e as citações que Pfister transcreve, gostaria de destacar as seguintes:
Para Rimbaud, o poeta é um mágico, um “vidente”, que tem “a capacidade de ir para além dos seus limites naturais”:
Cocteau, por sua vez, diz que “o poeta recorda-se do futuro”;
Algo de semelhante é afirmado por Saint-Pol Roux, para quem “a árvore da poesia mergulha as suas raízes no futuro”, e, na mesma linha, fala da poesia como uma “feitiçaria evocatória”;
Bachelar refere-se à poesia como fonte de sabedoria “os poetas são os verdadeiros mestres do filósofo”;
Uma das mais belas citações é a de André Bouchet, para quem “a poesia é esse nada – mas um nada que anula o resto”.
Estas e outras citações vieram acrescentar algo ao “prefácio” que eu tinha acabado de escrever para o livro de Ana Viana, “Murmúrios de um lugar branco” (no prelo), no qual eu me referia ao seu livro (de prosa poética) como uma abertura ao mistério. Lugar “branco” que, para Claudel, “não é apenas uma necessidade material, imposta pela página, mas a própria condição da sua respiração”.
Ainda na esteira de Claudel (e de Péguy), Jean Bastaire fala da poesia como o lugar da “palavra essência liberta do ruído”, ou de “um silêncio que fala”.
De outras paragens e de outras culturas vêm-nos outras abordagens. Assim, o poeta e ensaísta Ernesto de Melo e Castro, ao referir-se ao acto poético, cita o poeta brasileiro Décio Pignatari, para quem a poesia não é literatura, mas sim “cocaína em estado puro”. Citação que ele corrobora e aprofunda.
Na verdade, a poesia é tudo isso e ainda muito mais. Felizmente que há leitores para todas as dimensões sob as quais se apresenta este mistério, que, à falta de melhor designação, apelidamos de poesia.
terça-feira, 18 de novembro de 2008
CLARICE LISPECTOR
A DESCOBERTA DO MUNDO
Mais uma pérola da editora “Indícios de Oiro”, este conjunto de pequenos contos e crónicas da escritora brasileira Clarice Lispector.
Grande escritora. Que pena não a ter conhecido há mais tempo. Escreve luxuosamente.
Tudo nela é olhar para dentro ou dor dentro e, mesmo que o olhar seja para fora, para o mundo, o fora passa por dentro, é decantado por uma aguda consciência de si própria, por um olhar doce e escalpelizador, frio e grande, perverso quase, na sua por vezes assustadora capacidade de ver muito para além das aparências.
Talvez resida ou esteja expressa nesta escrita a diferença clara entre o grande rio da literatura e a simples arte de contar histórias mais ou menos bem contadas.
Esta forma de devorar a realidade e reorganizá-la segundo um olhar centrípeto inquieta-me, interroga-me, faz-me pegar num ou noutro fio das histórias que aqui se entretecem para me arrastar a um espaço de espanto e fragilidade perante tanta e tão desmesurada luz.
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
VINTE ANOS E UM DIA
Outro livro que anda por aí a ser vendido a preço muito baixo.
Semprún é um escritor da memória, a memória dos campos de concetração nazi, a memória da militância política contra o franquismo, a memória do que da Guerra Civil restou em Espanha .
Este romance fez-me tremer. Fala de uma Espanha feita de sangue, de sexo e morte,num extraordinário cruzamento entre realidade, ou memória de uma realidade, e ficção.
Sem que quase nada se passe à superfície,tudo ferve para lás das aparências num caleidoscópio de momentos sempre tensos e acontecimentos que se atropelam, sobrepõem, recuam e avançam com notável mestria.
A filosofia e a pintura movem-se a par da trama sexual, marcada por uma linha de transgressão voyeurista que avança e recua numa estranha relação a três.
Mas não é só isto. Não é só a historieta passada nos anos 50 que Semprún nos dá. Conta-nos um ritual de morte imposto pelos latifundiários aos camponieses e conduz-nos à procura das quase secretas razões que o mantém vivo como celebração dos vencedores da Guerra e humilhação dos vencidos.
E faz uma autêntica chicuelina ao revelar que o narrador, personagem e testemunha dos factos narrados é Frederico Sanchez, seu nome de guerra real enquanto dirigente comunista nos anos 50 em Espanha. E revela-nos como teceu a ficção a partir de um quadro barroco de uma pintora napolitana.
E em poucas palavras é difícil falar de toda a riqueza de uma trama excepcionalmente dura e, em simultaneo, inquietantemente apelativa.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
ESCRITOR, UMA PROFISSÃO DE ALTO RISCO
Escritor, uma profissão de alto risco
Agora, que o livro do escritor italiano Roberto Saviano foi traduzido para espanhol (Gomorra: viaje al imperio económico y al sueño de dominio de la Camorra, ed. Debolsillo), a imprensa espanhola tem multiplicado as referências a esta obra. À obra e ao filme (Gomorra) que Matteo Garrone realizou a partir da obra literária. Livro e filme que são uma denúncia das actividades que a Camorra napolitana tem levado a cabo na sociedade italiana. Denúncia que engloba as ligações daquela organização ao mundo dos negócios e da política, bem como os nomes dos seus membros “infiltrados” nos partidos políticos italianos (com predomínio para os da direita). E, dizem as crónicas, que não teria sido apenas isso que originou a sentença de morte proferida contra Saviano. Teria sido também o poder da sua escrita, portadora de uma “força torrencial”. Fico, pois, a aguardar a publicação da obra em português, para ver se assim é…
Diz-se que estas condenações à morte, proferidas pela Máfia, são irreversíveis, não podendo, pois, em caso algum, ser revogadas, como aconteceu com Rushdie, condenado à morte “apenas” por blasfémia e, posteriormente, “perdoado”. E creio bem que seja assim, pela mais evidente das razões: Saviano cita nomes e actividades daqueles que “têm” de ficar ocultos. Quando tal acontece, só há uma solução: a eliminação física do que quebrou o “pacto de silêncio” – para que sirva de exemplo.
Foi o que aconteceu com Trumam Capote, o autor do admirável “A Sangue Frio” e de alguns contos absolutamente perfeitos (veja-se a sua obra “Contos Completos”, editada pela Sextante), irrevogavelmente “condenado” à morte. Capote pretendia escrever uma saga da “alta” sociedade americana do seu tempo, à semelhança do que Proust havia feito. O plano da obra foi elaborado, os editores avançaram com os respectivos adiantamentos. Mas, como a obra demorava a aparecer, Capote viu-se coagido a ir publicando alguns dos textos que já havia escrito. Ora, nesses textos, ainda em fase embrionária (veja-se a obra “Súplicas Atendidas”, editada pela D. Quixote), estavam retratadas muitas das pessoas (tudo gente bem conhecida) com quem ele havia privado – nomes, desvarios e escândalos devidamente explicados. Resultado: ninguém mais quis contactos com ele. Votado ao ostracismo, Truman Capote, para quem a vida em sociedade era tão necessária como o ar que respirava, foi entrando no consumo do álcool e das drogas, acabando por soçobrar aos 60 anos de idade. Há muitas formas de condenar à morte um homem: levá-lo ao suicídio por degradação física e mental é apenas uma delas, mas uma das mais conseguidas, pelo seu elevado grau de eficácia.
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Os Dois Irmãos
Numa aldeia em Cabo Verde vamos conhecendo, através de um julgamento, a história de dois irmão presos à teia social que os leva ao caminho da violência. André emigrou para Portugal e viveu alguns anos longe da família e da Mulher. A distância promove o afastamento e o desamor. Em Lisboa André conhece alguém de quem se aproxima emocionalmente. Em Cabo Verde, João e mulher de André estabelecem uma relação amorosa. Embora André não se sinta directamente atingido com o sucedido, no seu regresso verifica que existe uma repulsa das pessoas da aldeia à sua família dos dois irmãos, pelo sucedido que, já é amplamente conhecido. Todo este processo desencadeia a necessidade de uma vingança, que não é do André para o irmão, mas de uma aldeia por um comportamento que sai dos padrões morais. Li este livro de Germano de Almeida até à última letra, porque não se trata só daquela aldeia em Cabo Verde, trata-se também da minha aldeia, talvez de todas as aldeias. Onde os comportamentos fora do normal são punidos e tem que haver sempre um carrasco, neste caso foi o André. O próprio julgamento é a necessidade de uma vingança institucional, de alguém que cometeu um acto fora da medida possível. Vivemos com esta violência, somos todos os dias castigados pelos nossos "pecados".
domingo, 2 de novembro de 2008
O ESPÍRITO DO LUGAR
Diz o nosso querido Albano Estrela no prefácio deste livro editado por essa pequena mas muito criteriosa e simpática editora, a Indícios de Ouro:
“Adorno interrogava-se se depois de Aushwitz ainda seria possível a poesia. E se, de algum modo, assim aconteceu nos anos imediatamente a seguir, o evoluir dos tempos veio demonstrar que a literatura (ficção, poesia) não só era possível como também necessária. Duplamente necessária: como denuncia (e “memória futura”); como meio privilegiado
De análise do mal que se abateu sobre a humanidade nas décadas de trinta e quarenta do séc. XX. Na verdade, nem a filosofia, nem sociologia, nem a psicologia conseguem atingir o mesmo grau de subtileza e autenticidade, de acutilância da literatura na denúncia e na compreensão intrínseca das formas que o mal assume enquanto força destruidora dos valores fundamentais do homem.”
“O espírito do lugar” de Orfeu B. (brasileiro, físico e professor universitário em Portugal) situa-se neste âmbito. É um livro intenso onde se misturam poesia e prosa para circular em torno da análise do horror e da barbárie que se concretizaram no holocausto.
A multiplicidade de fontes históricas, filosóficas, literárias, religiosas e ideológicas criam um conjunto caleidoscópico que nos envolve e nos obriga a constates mudanças de perspectiva, e a diferentes modos de olhar.
O livro reparte-se em três partes: “Deambulações por entre os escombros do silêncio”, “O espírito do lugar”, “Sons seminais” formando, no dizer do próprio autor, uma espécie de galáxias de textos interligados entre si pela força gravítica da similaridade temática e proximidade conceptual.
Resumindo: livro intenso, inspirador, que merece ser lido em voz alta como se de uma partitura musical se tratasse.
sábado, 1 de novembro de 2008
VIDAS DE ESCRITORES
Livrinho da Quetzal que anda por aí nas feiras do livro barato, vendido quase ao desbarato.
Escrito com a invulgar elegância de Javier Marías.
A primeira parte é constituída por um conjunto de pequenas crónicas sobre um ou outro aspecto da vida de vários grandes escritores.
É curioso como se torna por vezes desagradável conhecer alguns aspectos menores ou mais comezinhos da vida dos escritores. Há qualquer coisa de ignóbil, de perversidade voyeuse em pôr a nu essas pequenas/grandes infâmias e menoridades.
Pior é, no entanto, tentar entender como gente tão reprovável e baixa e horrorosa, em vários sentidos das palavras, pode derramar imenso talento em obras que ficam como património da humanidade. Casos, entre outros, de Mishima, Thomas Mann, James Joyce.
Na segunda parte aparece um ensaio brilhante sobre retratos de escritores. Numa perspectiva interessantíssima, Marias lê e ensina-nos a ler uma fotografia. E analisa cada pormenor da fotografia tentando entender a imagem que cada fotografado pretendia dar de si para a posteridade através da sua atitude física, pose, roupa, etc.
terça-feira, 28 de outubro de 2008
ARSÈNE LUPIN OU DAS BOAS E DAS MÁS RAZÕES EM LITERATURA
Arsène Lupin é um dos grandes heróis da literatura do século XX. Da literatura francesa, da literatura mundial. Mas, coisa curiosa, a celebridade do autor das obras que
têm o Arsène Lupin como figura central – Maurice Leblanc – não acompanha, nem de longe, a fama da personagem. Na realidade, Maurice Leblanc continua a ser um desconhecido para o grande público. Isso, e algo mais, acaba de me ser recordado num número já antigo da revista Lire, que acabo de reler. De entre os artigos inscritos nessa revista, avulta a entrevista feita a Jacques Derouard, biógrafo do autor e coeditor de Arsène Lupin. Nela, Derouard chama a atenção para um aspecto da personalidade de Leblanc, que tem algo de dramático: ele amava e odiava Arsène Lupin. Esta ambivalência de sentimentos acompanhou-o durante toda a vida e atingiu, nos últimos anos, uma acuidade doentia. Eu explico-me.
Leblanc é de origem normanda, como Flaubert e Maupassant, autores de quem recebeu uma forte influência. Foi sob a sua influência que escreveu os primeiros romances. Se as temáticas abordadas têm a ver com autores ingleses de finais do século XIX, a forma e a trama sentimental muito devem aos franceses da sua devoção. Mas, contrariamente ao que seria de esperar, as suas obras, embora reconhecidas pela crítica, não tiveram êxito perante o público. O que não aconteceu com as histórias do Arsène Lupin, o ladrão cavalheiro, “dandy” que pratica o roubo como quem realiza uma obra de arte. Histórias publicadas inicialmente na revista “Je sais tout” e, de seguida, saídas em livro. O êxito, em França e no mundo, é fulminante, o que o transforma num dos escritores mais populares de língua francesa. Essa popularidade agrada-lhe (até pelos proventos que arrecada) e incomoda-o: a sua aspiração de ser considerado um autor clássico, que busca assento na Academia Francesa, vai sendo algo de cada vez menos viável. Mata Arsène Lupin por diversas vezes, é certo, mas os seus editores exigem sempre que o ressuscite na história seguinte... E a neurastenia (essa terrível doença dos intelectuais do século XIX, da primeira metade do século XX) vai-o dominando: criou uma personagem que lhe configurou uma “identidade social”, com a qual não se identifica. Personagem de que não consegue libertar-se. Por via dela, será sempre um escritor “popular”, que nunca poderá sentar-se ao lado dos “grandes” escritores franceses que ocupam as cadeiras do Olimpo das Letras – as cadeiras numeradas da Academia dos Imortais Sentados. Hoje, ao lerem-se as suas diversas obras, não se pode deixar de dar razão à escolha que o público fez: as obras em que são narradas as aventuras de Arsène Lupin são, sem dúvida, as suas melhores obras. Mais, ainda: são do melhor que a literatura francesa produziu no século XX.
O que não impediu que a vida de Leblanc, nos últimos anos (morreu em plena Grande Guerra Mundial, em 1941), não virasse tragédia. Leblanc acabou por “ceder” à personagem que criou, que o foi “possuindo” gradualmente: num livro de honra de um restaurante, assinou Arsène Lupin...; na sua casa de Etretat, Arsène Lupin “entrava-lhe” pela porta dentro, a qualquer hora, o que o incomodava altamente, principalmente quando estava sentado à sua mesa de trabalho, a escrever – o que o levou a fazer uma participação ao chefe da policia local...
Para mim, o que é mais impressionante é este desencontro entre a imagem que o
autor tem de si e a que o público dele faz. O que, no caso presente, nos leva a concluir que Maurice Leblanc ficou célebre pelas razões que ele considerava não serem as melhores... Enfim, coisas da escrita e dos escritores...
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
O céu é dos violentos
Quando li o livro de contos “Um bom homem é difícil de encontrar” da Flannery O’Connor, (numa edição da D. Quixote, já lá vão uns bons anos) foi como se tivesse sido arrancado com violência da cadeira e arremessado de encontro a uma parede. A crueza, o dramatismo e a ferocidade dos personagens e situações deixaram-me perplexo e fascinado. A editora Cavalo de Ferro tem vindo a editar os livros da Flannery O’Connor a um bom ritmo (alguns deles já anteriormente publicados por outras editoras).
O livro que agora li, foi “O céu é dos violentos”. O livro começa com a morte de Mason Tarwarter. Este irado e fanático personagem, numa linha ténue entre a loucura e a religiosidade, define um profeta como alguém que só pode esperar o pior da sua existência terrena. A vida de Mason Tarwarter, ele próprio profeta nesta vertente muito peculiar, está marcada por infelicidade, loucura e violência. A citação de S. Mateus, que dá título ao romance, é inteiramente apropriada, já que é intenção de Flannery O’Connor demonstrar que o espírito inspirador de S. João Baptista pode também inflamar um rude camponês sulista: “Desde os dias de João Baptista até agora, o reino dos céus tem sido objecto de violência e os violentos apoderaram-se dele à força”. Mason Tarwarter é o tio-avõ de Francis Tarwarter, um adolescente de catorze anos. Mason educou o sobrinho num universo de confrontações dramáticas, devendo o rapaz esperar a infelicidade a loucura e a violência. Quando o seu tio-avõ morre, Francis tenta renegar a herança pesada e não cumpre o pedido do tio-avõ: ser enterrado – Mason acaba por ser enterrado com a ajuda de um negro, mas Francis pega fogo à propriedade rural onde viviam. Francis vai então ter com o seu tio Rayber e o filho deste, Bishop, uma criança diminuída mental. Está implícito no livro que um Rayber supostamente são, simbolizando o senso comum de pés agarrados à terra, está destinado a viver numa enorme escuridão. Os aparentemente transtornados Tarwarter são, para Flannery O’Connor, mais aceitáveis que Rayber, e Francis rapidamente descobre que o peso da herança do seu tio-avõ se sobrepõe à sua nova vida secular. Estas convicções religiosas de Flannery O’Connor podem parecer desconcertantes e estranhas. Mas o mais importante é que ela sabe contar uma história. Não é necessário partilhar as suas convicções para nos encantarmos com este livro.
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
O Médico Inverosímil
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
DAS BOAS E DAS MÁS RAZÕES DO SUCESSO DE UM LIVRO
Norman Rockwell
Em tempos, não era difícil conhecer as razões do êxito de uma obra literária. A obra impunha-se pelo seu valor, pela temática abordada, pelo nome do autor, pela crítica literária que lhe era feita. Talvez houvesse outras razões, mas estas eram, sem dúvida, as mais plausíveis.
Actualmente, a crítica literária desapareceu e a indústria do livro tomou conta deste sector do mercado, passando a tratar a obra literária como uma mera mercadoria. Enfim, uma mercadoria mais, igual a tantas outras.
Esta situação levou a uma "produção" planificada do livro, em que o "marketing" desempenha um papel central – nada é deixado ao acaso, nada… excepto o valor literário da obra! Parafraseando um dito célebre, que tem sido atribuído tanto a Clemenceau como a Churchill ("a guerra é uma coisa demasiado séria para ser deixada aos militares"), direi que, actualmente, a literatura é negócio demasiado arriscado para ser entregue aos autores literários...
Assim, a primeira grande opção é a da escolha do autor – figura pública, de preferência "pivot" da televisão ou membro do "jet-set". Ou, talvez, alguém que se tenha evidenciado por algum escândalo de fortes repercussões sociais. Também são bastante apreciados temas escabrosos ou referentes a futilidades em voga. E porque não se há-de pôr na capa que o livro foi escrito por uma jovem de dezasseis anos, que, de um só jacto, produziu tal obra-prima? A linguagem "pimba", as situações ridículas, as revelações místicas constituem sempre ingredientes de "alta voltagem" para os profissionais desta indústria. Por outro lado, cartazes e outros anúncios publicitários têm, de cada vez mais, um peso acrescido nas campanhas de promoção dos livros. A indicação do número de edições e das dezenas de milhar de obras já vendidas – quem os controla? – são garantia, mais que evidente, do valor da obra.
De um modo geral, este é o panorama do que se passa em Portugal. Noutros países, nomeadamente nos de língua anglo-saxónica, as coisas ainda são mais refinadas, o que não é para admirar, dadas as características dos seus sistemas de produção e consumo. Estas considerações decorrem da leitura de um artigo publicado no Le Monde, em que se fala de dois escândalos que abalaram o mundo das letras norte-americanas. Escândalos diferentes nas suas tramas, mas idênticos na sua natureza. O artigo, que tem por título "J. T. Leroy, falsa criança das ruas e escritor fictício", transcreve, por sua vez, um outro artigo do New York Times, no qual se revela que J. T. Leroy não é o autor da obra que lhe deu fama e que a descrição da sua "infância trágica" (cerne da obra em causa) é uma pura fantasia de autor.
Aparentemente, todos se sentem burlados, inclusivamente o seu agente literário, que não quer continuar a representar tal criatura. Outro autor de grande sucesso nos EUA é James Frey, também acusado de "prática fraudulenta", por ter ficcionado a sua própria vida, em obra apresentada como sendo estritamente autobiográfica. E estes escândalos parecem estar a pôr em causa as vendas das obras destes autores. Mas porquê? Então não se sabe, desde que há escrita ficcional, que o autor é um efabulador? Mesmo (ou principalmente) quando se reclama de herói da sua própria história? Trata-se, em última instância, de um artifício literário de provas dadas e de êxito assegurado, ao longo dos tempos. Aparentemente, não se compreende, pois, a razão de tanto escândalo. Aparentemente, pois, na verdade, a explicação é simples: o que a publicidade fez vender não foi a obra literária, mas o seu autor (ou pretenso autor). A desgraça (ou a graça) de um cavalheiro que teve a "coragem" de pôr a nu a "tragédia" da sua vida, da sua infância "desvalida". Tão simples quanto isso. Enfim, sinal dos tempos, em que o produto não é vendido pelo que vale, mas pela "roupagem" em que é envolvido. Em Portugal, ainda não chegámos a estes "extremos", mas já não andamos longe...
O que foi dito põe-me uma questão, enquanto educador que sou: como criar nos jovens o espírito crítico necessário à escolha de uma obra literária de valor? Como desenvolver neles o gosto pela literatura? Quais as estratégias a seguir, as ferramentas a utilizar? Na verdade, não basta denunciar, é preciso construir, participar na construção de um ser humano que pense por si, que saiba distinguir entre o verdadeiro e o falso, entre o que é bom e o que não o é. Que assuma valores e os pratique. Que não seja um ser passivo perante a onda avassaladora de informação, de desinformação, com que os "media" nos submergem, nos aliciam diariamente.
Enfim, este é assunto demasiadamente sério (e complexo) para ser tratado de modo sucinto. Por isso, urge voltar a ele, debatê-lo, aprofundá-lo.
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
O Diabo e outros contos
Lev Tolstói é um dos GRANDES da literatura e um dos meus autores russos, os que me foram acompanhando ao longo da vida. É obviamente mais conhecida a sua vertente de obras de longo fôlego (Guerra e Paz; Anna Karénina), mas também publicou vários contos e novelas. A editora Relógio d’Água deu-nos já duas excelentíssimas novelas: “A morte de Ivan Illitch”e “A sonata de Kreutzer”. A mesma editora deu agora à estampa um volume de contos que intitulou “O diabo e outros contos”. Três dos contos (“O diabo”, “Depois do Baile” e “Três mortes”) já os tinha lido numa colectânea mais extensa publicada pela editora brasileira Cosac & Naify (tem um excelente catálogo). O conto “O patrão e o moço de estrebaria” já o tinha também lido recentemente numa pequena edição de bolso intitulada “Senhor e servo” (excelente). Restavam dois contos e não pude deixar de comprar o livro.
O conto “O padre Sérgui” coloca-nos perante uma crise espiritual. O príncipe Stepan Kassátski segue a carreira militar e é colocado no aristocrático regimento da guarda imperial. Jovem, brilhante e esforçado por fazer carreira, rapidamente progride. Para entrar nos círculos mais restritos da sociedade resolve casar com uma menina de círculo elevado. De algo tão cínico nasce, no entanto, uma paixão grande. Kassátski pertencia aquele tipo de homens que exigiam uma pureza ideal e celestial à esposa. Duas semanas antes do dia marcado para o casamento, a noiva conta-lhe que tinha sido amante do imperador. A desilusão quanto à noiva que imaginara um puríssimo anjo e a sensação de ter sido insultado eram tão fortes que o levaram ao desespero, desespero esse que o levou a Deus e a uma fé infantil. Kassátski toma o hábito e entra para um mosteiro. Ao fim de vários anos no mosteiro, sempre atormentado pelo desejo que se erguia impressionante, Kassátski tem um acto de grande orgulho perante um general que era do seu regimento. Pede então para ser transferido para outro sítio e acaba por se tornar eremita vivendo numa fenda de uma gruta. Um mulher tenta-o, mas ele consegue resistir cortando um dedo. Com o passar do tempo, começa a circular a ideia de que o padre Sérgui é curandeiro e milhares de pessoas o procuram. Cada vez ele acha mais que não está servir a Deus propriamente, mas às pessoas e com algum orgulho pessoal. E deixo o resto para vosso deleite pessoal.
O conto “Albert” é sobre um artista (músico) caído em desgraça, pobre, sem trabalho, miserável, alcoólico, mas que consegue encantar ao tocar violino. Ele ainda é recebido na Anna Ivánovna onde acontecem bailes todas as noites. Andrajoso, mas com um rosto digno, numa das noites de baile encanta toda a gente com uma melancólica música. Algo estranho acontecera a todos os presentes depois da encantatória música. Um jovem, Deléssov, decide tomar a seu cargo Albert e tentar que o seu talento lhe permita dedicar-se a sério à música, tocar para o público e abandonar o álcool. E instala Albert em sua casa. Mais uma vez deixo as peripécias da pretendida regeneração para uma leitura vossa.
Em conjunto, este é um excelente livro que entra no âmago das contradições do ser humano.
terça-feira, 14 de outubro de 2008
O ESCRITOR QUE VIU DEUS
De Dino Buzzati, o autor de “O Deserto dos Tártaros”, foi publicada mais uma colectânea de contos, “A Derrocada da Baliverna” (Cavalo de Ferro). Esta, como as anteriores, é constituída por um conjunto notável de histórias, algumas a situarem-se no que de melhor tem sido produzido na literatura europeia contemporânea. Entres elas, “O cão que viu Deus”. Parábola que coloca, de modo magistral, a problemática da consciência face ao pecado e ao sentimento de culpa decorrente do não cumprimento da lei moral.
Mas… se prevaricarmos, quem o poderá saber? Deus? Mas se Deus está tão distante dos homens, tão oculto... Cumprirmos os seus mandamentos não será expormo-nos ao ridículo dos nossos concidadãos, tão absorvidos pelas realidades do seu dia-a-dia?
Mas Deus não se servirá de outras formas para nos vigiar? Porque não o olhar de um cão, um cão que foi do eremita que viveu e morreu na montanha, a quem Deus teria aparecido? E se apareceu ao eremita não teria também aparecido ao seu cão? O seu olhar atento e bondoso não seria a forma de que Deus se serviu para vigiar aquela comunidade e, assim, acordar a sua consciência adormecida?
Se admitirmos que alguém viu Deus e dele tenha recebido uma missão, esse alguém foi, sem dúvida, Buzzati, a quem Deus teria confiado o poder de nos fazer amar a literatura e, através dela, o bem e o mal que vive no coração do homem.
domingo, 12 de outubro de 2008
sábado, 11 de outubro de 2008
VENENOS DE DEUS REMÉDIOS DO DIABO
“VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO”
Um livro que nos enche a alma como quase toda a prosa e poesia do Mia. As personagens são muito bem desenhadas, cheias de contradições, de humanidade, de sonhos naufragados e memórias dolorosas.
Bartolomeu Sozinho que está a morrer e quer deixar de sonhar. A esposa Mundinha que vai chorar para o rio porque não se deve chorar em casa. O português doutor Sidonho à procura do amor. Suacelência, o Administrador balofo e cheio de si próprio, político igual aos políticos do mundo inteiro.
Tudo servido por uma invenção verbal notável e que é a marca do Mia que, por vezes parece quase exagera nos aforismos africanizantes. Mas isso faz parte do seu processo de escrita, da sua pontuação, e, embora esteja no limite, não chega para ensombrar o correr rápido, seguro e encantador da narrativa.
Nesse decorrer da história vamos acompanhando o jogo de aproximação/rejeição entre um português e o mundo moçambicano e constatação no final de não ter penetrado aquela realidade profunda para além de uma falsa superfície.
A história também nos fala da forma como a memória colonial perdura e de como, por exemplo, uma bandeira da Companhia Colonial de Navegação se torna na Bandeira do Sporting.
Aliás, toda a história é um carrossel de mentiras e aparências, sombras e sonhos que se enredam num caleidoscópio que se torna vertiginoso no final, revelando realidade sob realidade até que o leitor não saiba bem qual é a verdadeira verdade da história que leu.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
A FOTOGRAFIA, ESSE GRANDE MISTÉRIO
"A fotografia é um grande mistério. Tu fazes uma foto e automaticamente essa foto pertence ao passado. E isso é algo de espantoso." Isto diz-nos Carlos Saura, o cineasta espanhol, em entrevista concedida a "El País". E acrescenta: "A fotografia mudou o ser humano, porque obrigou-o, de algum modo, a ver-se a si mesmo, a ver os lugares, as cidades, as pessoas. É uma informação que o homem nunca tinha tido até aparecer a fotografia."
Vindas de quem vêm, de um homem que fez da imagem a razão de ser da sua vida (e da sua arte), estas afirmações têm um valor acrescido, nomeadamente pela autenticidade de que se revestem. Na verdade, a fotografia constitui um novo instrumento para o ser humano construir (e reconstruir) as suas narrativas. Quando desfolhamos os nossos álbuns, estamos a reinventar o nosso passado, o que fizemos e o que sentimos, o que pensamos, o que podíamos ter sido e não fomos. Desejo e morte. Nós e os outros. O passado reinventado nos lugares, nos gestos, nas posturas. No sorriso, nas vestes, no olhar. O passado-presente em revivescência. Ternura e mal-estar, devaneio.
Mas as fotografias não concitam apenas as nossas narrativas pessoais, elas são, também, um poderoso afrodisíaco literário, que tem levado ao aparecimento de grandes narrativas na literatura do século XX. Para muitos escritores, transformaram-se, mesmo, em estimulante imprescindível ao seu processo de criação.
A fotografia é um mistério? Sim, sem dúvida, um mistério, um grande mistério, Carlos Saura!
Albano Estrela