domingo, 25 de setembro de 2011

Verdade e Política

Da genial filósofa Hannah Arendt (1906 – 1975), autora do monumental estudo “As Origens do Totalitarismo” de 1951, do controverso “Eichmann em Jerusalém: um relatório sobre a banalidade do mal” (1963), a “Crise da Cultura” (1972), entre tantos outros títulos, este surpreendente opúsculo de 1968, que impressiona pela lucidez da análise e pela actualidade do tema.

A problemática é-nos introduzida sem ambiguidades:

"O objecto destas reflexões é um lugar comum. Nunca ninguém teve dúvidas que a verdade e a politica estão em bastante más relações, e ninguém, tanto quanto saiba, contou alguma vez a boa fé no número da virtudes politicas. As mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de politico ou demagogo, mas também na de homem de estado. Por que será assim? E o que isso significa no que refere à natureza e à dignidade do domínio político, por um lado, e à natureza e à dignidade da verdade e da boa-fé, por outro? Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar. E que espécie de realidade possui a verdade se não tem poder no domínio público, o qual, mais do que qualquer outra esfera da vida humana, garante a realidade da existência aos homens que nascem e morrem - que dizer, seres que sabem que surgiram de não-ser e que voltarão para aí depois de um breve momento? Finalmente, a verdade impotente não será tão desprezível como o poder despreocupado com a verdade?”

Reflexões que suscitam a inevitável pergunta: Estão os políticos comprometidos com a mentira como estão os filósofos com a verdade? Esta e outras questões relacionadas com a manipulação da verdade factual, prática comum nos regimes totalitários, são brilhantemente discutidas neste breve ensaio. Uma preciosidade. E muito útil nos dias que correm.

Orfeu B.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CONTOS DE JOSÉ CARDOSO PIRES, 30/40 ANOS DEPOIS - UM COMENTÁRIO APENAS


Há 30/40 anos, li, pela primeira vez, um livro de José Cardoso Pires, “Jogos de Azar”. E voltei a lê- lo há pouco, agora numa edição da Leya, de 2011. É uma colectânea de onze contos, recolhidos de dois livros do autor, publicados nos anos 50 e nos anos 60 do século passado. Dessa primeira leitura guardo uma memória precisa: era algo de novo, que me impressionou bastante, tanto pela forma como pelo conteúdo. Essa primeira impressão foi corroborada e ampliada pela leitura de outras obras do autor: “Balada da Praia dos Cães, “Alexandra Alpha”, por exemplo.
Por isso, foi com curiosidade que iniciei a releitura dos “Jogos de Azar”. Os contos nele incluídos teriam resistido aos efeitos de um dos tempos mais cruéis que conheço, o tempo literário? A resposta não é clara: por um lado, sim; por outro, não. Sim, pela beleza da escrita, feita de rigor, imaginação e criatividade. Não, pelos temas tratados. Temas que , de um modo geral, podemos situar no âmbito de um “neo-realismo urbano”, em voga nos meados do século XX e que já pouco nos diz nestes primeiros anos do século XXI. “Amanhã se Deus quiser”, “ Dom Quixote, as Velhas Viúvas e a Rapariga dos Fósforos”, “ Ritual dos Pequenos Vampiros” são alguns dos exemplos do que acabo de dizer. Em todos eles, a mestria da escrita e da construção da história atinge um fulgor extremamente raro na nossa ficção literária da segunda metade do século XX ( e não me estou a esquecer de Saramago nem de Lobo Antunes). Mas neles também se notam as marcas de um neo-realismo social característico de certos meios urbanos, em que a miséria e a morbidez dos ambientes e dos que neles vivem contrastam com a pureza, a ingenuidade de certas personagens que neles dificilmente vão sobrevivendo.

sábado, 17 de setembro de 2011

O AMOR, A GUERRA, LISBOA



Nasci em 51. Tinha um irmão muito mais velho e um pai militar. Deles encontrei pela casa inúmeras imagens de aviões, tanques, batalhas, bombardeamentos em postais, revistas, reportagens sobre a 2ª Guerra Mundial. Nos anos 50 essas memórias de pavor e talvez de algum fascínio ainda estavam muito vivas.

Mais tarde, aluno do Colégio Militar, voltei à iconografia e aos romances que davam testemunho não só da 2ª Guerra como da guerra da Indochina.

Entre os vários escritores que li na adolescência, Erich Maria Remarque foi uma das leituras de primeira linha.

A ele regressei para ler este seu romance já com várias edições em português e agora reeditado de novo pelo Público na excelente colecção dos escritores famosos que não tiveram o Prémio Nobel.

O autor, alemão, combateu na 1ª Guerra Mundial e dessa experiência extraiu a matéria para o seu mais famoso romance "A Oeste nada de novo".

O nazismo baniu a sua obra e queimou os seus livros e Remarque fugiu percorrendo vários paísses até chegar à América onde viveu o resto da sua vida.

"UMA NOITE EM LISBOA" é o longo monólogo de um homem que oferece a outro a salvação (dois bilhetes para a América) com o único preço de ouvir a sua história.

O narrador é também o "ouvidor" de uma fantástica história de amor, melodrama levado ao extremo, igual a tantos que terão acontecido nos tempos terríveis dos tempos II Guerra Mundial.

É uma história cheia de palavras, de voltas e viravoltas, de dúvidas e devoção amorosa sem limite, de perda de identidades que se desenrola com a sombra da noite de Lisboa em fundo.

Haverá por aqui muito da experiência do próprio autor. A cidade natal do protagonista é a de Remarque, muito do percurso na fuga do personagem até chegar a Lisboa coincidirá porventura com o do autor.

A literatura é isto também. O sarro que fica de um tempo que ainda produz filhos sinistros (veja-se o caso do monstro norueguês) e cujos relatos continuam a fazer-me tremer e me deixam ainda mais irritado com caricaturas simplistas, equívocas e grosseiras como a de Tarantino nos "Sacanas sem lei".

É claro que literatura não tem que ser retrato da realidade. Mas não pode ser traição à realidade. E foi nesse digno ofício de respeito pela realidade que Remarque trabalhou e nos deixou páginas que vale a pena revisitar.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

GOLPE SOBRE GOLPE



Na linha de Le Carré, Boyd conduz a acção no fio da lâmina, golpe sobre golpe, criando uma história verdadeiramente inquietante, numa sequência imparável de obstáculos à busca da verdade por parte do personagem principal, Adam, que se viu envolvido num assassínio com que não tem nada a ver e que acaba perseguido pela polícia e por um mercenário encarregue por uma grande empresa de o encontrar e matar.

O livro lê-se de um fôlego. Talvez o ritmo trepidante quebre no último terço ou então deveria o autor terminar a narrativa um pouco mais cedo.

O fulcro da questão é uma multinacional farmacêutica que pretende lançar um remédio supostamente revolucionário para a asma, escondendo o facto de que os últimos ensaios foram negativos e contam-se inúmeros casos de crianças que morreram após tomar o remédio.

Adam, jovem e brilhante especialista em climatologia, tem duas hipóteses: entregar-se ou não se entregar à polícia. E esta alternativa vai determinar toda a acção.

Resolve não se entregar e desaparece. Torna-se num sem abrigo, num não-existente, e vai aprender a sobreviver na grande cidade de Londres sem identificação, sem comunicações, sem dinheiro nem cartões de crédito.

Sofre os truques duros da vida sombria das zonas negras da cidade. Mas descobre também o amor quando se apaixona pela prostituta que começa por assaltá-lo e agredi-lo.

Quando a vida miserável dos dois e do filho dela começa a tornar-se de alguma forma consolador e confortável, o perseguidor encontra-lhes o rasto e mata-a.

Adam, no entanto, segue em frente. A partir de pequenos pormenores vai reconstruindo uma nova dida.

O autor mostra como um homem que sabe e está habituado a pensar é capaz de sobreviver, de elaborar informação, de usar a seu favor as mais dramáticas contrariedades.

Adam, o sem nome e sem abrigo arranja um nome falso, documentos, e começa a institucionalizar-se embora sempre numa espécie de clandestinidade. Arranja uma nova personalidade. Volta a apaixonar-se, agora por uma polícia a quem não se revela. Arranja casa e emprego no hospital onde morreram as crianças afectado pelo remédio contra a asma. Vasculha o registo informático dos testes e as circunstâncias das mortes.

Finalmente, com a ajuda de um jornalista especializado em remédios e farmacêuticas, Adam consegue desmascarar a multinacional e resolver a questão do assassinato e impedir a empresa a novos testes ao remédio e, assim, adiar os esperados milhões de lucro.

É claro que apenas se arranhou a superfície dos interesses económicos que tudo justificam em nome do lucro.

O romance tem como pano de fundo o retrato do ultra-liberalismo que comanda o mundo em que vivemos.

Várias vezes ao longo da leitura me veio à memória “O fiel jardineiro” de Le Carré. É a mesma problemática embora na arte da narrativa, Le Carré seja um mestre difícil de igualar.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

ALBANO ESTRELA - 7LEITORES EM LIVRO



O blog 7leitores dá mais um passo. Ou melhor, dá o seu primeiro livro. É do Albano Estrela que foi o primeiro companheiro deste blog e talvez o mais entusiasta. Reuniu parte dos seus comentários aqui publicados e juntou-os num livro onde encontramos com mais facilidade a linha que os une e que é a do olhar sábio de um professor com que todos temos muito a aprender.

Pediu-me (por gentileza mais do que por mérito que eu possa ter) para lhe fazer o Prefácio. Aqui está ele:


"A ARTE DE SER LEITOR

Na elaboração dos seus direitos do leitor, Daniel Pennac incluiu o direito de não falar do que se leu. Esses direitos, que tanto sucesso conheceram, constituirão sobretudo uma crítica à forma conservadora e instrumentalizante de abordar a leitura em âmbito escolar.
Em última instância, creio que o pensamento de Pennac insere-se na corrente dos que entendem que colocar a tónica na interpretação pode matar o prazer da leitura entre os jovens.
Quem gosta de ler constrói a sua própria oficina de interpretação. Pelo contrário, são muitos os casos em que a promoção da leitura vira as costas ao afectivo e ao lúdico e reduz-se a um exercício quase abstracto de interpretação. Esse excesso e esse carácter abstracto da interpretação coloca-nos no compartimento da mais estreita mecânica escolar e pode conduzir à ausência de prazer na leitura.
Voltemos, assim , a Pennac que nos “concedeu” o direito a não falar do que lemos. Temos esse direito, sabemos que o temos e, no entanto, os verdadeiros leitores, os leitores obsessivos, gostam de falar dos livros que acabaram de ler. Mais do que isso: precisam de contaminar as pessoas à sua volta com o vírus dessa paixão feita vício que é a leitura.
Confesso que sou um desses viciados. Preciso de falar dos livros que leio durante a leitura, depois da leitura e, por vezes, muito depois dela.
Conheço outros assim. Amigas e amigos com quem a conversa, quando nos cruzamos, começa invariavelmente por: O que é que andas a ler? Já leste este ou aquele autor? E aquela personagem, não é fantástica? E aquela descrição de uma cidade? E aquela viagem? E, e, e…
O primeiro de todos é o meu muito querido amigo e mestre Albano Estrela. Um dia desafiei-o a ele e a outros para fazermos um blog que veio a intitular-se 7leitores. Trata-se de um espaço onde damos conta dos livros que lemos e partilhamos reflexões, ideias, apontamentos que nos foram acontecendo ao logo da respectiva leitura.
O blog já leva quase 2 anos e os 7 leitores já são mais. Gostava de encontrar uma designação que nos coubesse bem. Estamos longe de ser grandes leitores como Alberto Manguel, Georges Steiner, Umberto Ecco ou Jean-Claude Carriére.
Seremos talvez uns pequeninos grandes leitores. Isto é, pessoas que fazem da leitura uma actividade fundamental do seu quotidiano e da construção da sua sempre imperfeita humanidade.
O leitor que somos não é um crítico, nem um catalogador, nem um patologista clínico da leitura. Não tem contas a ajustar com os autores. Não pertence ao negócio mais ou menos bilioso da construção e destruição de prestígios literários.
Regra geral, o leitor que somos não tem tempo para falar dos livros que lhe desagradam. Está demasiado absorvido por aqueles outros que lhe abrem caminhos, que o fazem voar, que lhes mostram novas formas de olhar o mundo por fora e por dentro de si, que lhe acendem uma luz no coração.
Um leitor precisa sempre de quem o leve pela mão. Já leste o David Toscana? E o Bartleby de
Melville? É preciso revisitar o Chesterton. Vale a pena dar uma vista de olhos pelos policiais
suecos? E a última tradução do Tolstoi! E os portugueses, tantos, do Eça ao Raul Brandão, do
Saramago ao Miguel Real, da efervescência do Lobo Antunes à prosa fantástica do Mário de
Carvalho!
Este levar pela mão é sempre mútuo e resulta de um processo em que as referências se atropelam quase ofegantemente e saltam umas por cima das outras porque vício é vício e nem o dobro dos anos de vida nos permitiria ler tudo o que já acumulámos nas prateleiras abarrotadas das leituras urgentes.
Ao longo dos anos que dura a amizade que lhe agradeço, Albano Estrela tem-me levado pela mão nos caminhos da leitura e dos livros. Fez-me ter atenção a Buzatti e a Papini, à micro-literatura ibérico-americana, os contos de John Cheever e a tantos outros autores e livros. Agradeço-lhe do fundo do coração.
Acima de tudo há que dizer que Albano Estrela é um mestre na ARTE DE SER LEITOR que, como todos os verdadeiros mestres, nunca se põe em bicos de pés. Exerce a sua mestria com uma generosidade e uma discrição invulgares.
Neste livro, Albano Estrela reúne e partilha as suas reflexões de leitor, por vezes inesperadas, sempre sagazes, luminosas e apaixonadas.
Quanto a nós, os que temos a sorte de conviver e aprender o Albano Estrela temos de lhe agradecer comovidamente estes textos e, já agora, de perguntar-lhe: Ó Albano, o que é que está a ler agora?”


domingo, 4 de setembro de 2011

UMA CAIXINHA DE HISTÓRIAS



Dizia-me a editora Piedade Ferreira há poucos dias que algumas editoras publicam demasiado cedo autores que só mais tarde começam a cair no goto do público e no da máquina publicitário/crítica que promove alguns autores e ignora outros sem razão aparente que não seja a ignorância.

Deu-me a Piedade como exemplo os dois magníficos romances que publicou na Quetzal há 15/20 anos de Hernán Rivera Letelier,autor que só agora se tornou referido e sublinhado mas que foram então foram um fracasso na época e que aparecem a pataco por aí nas feiras do livro barato.

A Cavalo de Ferro tem feito um trabalho notável de divulgação de escritores de literaturas menos divulgadas em Portugal. E entre vários conta-se Ivo Andric, nacido de família croata na Bósnia, diplomata e Prémio Nobel em 1961.

Esta sua pequena novela é passada no pátio de uma terrível prisão turca, em Istambul. Em redor estão as celas que em cada manhã atiram para o pátio uma variado e muito sui geris grupo de prisioneiros que vivem durante o dia no pátio onde conversam, brigam, jogam e contam histórias.

Naquele pátio maldito onde um director exerce o poder sem peias e de forma muito própria, cruzam-se assassinos, ladrões, aldrabões, inocentes, ignorantes da sua culpa, gente da mais baixa condição social e senhores de hábitos de grande sofisticação.

Aqui se sussurram ou gritam as histórias reais dos presos, as memórias, invenções, mentiras, acusações, delírios, mitos e ficções que cada preso inventa para poder sobreviver e afirmar-se perante os outros.

Neste ambiente inquietante, as histórias quase que trepam umas por cima das outras, envolvem-se, repetem-se em versões novas, divergindo e convergindo numa girândola imparável.

Este pátio e esta história podiam ser uma espécie de mil e muitas mais noites, uma caixinha sempre pronta a deixar sair mais uma e outra história.