sexta-feira, 25 de abril de 2014

MI BUENOS AIRES QUERIDO



Esta colecção tem sido uma delícia, pela escolha dos títulos e dos autores e pela direcção gráfica. É bom ler estes livros e é bom tê-los na mão. É bom abri-los. E levává-los de um lado para o outro. E é bom marcar a página de leitura com aquela fitinha preta que nos garante que ainda há mais para ler.

Vários são os livros aqui publicados sobre cidades. E várias são as perspectivas de quem os escreve. A poesia de Julien Green sobre Paris, a ironia do olhar Enric González sobre Londres, a Nova Iorque dos bares irlandeses de Brendan Behan, ou a emoção dos muitos caminhos e descaminhos de Alexandra Lucas Coelho no México.

Quando peguei neste "Mi Buenos Aires querido" estava à espera de uma outra Buenos Aires. A verdade é que já sei muito de Buenos Aires, li muitos romances passados em Buenos Aires, ouvi tangos e milongas, mastiguei os mitos, li os poetas, amei as luas de Corto Maltese em Buenos Aires.

Estava à espera de mergulhar mais fundo na própria miscelânea mitológica com que visto o olhar sobre a cidade. Mas há sempre uma nova maneira de olhar para uma cidade. E foi o caso deste Buenos Aires de Ernesto Schoo, jornalista recentemente desaparecido. É outra. É a dele. Foi a dele.

Não é o Buenos Aires dos mitos mas uma outra a cidade dentro da cidade, uma cidade cuidadosamente narrada, que acompanhou o crescimento de um homem desde a infância até à morte. Uma cidade, ou melhor, um cenário que acompanhou uma vida, um cenário que resulta da História, uma construção multifacetada feita por estes europeus exilados que são os argentinos.

A cidade de Ernesto Schoo é uma cidade à beira de um grande rio lamacento, uma cidade física, feita de edifícios e da história dos edifícios, os que existem e os que já não existem. Uma cidade feita de jardins e árvores, de cemitérios e palácios, de teatros e avenidas.

Visitei intensamente esta cidade, ou melhor, esta parte de cidade que apenas inclui os percursos da vida do autor. Visitei-a como quem visita um museu, um espaço que de início me incomodou por estar vazio de pessoas ou emoções, mas em que as emoções acabam por surgir a partir da decoração de um teatro, das construções do jardim zoológico, do barroco em que se desdobra um velho palácio de traçado andaluz.

Conheci neste um outro Buenos Aires que não esperava, mas tão intenso como qualquer outra narrativa porventura mais colorida e emocionante. Conheci este outro Buenos Aires através de uma escrita que me arrebatou e me conduziu por caminhos novos. E que mais se pode desejar de um livro?

terça-feira, 22 de abril de 2014

O Ritual


Uma das mais interessantes experiências artísticas é aquela onde uma forma de expressão artística utiliza métodos e a linguagem duma outra. Refiro-me muito particularmente, ao caso do cinema, quando este recua às suas origens mais directas e utiliza o ritmo e a temporalidade do discurso teatral aquando do tratamento de uma ideia que é primordialmente cinematográfica. Este cruzar de fronteiras é muito mais raro do que o seu inverso, especialmente quando não há como elo de ligação um robusto e carismático texto literário.

Há inúmeros exemplos, algo recentes que são dignos de nota; recordo-me imediatamente de Próspero de Peter Greenway de 1991, Dogville de Lars von Trier de 2003, entre muitos outros. Mas suponho que embora não sendo Ingmar Bergman o encenador que mais frequentemente cultivou este recurso, foi possivelmente o que o fez com maior impacto e eficiência artística. E neste contexto, O Ritual, é talvez o mais paradigmático da sua cinematografia. 

Inserido na retrospectiva do encenador em Fevereiro-Março de 2014 no teatro do Campo Alegre no Porto, este filme notável de 1969, é perfeitamente consistente com a extraordinária sensibilidade artística que associamos ao encenador de Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Lágrimas e Suspiros, Fanny e Alexander para mencionar aqueles filmes que são incontestavelmente considerados obras primas da cinematografia universal. 

Restrito à encenação de quatro actores (o quinto é o próprio encenador que aparece fugazmente numa cena cheia de penumbras e declama umas breves linhas de texto), O Ritual é um filme intenso e sinuoso com uma forte componente onírica e uma linguagem teatral de inspiração clássica. Quase que podemos reconhecer as componentes do discurso poético-teatral descrito na Poética de Aristóteles: mimesis (representação); catharsis (purga e purificação); peripeteia (oposição); anagnorisis (identificação); hamartia (o erro trágico); mythos (enredo); ethos (carácter); dianoia (tema); etc. 

De facto, este magnífico exercício cinematográfico opõe uma trupe de actores, composta por um complexo casal e um terceiro elemento mercurioso, a um inspector conservador incumbido de averiguar a natureza obscena de uma representação do grupo. Aparentemente, a tarefa é extremamente simples, dado o comportamento acintoso e amoral dos actores. A solução ascética duma reprimenda e uma multa parece ser o desenlace lógico, porém Bergman oferece-nos, em vez da racionalidade burocrática, uma inesperada tragédia: o inspector acaba por morrer, vítima de uma paragem cardíaca, consumido pela volúpia propiciada por uma representação privada que lhe é oferecida pela trupe.        

E no microcosmo deste drama exemplar, Bergman opõe, com a maestria da sua inteligência artística, o ideal da arte à banalidade ordem burocrática assim como, a humanidade artística (com as suas  fraquezas e virtudes) à hipocrisia boçal da moral burguesa. 

A conclusão é que O Ritual faz necessariamente parte do grupo das grandes obras de Bergman. 

Orfeu B.


quinta-feira, 10 de abril de 2014

As rugas do envelhecimento

Um livro toma várias formas. “Rugas; Arrugas no original espanhol"
pode denominar-se por BD, novela gráfica, etc. Emílio, um bancário reformado, sofre da doença de Alzheimer e é internado num lar de terceira idade. O tema do envelhecimento (a batalha contra o envelhecimento) é tratado com ternura, evitando o melodrama (mas numa narrativa não isenta de lágrimas) e recorrendo a apontamentos de humor. Infelizmente, conheço bem a realidade dos lares de terceira idade e revejo muitos aspectos neste livro. Os dias marcados pelo dormitar em frente à TV numa existência marcada pela rotina das horas das refeições. As visitas esporádicas das famílias em que se olha frequentemente para o relógio e se disfarçam bocejos, etc.
Há personagens que “reconheço”: a senhora que guarda pacotes de ketchup e de azeite para poder dar ao neto, a única pessoa que a visita - não há muito mais que estas pessoas possam oferecer com a excepção dos eventuais trabalhos feitos em pequenas sessões de terapia ocupacional; a senhora que se senta junto à janela e olha para a paisagem imaginária de uma viagem no expresso do oriente, etc.
O colega de quarto de Emílio, Miguel, é o bem-disposto do lar. Tendo tido uma vida de bon vivant é quem mais activamente tenta combater o tédio e a erosão da rotina. O epílogo destas tentativas consiste em arranjar um descapotável para proporcionar um passeio nocturno com Emílio (ao volante) e a senhora dos pacotes de azeite. A viagem é memorável e retrata bem como a batalha de Miguel contra o tédio é complicada. Alguns apontamentos da senhora dos pacotes: “Podes levantar a capota? Tenho a garganta um bocado irritada e acho que estou com febre. Devo ter apanhado frio”; “Quando virem um bar, paramos. Preciso de água para tomar os meus comprimidos”; “Caraças, só trouxe os remédios da prisão de ventre. Não trouxe nem os do açucar, nem os da circulação, nem os da artrite…”. A viagem tem um epílogo memorável: Miguel chama a tenção de Emílio para o facto dos outros carros lhes fazerem sinais de luzes  e pergunta-lhe se tem os médios ligados. Emílio responde que vai ver...e vai mesmo ver abrindo a porta...felizmente todos sobrevivem!
A degradação do estado de Emílio vai-se acentuando ao longo da narrativa. E Miguel revela-se alguém de muita sensibilidade fazendo o possível e o impossível para disfarçar esse estado. Por exemplo, ele sabe que os médicos fazem perguntas sobre a última refeição e assim escreve a ementa na mão de Emílio. Também faz etiquetas para que Emílio saiba o nome de vários objectos, incluíndo peças de roupa. Tudo para evitar o degredo para o piso de cima, o gueto onde estão as pessoas com Alzheimer mais avançado. Mas a batalha de Miguel é uma batalha de destino previsível - apesar de tudo consegue adiar essa mudança para o degredo. E o livro termina com Miguel a dar as refeições a Emílio a quem a mente e a memória se vão desvanecendo.

Saí encantado desta leitura!

domingo, 6 de abril de 2014

CREIO NAS PALAVRAS TRANSPARENTES



(Desenho de António Ramos Rosa)

Abril é mês de poesia. Já foi Poesia na Rua. Há 40 anos. Agora a poesia já não está na rua. Resiste no coração de alguns.

O meu filho João foi visitar a namorada a Lyon e enviou-me uma mensagem a dizer que, visto de fora, Portugal é neste momento muito pouquinho.

Este pouquinho quer dizer também que o país está entregue a aldrabões e uma parte significativa da população nem reage. São pequeninos, sem alma. Andam todos satisfeitos a ver se lhes calha um Audi na rifa. Uma miséria sem dignidade nem poesia, portanto.

Mas deixemo-nos de queixas e vamos ao livrinho que nos traz aqui.


Leio sempre com grande emoção a poesia de António Ramos Rosa. Porque muita dela me leva ao ponto mais alto e belo do que é a escrita poética.

Foi com particular emoção que li este grande livrinho . Julgo tratar-se do último conjunto de poemas antes de António Ramos Rosa morrer. A morte paira nos versos. Mas não vem desenhada num enredo de sombras e medos. Vem sim iluminada pelo amor à plenitude da vida que a palavra transpira e oferece a quem o lê

Estes poemas soltam em cada passo um fantástico e generosa oferta que o poeta coloca no prato de prata da palavra.

"Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura.

(...")

Ler Ramos Rosa exige entrar "num estado semelhante ao transe…” como se referia C.S. Lewis em “A experiência de ler”, à necessária atitude do leitor na relação com muita da poesia moderna.

Esse transe transporta-nos ao júbilo de uma luz dificilmente explicável pelas palavras do nosso pobre dia-a-dia

Suponho que este pequeno grande livro inaugura a recente colecção de poesia Meia Lua da Editora Lua de Marfim, que conta com publicações de Amadeu Baptista, Casimiro de Brito e Graça Pires.

Num tempo de ausência de poesia da vida e dos livros é uma alegria ver um editor que se atira em frente e se põe a semear estrela para o futuro Bem hajas, paulo.