terça-feira, 22 de setembro de 2015

A terra devastada


Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aleias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.
Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto

De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.



T. S. Eliot

Um dos mais poderosos poemas de língua Inglesa do século XX. Um conjunto de imagens sobrepostas que retratam a fragmentação dos conceitos e o desvanecer das ideias luminosas que marcaram o final do século XIX. Um conjunto complexo de vozes e fontes de inspiração cantam melancolicamente o mal estar das fugazes certezas dilaceradas pela Primeira Grande Guerra e pelas crises do século XX. Um poema intemporal e sempre necessário.  

Publicado em Outubro de 1922 na Grã Bretanha e no mês seguinte nos Estados Unidos, “A terra devastada” é um dos mais representativos exemplos da poesia moderna. Riquíssimo em referências e vagamente inspirado nas lendas do Santo Graal e do Rei Pescador, o poema evoca a tradição grega através da insinuação e referência de figuras como UlissesSibila e Tirésias, os Upanishads hindi, a tradição cristã na sua versão anglicana.

A multiplicidade de imagens e ambientes sugeridos pelo poema composto por cinco partes, reflecte a fragmentação da espiritualidade do autor no início dos anos 1920. Na sua primeira parte, “The Burial of the Dead”, o poema é fortemente marcado pelo desespero e pela dúvida espiritual; na sua segunda parte “The Game of Chess”, caracteriza-se pelo contacto com a existência material; o inevitável tema da morte marca a terceira parte “The Fire Sermon”, e sua relação com as religiões do ocidente; a brevíssima quarta secção “Death by Water” é marcada pelo lirismo e pela alusão, “… Gentio ou Judeu/Ó tu que voltas o leme e olhas na direcção do vento/Pensa em Phlebas, que foi em tempos alto e belo como tu; na quinta parte, “What the Thunder said”, coloca-nos diante do julgamento final e da derradeira hipótese de remissão espiritual, “… A pescar, tendo atrás de mim a planície árida/Porei ao menos as minhas terras em ordem? …” para encerrar o poema com um mantra em Sânscrito "Shantih shantih shantih” dos Upanishads, após passar pela rima infantil, “London bridge is falling down, falling down, falling down”, uma linha do Purgatório de Dante, outra de um soneto de Nerval e uma da Tragédia Espanhola de Kyd.   

Um poema magistral de T. S. Eliot (1888-1965), autor norte-americano naturalizado britânico em 1927, autor de coletâneas marcantes da poesia de língua Inglesa do século XX, tais como The Hollow Men (1925), Ash Wednesday (1930), and Four Quartets (1945). Foi também autor de várias peças de teatro, as mais conhecidas “Murder in the Cathedral” (1935) e “Family Reunion” (1939), foram largamente encenadas. T. S. Eliot foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura em 1948.  

Orfeu B.
   

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

ORATURA E LITERATURA


Hans Magnus Enzensberger fala de analfabetos primários e analfabetos secundários. Os primários não sabem ler, por isso têm de ter uma grande memória para guardar todo o seu saber, o seu por vezes enorme conhecimento oral que inclui histórias, lendas, mitos, poemas, lenga-lengas, orações, etc.

Há quem chame a este património a ORATURA. Ou seja, a literatura oral.

Foi e continua a ser importantíssimo o trabalho de muitos escritores e antropólogos que procuraram e continuam a procurar guardar lendas e mitos orais fixando-os através da escrita, fazendo assim a passagem da oratura à literatura.

Oral ou escrita, toda a nossa civilização se baseia na palavra, seja ela dita ou escrita.

Enzensberger fala-nos ainda dos analfabetos secundários. Os que sabem ler mas... Não têm tempo para ler. Sabem usar cartões de crédito, ouvem imperetrivelmente todas as notícias que logo de seguida deixam de ter qualuqer importância, são consumidores atentos e venerados dos que propagam a opinião única, que espalham verdades absolutas, descartadas depois com a maior facilidade.

Estes analfabetos secundários, podem ser pessoas de grande importância, ministros, presidentes, directores de bancos; ou de menor importância, empregados bancários, caixas de supermercado, vendedores de fruta, cantores de três o pataco. Todos eles viraram costas à palavra em toda a sua grandeza e maravilha. Não crescem através da literatura e da narração, não pertencem ao número dos privilegiados pela arte da leitura.

A ausência de ligação à palavra do mito e da lenda, da reflexão e da busca de sentido, faz com que estes analfabetos vão perdendo a sua identidade antiga ao contrário dos inúmeros povos que dentro do espaço da lusofonia cuja língua materna não tem escrita mas que possuem uma fortíssima identidade passada de pais a filhos através da sua tradição oral.

É na língua oficial, o português, que a sua oratura destes povos se torna literatura, como é o caso das lendas dos índios Kayapós aqui reunidas por Susana Ventura com deliciosas ilustrações de Vanina Starkoff.

Susana Ventura alerta-nos na introdução para o facto de que há inúmeras tribos Kayapóes pelo Brasil, com diversas línguas vivas, o que que faz com que estas lendas e histórias apropriadas aqui ou ali, desta ou daquela forma, dão origem a um número vasto de versões de cada uma.

Fico cheio de "inveja" da Susana. Porque sou como um menino que fica apaixonado por estas nbarrativas e logo me atece reescrevê-las com os meus olhos de lisboeta espantado da vida e do mundo.

Mas dou os parab´nes à Susana porque esta recriação literária constitui uma excelente maneira de entrar em contacto com um universo fantástico e fascinante e que nos enriquece e acrescenta em poesia e humanidade.



sábado, 12 de setembro de 2015

ANTÓNIO FERRO MODERNISMO, PROPAGANDA, SALAZARISMO


Este é o livro de um jornalista sobre um outro jornalista que terá vendido a verdade da sua profissão para se tornar num propagandista sem escrúpulos da figura tão oblíqua e tão duradoura como foi a do ditador Oliveira Salazar.

O núcleo central do livro entrega-nos, com revolta e com pormenor resultante de muita investigação, a figura multifacetada de um homem que desempenhou um papel fundamental nos anos 30 em Portugal e que acabou afastado do país, numa espécie de exílio dourado, a seguir ao final da 2ª Guerra Mundial.

O livro de Orlando Raimundo, centrando-se na figura controversa e espaventosa de António Ferro, dá-nos também um retrato atento do Portugal cultural, político e social dos primeiros anos da ditadura.

Amigo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, escritor de fraca qualidade, admirador incondicional de Mussulini, apoiante do nacionalismo franquista de Espanha, apoiante incondicional de Salazar, António Ferro terá estado disposto a torcer toda a verdade, a fabricar obras de claríssima propaganda como as entrevistas a Salazar, disfarçadas de peças de jornalismo ou literatura.

Ferro mexer-se-ia com facilidade em certos meios da cultura internacional, trazendo a Portugal figuras de prestígio inquestionável que cercava de honrarias e festas, procurando vender uma imagem nacional de progresso e desenvolvimento fazendo do povo português um povo pacífico e seguidor entusiasta da política salazarista.

Algumas cenas ridículas e menores vão sendo desenterrados por Orlando Raimundo que procura ao longo do livro contestar claramente o mito de que Ferro seria um homem do modernismo com obra literária apreciável.

A denúncia das manigâncias de Ferro deixam surpreendidos os menos informados. E mesmo quem, como eu, cresceu debaixo de alguns dos mitos do propagandista, fica ainda surpreendido perante as mentiras e invenções falsamente populares como são o galo de Barcelos, a aldeia mais portuguesa de Portugal, as sete saias das mulheres da Nazaré, as arrecadas de ouro das noivas do Minho, as marchas dos Santos Populares e etc, etc.

Outro aspecto importante.

Percebemos aqui como, além de Almada Negreiros, Ferro puxou para si a colaboração de inúmeros artistas plásticos, mesmo os mais vanguardistas. Pelo contrário foram muito menos os escritores a marcar presença ao lado do regime. E talvez a razão seja simples. Os artistas plásticos, sem outros mecenas ou compradores, passaram a depender em grande parte das encomendas do homem da propaganda do regime. Os escritores, por seu lado, tinham outras profissões e não viviam da escrita.

Muito mais haveria para dizer de um livro que assume claramente o risco de tratar a memória com emoção. Por isso mesmo e não só trata-se de um livro fundamental sobre um período e uma figura que muito tem sido maquilhada e que nos mostra a importância de trazer a terreiro as memóias, por vezes tontas, por vezes dolorosas, da nossa história recente.