domingo, 27 de dezembro de 2009

A MÚSICA DA FOME



Entro na leitura de Clézio como se entrasse numa igreja ou numa catedral. A frase inicial “Conheço a fome, senti-a.” soa como um arco tenso que me atira a flecha das palavras sem adornos e me coloca frente a uma raiz carregada de emoção e verdade.

Essa emoção conduziu-me ao longo do livro entregue às palavras trabalhadas musicalmente num andamento cuidadoso, contido e seguro.

Tudo se passa nos olhares dos personagens, nas suas interrogações e memórias que se cruzam para construir o tempo da 2ª Guerra Mundial em França. O tempo da fome. E não é só de fome de comida que o livro fala, embora seja esse o seu ponto de partida e o seu cenário de fundo onde se move a principal personagem, Ethel que atrevessa a fome enquanto atravessa a adolescência.

Todo o romance me transportou para um tempo que não foi o meu, uma cidade que não foi nem é a minha, uma forma de olhar que não será a minha. E, no entanto, deve ser esse o sinal da boa literatura ou simplesmente da literatura, reconheço-me nas ruas, nos sobresaltos, nos olhares e nos silêncios que vão anunciando o naufrágio de uma família francesa com origem na Ilha Maurícia como o próprio autor.

Naufrágio dentro de outro naufrágio. Porque o pai, Alexandre, embarca em todos os negócios falhados, todos os naufrágios anunciados. E o único sonho verdadeiro, partilhado pela pequena Ethel e pelo tio avô, a construção da Casa Cor de Malva, acaba por falhar com a morte do tio avô e o apodrecimento das madeiras.

A mãe, Justine, embora se mantenha de pé até ao fim, falha perante o amor de Alexandre com Maude, e perde-se em discussões de que Ethel vai ouvindo aqui e ali apenas farrapos e reflexos.

No salão, à volta de Alexandre, juntam-se chauvinistas, anti-semitas, reaccionários, fascitoides que através dos seus diálogos nos vão dando a compasso a música do caminho para o abismo da guerra.

A guerra chega e vem a fome, descrita em pinceladas comoventes. E esta fome,
física, de tão absorvente, até parece aliviar a outra, a fome de alegria e de sonho.

O amor de Ethel por um silencioso inglês, amor aparentemente realizado embora sem palavras, leva-a para o Canadá no fim da guerra e da adolescência, afastando-a assim desta música e desta fome que talvez não termine, conforme nos é sugerido pela visita do filho de Ethel a Paris nas páginas finais.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O CONTO NORTE-AMERICANO NA ACTUALIDADE: RICHARD LANGE


Lange, Richard Lange, tem sido considerado pela crítica como um continuador de Raymond Carver ou, pelo menos, como alguém que lhe está muito próximo. Não sei se será exactamente assim. Enquanto em Carver as descrições objectivas de situações e de comportamentos (verbais e não verbais) das personagens assumem um papel central no processo de construção da história, em Lange as descrições não têm a mesma centralidade no processo narrativo, nem se situam num plano de pura objectividade. Constituem, sim, referências para um conhecimento do mundo de emoções, de pensamentos do narrador, enquanto personagem principal da história.
Se podemos considerar Carver um escritor pós-modernista (na acepção que lhe é atribuída por Douwe Fokkema), o mesmo não se poderá dizer de Lange, que se situa entre o modernismo e o pós-modernismo, na medida em que utiliza elementos de um e de outro destes dois movimentos, como se poderá verificar num dos seus livros mais recentes, “Dead Boys” (Little Brown and Company, USA ou Albin Michel, France).
Estamos, pois, perante uma escrita híbrida, o que não lhe retira legitimidade. Em última instância, podemos considerar que é uma expressão da cultura de uma época em que foram ultrapassadas as oposições entre escolas literárias.
“Dead Boys” é uma colectânea de doze contos que se estendem por cerca de 290 páginas (na edição francesa), que abordam temas variados, a constituir um fresco da sociedade norte-americana de hoje. “Bank of America”, o primeiro conto, é um texto que, do ponto de vista formal, deve algo a Carver, nomeadamente na organização das sequências preparatórias do assalto ao banco. De destacar a caracterização das personagens que compõem o grupo que prepara o assalto. Caracterização indirecta, decorrente da sua participação no processo que antecede a acção, mas extremamente conseguida. Personagens de nomes sugestivos, como Moriarty, o cérebro, o eixo do mal.
Num outro conto, “Fuzzyland”, Lange relata-nos a relação entre um irmão e a sua irmã, relação marcada pela violação da irmã por um desconhecido, o que nos sugere o clima de violência que se vive naquela comunidade da pequena burguesia das imediações de Los Angeles/Hollywood. Violência que se esconde nas pregas de um viver e de um estar em que, aparentemente, nada acontece. O incêndio que lavra nas montanhas que rodeiam a cidade é um marcador que pontua a narrativa e anuncia o drama que se oculta no quotidiano do autor-narrador. Nada é explícito, tudo se vai revelando insinuosamente, a criar uma tensão difusa, mais causadora de perplexidade do que de mal-estar.
“Tout ce qui est beau est bom” é o título (na edição francesa) de um dos contos mais característicos de Richard Lange, estruturado sob a forma de conjunto de fragmentos, aleatórios em relação à história que se vai urdindo (a progressiva perturbação psíquica de alguém abandonado pela namorada). Fragmentos que têm, ainda, uma outra função: revelar ao leitor o esqueleto a partir do qual se construiu a história. O que não é habitual na literatura ficcional, que nos apresenta a história acabada e nunca o processo da sua construção.
Por tudo isto e por algumas razões mais, uma pergunta: para quando uma tradução portuguesa dos contos de Lange?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A Ilha das vozes


A mensagem do José Fanha tem vários pontos de contacto com o que escrevo agora. Também eu tenho um livro, A Ilha do Tesouro do Robert Louis Stevenson, na prateleira a aguardar um espaço entre as leituras vagabundas. Também na mesma colecção da Presença saiu recentemente uma selecção (sempre do Borges) de contos do Stevenson (A Ilha das Vozes). Ambientados quase todos nas ilhas para onde o autor se retirou por motivo de doença, entramos num mundo de magia, feitiços, encantos e aventura. Globalmernte o livro deixou-me encantado, mas o mesmo não posso dizer do conjunto da colecção que contem alguns volumes brem fraquitos.


Boas festas com boas leituras

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

BARTLEBY, O ESCRIVÃO



O que é escrever bem?, perguntou-me uma das minhas filha. Não é fácil encontrar resposta imediata. Mas estou certo que se quiser dizer a alguém o que é escrever bem dar-lhe-ei a ler este conto ou novela de Melville.

Herman Melleville escreveu um dos mais notáveis romances da história da literatura: "Moby Dick". É obrigatório lê-lo, farto-me de dizê-lo às filhas. E eu, miserável leitor vagabundo, tenho-o adiado na estante das urgências e envergonhadamente confesso que ainda não o li.

Mal vi este "Bartleby" agarrei-me a ele numa espécie de acto de contrição. Trata-se de um conto único, construído em torno de uma personagem enigmática e simbólica, Bartleby, o escrivão, sobre o qual muitos outros escritores se tâm debruçado, nomeadamente Jorge Luís Borges que faz a apresentação do conto nesta "Biblioteca de Babel" em que o grande escritor argentino juntou algumas obras primas da literatura fantástica e que, em boa hora, a Presença tem vindo a publicar, contando já com obras de Papini, Chesterton, Edgar Allan Poe, Kipling ou Jack London.

São pequenas jóias publicadas com a deliciosa apresentação gráfica da edição italiana.

Bartleby é o escrivão que começa a trabalhar no escritório de um notário e que se recusa a obedecer a qualquer ordem do patrão argumentando apenas que: "Preferia não fazer isso." E o narrador, o seu patrão fica paralisado perante o inesperado da resposta que se vai repetindo.

De início Bartleby prefere não fazer pequenas tarefas, depois, prefere não trabalhar e pasa o dia à janela. Quando o patrão o despede, Bartleby prefere não sair do escritório. Incapaz de lidar com a situação

É fantástica a sequência de reflexões que o patrão/narrador faz para tentar compreender as razões de um comportamente cada vez mais absurdo e desesperado que levará Bartleby à morte, provavelmente porque prefere não viver.

O ritmo da escrita de Melville que nos leva a mergulhar progressivamente nesse absurdo é irresistível.

E quando chegamos ao fim, sem saber bem o que dizer, ficamos revelados e envolvidos na frase com que o autor termina escrevendo:

"Ah! Bartleby! Ah! Humanidade"

sábado, 19 de dezembro de 2009

"ARQUIVO POÉTICO DA GRANDE GUERRA"




Há anos, há muitos anos, descobri num alfarrabista do Porto um livro que recolhe muita da produção poética de soldados, de oficiais, de sargentos portugueses que combateram em França durante a Primeira Grande Guerra (1914-1918). Poesias, dezenas de poesias, que vão de 1917 a 1918, os anos de permanência do exército português em França , A obra, que se intitula "Arquivo Poético da Grande Guerra", foi organizada por Almeida Russo, "tenente miliciano de artilharia", e foi publicada no Porto, em data não mencionada, mas que não deve ultrapassar os inícios dos anos vinte. Nela se incluem poemas de valia e de estilos muito diferentes, todos subordinados a uma mesma grande temática: a guerra. A guerra e os pensamentos, os sentimentos de quem nela participa (e vê a morte em cada granada de morteiro que lhe cai na trincheira). A morte, o perigo, o medo, a coragem, a saudade, a esperança, atravessam as páginas deste cancioneiro de soldados que mal sabem escrever, de jovens oficiais com arrebiques de cultura de salão. Textos escritos na lama das trincheiras ou nas tarimbas dos campos-prisão alemães. Campos repletos de oficiais apanhados na derrocada do 9 de Abril de 1918, em La Lys. Entre eles, Hernâni Cidade, com os sonetos Pátria Gloriosa e Pátria Dolorora (será Dolorosa?).
De tudo o que li, quero fazer sobressair dois poemas. O primeiro, de autor não mencionado, intitula-se "Oração" e foi escrito no campo-prisão de Breesen in Mecklemburg, e constitui um dos relatos mais fidedignos da batalha de La Lys (o maior desastre militar português depois de Alcácer-Quibir). Descrição cuidada, de quem tem algum domínio da arte poética, descrição em tudo coincidente com os relatos feitos posteriormente por quem lá esteve. Entre eles, Hernâni Cidade, futuro professor da Faculdade de Letras de Lisboa e figura grande da literatura e da cultura portuguesas de meados do século XX. O poema divide-se em três partes: na 1ª, canta-se a mansidão da natureza nesse amanhecer do dia 9 de Abril; na 2ª, o fragor, a loucura da batalha; a 3ª parte fala-nos do silêncio que regressa ao campo de batalha, agora coberto de mortos e feridos. Uma autêntica sinfonia à Prokofiev, em filme de Eisenstein.
A ilustrar o que acabo de dizer, transcrevo as primeiras estrofes:

Já rompia a madrugada,
Nem um só tiro se ouvia;
Par'cia a guerra acabada,
Bem-dita Virgem Maria!

***

De repente, sobre as linhas
Começa a nevoa a trepar;
- Adeus homens e casinhas,
Já não vos posso enxergar.

Na segunda parte, sobressaem versos como os que se seguem:

Nisto o silencio findou
Naquela imensa fornalha:
Passava, correndo, a metralha.
- Senhor Deus, onde é que estou?

***

Chovem balas e granadas;
Fusilaria tremenda;
No ar há clarões de fogo;
Não há ninguém que se entenda.

***

O silencio da vida há pouco
É agora gritaria…
Cada homem é um louco...
Valha-nos Santa-Maria!...

***

Os valados levam sangue...
Já cheira a carne queimada...
Ai que medonho festim!...
Que medonha madrugada!...

***

Gemidos, profundos ais,
Vinham numa voz geral.
- Pobres noivos, tristes pais.
Ai! Portugal, Portugal!...

A terceira e última parte dá-nos testemunho da derrocada das nossas tropas e da carnificina que se lhe seguiu. Portanto, da nossa Derrota, da Vitória da Morte:

Rapaziada, gente môça,
Quasi toda ali morreu;
Mas todos morreram nobres:
Desde o fidalgo ao plebeu!

Dobra, dobra coração!
Dobra num sino dorido!
Vai dizer a cada mãe
Que tem o filho perdido!

***

«Ai minha mãe, minha mãe,
Que morremos sem ninguém»

E a morte passava e via.
- Padre Nosso, Ave Maria!...

Sim, uma oração, mas também um hino à tragédia de um povo que não tem nas veias a vocação da belicidade...
Para além de constituir um documento histórico de valor, este "Arquivo" também nos dá a dimensão humana dos que combateram na Grande Guerra. Nomeadamente do soldado saído da sua aldeia para ir bater-se nas planícies do leste da França, terra que nada lhe diz, habitada por gentes estranhas, de falas arrevesadas. E entre os "poetas soldados", como lhes chama o organizador da colectânea, avulta Américo Mendes de Vasconcelos, "O Palhaes", do Regimento de Infantaria 13, de Vila Real, morto na linha da frente, em La Gorgue. Poemas eivados de ironia, de humor, de dramaticidade, de crítica social e auto-análise psicológica, a constituírem um dos textos mais impressionantes desta antologia. O poema inicia-se com a descrição da partida do seu regimento de Vila Real, a viagem até à estação da Régua, desta ao Porto e daqui para Lisboa, onde embarcam no navio que os há-de levar até França, o local onde os esperam todos os combates.
Na transcrição de excertos, que a seguir se faz, guarda-se a grafia da escrita original, o que permite ver algumas das dificuldades ortográficas de "O Palhaes", que em nada desvalorizam o texto, antes, pelo contrário, lhe confere força da autenticidade. O poema inicia-se com o lamento do soldado que tem de partir para a guerra, mas rapidamente adquire uma tonalidade muito própria, na qual se expressa um finíssimo sentido de humor, em que nada, ou ninguém é poupado – nem o próprio:

No dia 21 de Abril
Grandes casos presenciei:
Partiu o 13 para França...
Eu muitas lagrimas chorei.

Às 10 horas da manhã
Tocou a deitar correias.
- Foi um toque que me fez
Até perder as ideias.

***

Chegámos á estação...
Só se ouviam gritos e choros
- Choravam as mães por os filhos,
As cachopas pelos namôros.

***

Pois dali até á Régua
Só se via gente chorando,
Dizendo adeus aos seus filhos
Com alvos lenços voando.

Então na Regua é que vi...
- Fiquei meio maribundo.
Só se ouvia gritar...
- Até parecia o fim do mundo.

***

Desembarcamos em Lisbôa
Com ordem superior,
E dali a pouco tempo
Entramos para o vapor.

Eu ao ir para aquele monstro
Só me vingava em dar ais.
- Onde vieram espetar
Com o desgraçado do Palhaes!

***

Nisto chama-me um marujo:
- «Venham, não tenham preguiça»
Quando me espetam nas mãos
Com um colête de cortiça.

Mas isto que «bem assêr»
Com estas fitas compridas?
Responde logo o marujo:
«Isto é o salva vidas».

E ponha-o já no peito
Depressa, não seja teimoso,
Que vamos atravessar
Um sítio muito prigoso.

Ao ouvir aquelas frases,
Deu um salto meu coração...
Lá vai a Palhaes passar
Ao buxo dum tubarão.

***

Um gritava: ai minha mãe,
Não a torno a ver mais!
E eu de mim só dizia:
Ai desgraçado Palhaes!

Mas um dos meus camaradas
Portou-se um heroi e soldado...
Apresentou-se na prôa
Com a muchila equipado!

Lembrava-se o herói soldado
Que podia ser punido
Se morresse afogado
Sem o que lhe tinham distribuído.

Outro torna para traz:
«Que tal está minha cabeça...
Já deixava o cantil,
A mais a pá picareta.»

Chegado a França, as dificuldades adensam-se, mas o seu bom humor tudo lhe permite ir superando:

Tornamos a saltar em terra.
Eu, com a barriga vasia,
Dirigi-me a um Estaminet
A preguntar o que havia.

Pedi trigo á portugueza.
Nem trigo nem brôa vi.
Responde-me uma cachopa:
- Meu garçon eu não cumpri.

Tornei a entrar no comboio
Com a barriga a latejar
- Ai desgraçado Palhaes!
Onde vieste parar!

Desconsolo no ventre, mas também na "cama", que o espera na primeira noite de acantonamento:

Numas pequenas cortelhas,
Foi os nossos aposentos,
Aonde viviam cabras,
Rècos, e alguns jomentos!

Um molhito de palhuço
Foi-nos servindo de colchão,
Para assim encobrir
Que se dormia no chão.

Mas é na frente que tudo acontece: o trágico e o cómico; o heróico e o brejeiro. Sobre a "madmoázel" que um seu camarada seduz (ou que por ela é seduzido), diz "O Palhaes" poeta:

Era formosa e bonita,
Lá isso não faltava nada:
Tinha 24 anos
E já era desdentada.

Então o alferes médico
Mandou chamar o rapaz,
Perguntando-lhe se estava
Adiantado o fatacaz

E responde o pobre Magála,
Cheio de medo e tormento:
- «Mal cheguei a esta terra
Entrei logo cá p’ra dentro».

[Sobre o termo “fatacaz”, o organizador do “Arquivo” diz-nos que, por uma questão de pudor, algumas expressões tiveram de sofrer modificações…]

De tudo se fala, até (e principalmente) das aflições do soldadinho português nos confrontos com um inimigo bem mais poderoso e aguerrido:

Que horas tão aflictas,
Quando cahe a morteirada,
E granadas de artilharia,
E granadas de espingarda.

Ó que terriveis momentos
A que se havia de chegar!...
Quando cahe um rapasito,
Anda tudo por o ar.

Eu já me vi num assunto...
O meu rabo era o duma agulha...
Foi quando fui escalado
Para fazer uma patrulha.

Enfim, uma autêntica história trágico-marítima-terrestre, em que se expressa muito do que éramos em 1917, do que ainda somos, e talvez do que nunca deixaremos de ser. Enfim, um poema que nos devolve algo do que é essencial à definição da nossa identidade enquanto nação, enquanto povo – enquanto alma...

domingo, 13 de dezembro de 2009

O MAIS MISTERIOSO DOS MISTÉRIOS



Abro os suplementos literários dos jornais portugueses, espanhóis, franceses e a notícia é sempre a mesma. Folheio as revistas, os magazines literários desses países e a notícia também lá está. O título da obra pode variar, o autor pode ser outro, mas, ao fim e ao cabo, nada muda. E isto há anos e anos. Nos últimos tempos, no entanto, a coisa acentuou-se ainda mais. Um mistério para o qual nunca consegui explicação. Mistério de tal modo banal que já nele nem atentamos – o que o torna ainda mais misterioso. Estou a referir-me, apenas e tão só, a uma temática literária que ameaça transformar-se em algo de eterno, ou seja: o holocausto dos judeus na segunda grande guerra; a tragédia dos judeus perseguidos pela máquina de extermínio dos nazis; a odisseia dos judeus em busca de um porto de abrigo. Enfim, os judeus, os judeus, os judeus.
Evidentemente que todos esses crimes nos horrorizaram e continuam a horrorizar. Evidentemente que é algo que não pode nem deve ser esquecido, para não voltar a repetir-se. Evidentemente. Mas que tenhamos de continuar a suportar livros e livros sobre o mesmo assunto, é mistério para o qual não encontro explicação. Algo de aberrante, cujas consequências não são evidentes. Banalização da tragédia e, daí, a sua desvalorização? Possivelmente. Agravamento dos sentimentos mórbidos que vivem no fundo de todos nós? Sem dúvida. Desvio das atenções para os crimes que se cometem todos os dias nas mais variadas regiões do mundo – alguns da autoria de judeus que governam o estado de Israel? Talvez um pouco de tudo isso e ainda algo mais, que não consigo descortinar.
O conhecimento da História é imprescindível para nos compreendermos, para nos situarmos, mas o uso e o abuso da História faz-nos correr o maior dos riscos: o de ficarmos cegos para o que está a acontecer à nossa volta. O Mal é sempre o Mal. Não há Mal de primeira e Mal de segunda. E se não podemos intervir no Mal acontecido, podemos, devemos tomar partido em relação ao Mal que está a acontecer. O nosso combate é o do tempo presente – tudo o resto, alienação – ou uma porta que nos conduz à alienação.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A Ilha dos Pinguins



Não deixa de ser extraordinário que no início do século XXI uma obra literária sobre um tema bíblico possa ainda causar polêmica. Também não me parece crível que os intervenientes (de ambos os campos da contenda) ainda tenham fólego e pretendam que qualquer tipo de discussão racional sobre a matéria seja possível. Relativamente à substância da fé, não há razão para supor que argumentos lógicos, factuais e históricos tenham qualquer efeito demonstrativo, pois a crença não está baseada nas leis da realidade. Na verdade, eu sempre supus que o assunto já estivesse arrumado, e que as esferas de influência e acção já estivessem há muito delimitadas. O vigor das reacções e a pretensão de que a discussão é nova demonstraram que eu estava equivocado ao assumir que por ser anacrónica a temática não acenderia as paixões.

Mas quando as discussões causam-me bocejos, eu costumo procurar o que um velho mestre escreveu sobre as matérias em debate. E tenho que dizer que não fiquei nada decepcionado com a verve dum velho amigo doutros tempos, no caso Anatole France, ao examinar a questão da moralidade derivada da religião e da evolução ética da humanidade ao longo dos tempos.

Escrito há mais de um século (1908), a Ilha dos Pinguis descreve desde a sua gênese, a evolução da Pinguínia, a civilização que teve origem na transformação dos pinguins em homens. S. Mäel era um santo homem que dedicara a sua pia vida à catequese e à salvação das almas dos habitantes de muitas ilhas. Já com uma idade avançada, meio surdo e quase cego, é tentado pelo diabo a instalar uma vela na sua improvável embarcação de pedra, para assim poder chegar mais rapidamente ao seu destino e salvar mais almas. O engenho do demónio leva-o através de mares de gelo, até uma ilha habitada por pinguins. Convencido que chegara à ilha da contrição, impressionam-lhe os seus habitantes pelo seu silêncio e pela pureza dos seus corações. Ensina-lhes então o Evangelho, e convencido que estava que as aves haviam sido iluminadas pelo ensinamento, passa a batizá-las por três dias e três noites.

No Paraíso contudo, uma assembleia composta por clérigos e doutores, na presença do próprio Senhor, discute a validade do duvidoso baptismo. Argumenta S. Patrick:

"O sacramento do baptismo é nulo quando ministrado a aves, como o sacramento do casamento é nulo quando ministrado a um eunuco."

Contra-argumenta o papa S. Dâmaso, que para saber se um baptismo é válido, há que considerar quem o ministra, e não quem o recebe. Afirmação que levanta a questão: mesmo que o recipiente seja uma ave? Um quadrúpede? Um objecto inanimado? Uma estátua? O grande Santo Agostinho, responde que com certeza! As fórmulas sacramentais estendem-se aos espíritos brutos e à matéria inerte.

A longa discussão não chega a consenso, mas por fim o Senhor decide por validar o baptismo dos pinguins, ainda que correndo o risco de que no processo de adquirirem uma alma esta se lhes escape e vá para o Inferno. Assim, o Senhor declara: Sede homens!

A partir desta metamorfose evolui a Pinguínia como as outras civilizações. Ao uso dos primeiros véus, segue o pecado. A desigualdade de força muscular e da agressividade dos indivíduos dá origem ao assassínio no processo de delimitação dos campos e da instauração da propriedade. Segue-se um período dominado pela superstição e pelo mito do dragão, que na verdade não passava dum astuto pinguin que aterrorizava os habitantes da Pinguínia para roubar-lhes os bens. O próprio acaba por inventar um esquema para derrotar o dragão (cuja vestimenta era então envergada por crianças inocentes) e fundar a poderosa dinastia dos Draco.

Depois desta fase, desenvolve-se a história da Pinguínia em torno das extravagâncias e excentricidades de seus reis e rainhas. Mas tempos renovados e mais próprios surgem após o renascimento e à idade média. A Pinguínia é agora um próspero regime republicano. Mas as novas leis para defender a propriedade, que durante séculos pertencera à nobreza e ao clero, e que agora está nas mãos dos burgueses e dos proprietários rurais, não são menos terríveis.

O abençoado príncipe da deposta dinastia de Draco vive no exílio à espera de que nobres e membros influentes da igreja criem o caos necessário que desmoralize o regime republicano e reestabeleça a monarquia. Mas o novo regime resiste, pois adapta-se melhor que o antigo às vicissitudes dos novos tempos.

Bastante ilustrativo deste estado de coisas foi o caso Pyrot. Pyrot, um filho de Israel de modesta condição, cioso por conviver com a aristocracia e de servir o seu país, entra para o exército dos Pinguins. O general Greatauk, ministro da Guerra não lhe suportava o zelo, o nariz adunco, a vaidade, o gosto pelo estudo, a sua conduta exemplar, e responsabiliza-o por todos os problemas.

Uma manhã, o general Panther, chefe do Estado Maior, informa Greatauk que oitenta medas de feno haviam desaparecido e possivelmente vendidas a baixo preço à Marsuína, a arqui-inimiga potência estrangeira. Greatauk exclama espontaneamente: "Dever ser Pyrot!"; "Só nos resta prová-lo", concorda Panther ... Suponho que não seja necessário continuar.

E nesse passo evolue a Pinguínia, de modo que as medidas mais descabidas dos governos têm frequentemente origem em questões menores, incluindo também os descaminhos amorosos de membros do executivo. E naturalmente, pode-se sempre contar com "o patriotismo dos bancos" que todos os dias "reclama uma expedição civilizadora à Nigrícia", enquanto "o monopólio do aço cheio de ardor em proteger as nossas costas e defender as nossas colónias, exigia freneticamente couraçados e mais couraçados". E quando não há nada para fazer calar o clamor popular relativo à alguma matéria envolvendo corrupção, tráfego de influência, e assuntos afins, o governo manda prender alguns opositores importantes e incómodos (socialistas naqueles tempos).

A civilização Pinguin atinge então o seu apogeu. Na sua maior cidade, quinze milhões de homens trabalham à luz de lanternas, sob um céu cuja claridade não atravessa os fumos das fábricas. No seu seio "as paixões que prejudicam o aumento ou a conservação dos bens eram consideradas desonrosas" ... "O Estado assentava firmemente em duas virtudes públicas: o respeito pelo rico e o desprezo pelo pobre."

O epílogo da civilização Pinguin? A auto-destruição perpetrada por alguns visionários ...

Naturalmente, Anatole France não se refere à crise e à derrocada inevitável do mundo quando conduzido exclusivamente pela ambição material com a terminologia que hoje utilizamos, mas não escapou à sua arguta análise que as causas dos problemas do seu tempo não se alterariam substancialmente no futuro. São o fruto da história e nas ambições desmesuradas dos indivíduos que se traduz na História da humanidade. A sua solução pode parecer ingénua e idealista, contudo hoje sabemos que um mundo baseado em grandes disparidades materiais não é viável. No início do século XX, estas disparidades e a luta por hegemonias deram origem a duas guerras mundiais. No início do século XXI, discutimos o aquecimento global e a solução de crises que hoje entendemos serem globais; as guerras são mais locais; mas por quanto tempo?

Porém, o que é mais evidente ao se ler Anatole France e os seus contemporâneos, é a sensação de que os escritores de então tinham a profunda convicção da necessidade do seu trabalho no processo de construção dum mundo mais justo. Sobretudo na primeira metade do século XX, os escritores não eram membros criadores da dita indústria do entretenimento. Eram livres pensadores a serviço da humanidade.

E enquanto a polêmica do dia se desenvolve, ou é substituida por outra igualmente enfadonha, eu vou novamente à procura de livros interessantes, muito provavelmente escritos por antigos mestres.

Orfeu B.