domingo, 30 de maio de 2010

Mário de Carvalho - A Arte de Morrer Longe



Tenho uma grande admiração pele escrita de Mário de Carvalho, principalmente porque está latente sempre um humor, uma ironia e paródia muito peculiar e extraordinária.

Neste livro Mário de Carvalho faz novamente um retrato de uma Lisboa (um Portugal) contemporâneo mas com semblantes de um mundo fechado, enfiado em si mesmo. As personagens estão extremamente bem caracterizadas, um casal em fase de separação mas impedidos de concretização por um argumento pouco importante (a tartaruga de estimação); a mãe burguesa, obtusa cheia de estereótipos; o amante da mãe, um policia oportunista; o ambiente de trabalho de Bárbara e de Arnaldo (o casal) lugares aborrecidos em que impera o oportunismo e a manipulação onde a única escapadela são as redes sociais da internet.

Devo dizer que comecei realmente desperto para a leitura, a sentir a leitura como objecto artístico, como interesse quando me apresentaram a escritor de Mário de Carvalho, foi um professor da minha escola secundária que perante o livro que eu estava a ler disse-me, “é pá! Esse livro é muito chato!” e emprestou-me “Casos do Beco das Sardinheiras”. Foi óptimo, porque eu tinha a convicção de que havia livros enfadonhos, não tinha ainda a convicção que a leitura podia ser um divertimento como foi para mim ler qualquer livro de Mário de Carvalho.

Há pouco tempo encontrei num Workshop um ilustrador Canadiano que se apaixonou por Portugal e mudou-se para cá (ainda bem porque o ilustrador é muito bom), entre as coisas que achei fantástico é que nos disse que o primeiro livro que leu em português foi exactamente “Casos do Beco das Sardinheiras”, que apresentava tudo o que lhe fez gostar de Lisboa e que depois até o ilustrou.

Os Livros de Mário de Carvalho podem ser sempre uma forma de um adolescente iniciar o prazer da leitura, podem até ser a forma de um estrangeiro se apaixonar por Portugal. Além de tudo afirmo aqui que Mário de Carvalho é um grande escritor, digo eu, que percebo pouco de Literatura e posso estar profundamente enganado. Como leigo digo-vos que este livro encantou-me e tem todos os ingredientes para nos divertir durante uma horas. O fim não conto, ficariam a saber quem morreu longe, se querem saber ponham-se a ler.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A LEITORA REAL



A ASA teve uma excepcional colecção de livros intitulada "Colecção Pequenos Prazeres". Aí deu a conhecer em língua portuguesa alguns autores e obras de imenso relevo. Luís Sepúlveda aportou a Portugal nessa colecção. E lembro-me de outros: OLivier Rolin, Mário Aparaguín, Carlos María Dominguez, Patrick Modiano, Lars Gustafsson, Agotha Kristof... E por ali passaram muitos outros, de Graham Greene a João Aguiar, de Milan Kundera a Somerset Maugham.

Eram livrinhos simpáticos, transportáveis, fáceis de ler em qualquer sítio.

Livros dessa colecção encontram-se agora aí pelas prateleiras de pequenas livrarias mais espertas e atentas aos livros e à literatura. Ou então, nas feiras do livro a preço baixo que vão brotando por estações de metro ou de comboio.

Dessa colecção bebi avidamente muitos livros. Um deles foi "Só lhes deixaram a roupa que vestiam..." de um autor inglês, Alan Benett. Era uma delícia de ironia, humor muito inglês e arte de bem contar uma história.

Pois apareceu nas bancas há pouco tempo mais um livrinho de Alan Benett. Peguei nele e só o deixei quando acabei de o ler.

A Rainha de Inglaterra entra pela primeira vez numa biblioteca itinerante (um bibliomóvel) parado nas traseiras do palácio e sente-se na real obrigação de levar um livro para a escolha do qual pede a sugestão a um moço de cozinha que é um furiosíssimo leitor.

A partir daí a Rainha transforma-se numa leitora avassaladora. Devido a este vício ou devoção, vai-se descurando nalgumas das suas reais obrigações pra se dedicar aos encantos e inquietações que a leitura lhe proporciona.

O humoré uma constante. Senão, veja-se:

"Nessa note, ao passar pelo quarto dela, agarrado à botija de água quente, o Duque ouviu-a rir alto. Passou a cebeça pela abertura da porta: - Tudo bem, cara amiga?
- Claro. estou a ler.
- Outra vez? - E for-se embora a abanar a cabeça."

A leitura da Rainha torna-se motivo de vários aborrecimentos e confusões não só para o pessoal da Corte como para o primeiro-ministro e leva até que se pense que ela está com Alzheimer.

O próprio Presidente da França fica sem saber o que dizer quando, numa recepção oficial, a Rainha lhe pergunta a sua opinião sobre Jean Genet (escritor que ele nem conhecia).

Da leitura, a Rainha chega à escrita e conclui da necessidade de "ter uma voz". E cnclui que só se tem voz quando se escreve.

E mais não conto. Mas garanto que é de ler e chorar por mais.

terça-feira, 25 de maio de 2010

LIVROS DE QUE SE PRESCINDE, VOCÁBULOS DE QUE NÃO SE PODE PRESCINDIR





Há muito que me habituei a ler a “Babelia”, o suplemento semanal de “El País” que trata de livros e dos seus autores. E sempre o faço com gosto e algum proveito. Estão neste caso dois dos seus últimos números (948 e 953), os quais trazem vários artigos dignos de referência. Um deles, da autoria do escritor boliviano Santiago Gamboa, tem por título “Os livros que não acabei de ler” e fala-nos dos livros de que gostamos, mas que não precisamos de ler até ao fim. Após a leitura das primeiras dezenas de páginas, “sabemos” que o livro já não tem muito mais para nos dar. Livro que pomos de lado, adiando a sua conclusão para data posterior – que talvez nunca chegue.
Um outro artigo, da autoria de Emílio Llego (professor da Universidade de Zaragoza), tem por tema o envelhecimento lexical e a morte dos vocábulos considerados obsoletos e, por isso, eliminados dos diccionários. Artigo que é, em última instância, um apelo à preservação desses vocábulos, pois “os resíduos das palavras desactivadas dormitam sempre no fundo de nós”. Eliminar palavras, mesmo as que não são utilizadas na linguagem de hoje, constitui sempre o empobrecimento de uma língua e a perda de um património cultural que é parte integrante da história de uma comunidade. E não posso deixar de me lembrar dos livros de Camilo Castelo Branco, riquíssimo repositório de léxicos do passado, que transformam essas obras em algo de vivo – e eterno – livros cuja leitura eu nunca pude interromper, muito menos adiar para as calendas gregas.
Mas como os diccionários, quer queiramos quer não, vão sofrendo um empobrecimento progressivo, sou obrigado a ter na minha estante os diccionários, os vocabulários, os léxicos de outras épocas, pois só com o seu concurso é que consigo resolver alguns problemas de linguagem, nomeadamente quando, no meio da escrita, me surge um termo que “dormitava” no fundo de mim, mas cujo sentido se foi perdendo ou alterando ao longo dos tempos. Termo, construção verbal, de que não posso prescindir, pois, se o fizer, empobreço o meu pensamento, o meu sentir, em suma, a minha língua.

sábado, 15 de maio de 2010

Histórias para Contar em Noites de Luar


"Yacoub era pobre, mas despreocupado e feliz, livre como um saltimbanco, sonhando sempre cada vez mais alto. Em boa verdade, estava apaixonado pelo mundo. Porém, o mundo à sua volta parecia-lhe sombrio, brutal, seco de coração, de alma obscura, e ele sofria com isso. «Como», perguntava-se, «fazer com que seja melhor? Como trazer à bondade estes tristes que vão e vêm sem olharem para os seus semelhantes?» Ruminava estas perguntas pelas ruas de Praga, a sua cidade, vagueando e saudando as pessoas que, no entanto, não lhe respondiam.Ora, uma manhã, quando atravessava uma praça cheia de sol, teve uma ideia. «E se lhes contasse histórias?», pensou. «Assim, eu, que conheço o sabor do amor e da beleza, ajudá-los-ia certamente a encontrar a felicidade.» (O Contador de Histórias)

Não sei se o José Fanha é como o Yacoub, quando conta histórias, mas decerto que ao contá-las ajuda a encontrar esse amor e beleza.

"Histórias para Contar em Noites de Luar", é literatura para os mais novos e para os mais velhos e encanta pela magia de cada percurso, de cada enredo que nos faz viajar pelas emoções, matéria tão difícil de tratar.

sábado, 1 de maio de 2010

Um Embuste Perfeito




Mário Samigli era um literato com quase sessenta anos. O romance que publicara havia quarenta anos poder-se-ia considerar morto se neste mundo soubessem igualmente morrer as coisas que nunca chegaram a estar vivas. Desalentado e um pouco enfraquecido, Mário, por seu lado, continuou durante muitos anos a viver uma vida pachorrenta que um empregozito de poucas chatices e pequeníssimo rendimento lhe proporcionava. Uma vida assim é higiénica e torna-se ainda mais saudável se, como acontecia com Mário, é temperada por um belo sonho. Na sua idade, continuava a considerar-se destinado à glória, não por aquilo que fizera, nem por aquilo que esperava poder fazer, mas assim mesmo, porque uma grande inércia, essa que lhe impedia qualquer rebelião contra a sua sorte, o preservava do cansativo trabalho de destruir a convicção formada na sua alma há muitos anos. E isto acabava por demonstrar que até a potência do destino tem um limite. A vida tinha-lhe partido alguns ossos, mas deixara-lhe intactos os órgãos mais importantes, dos quais certamente depende a glória. Mário atravessava a sua triste vida sempre acompanhado por um sentimento de satisfação.

Italo Svevo



Italo Svevo, que literalmente significa italiano da Swabia, é o pseudónimo do homem de negócios Aron Ettore Schmitz (1861 - 1928) que viveu em Trieste e é o autor de "A Consciência de Zeno", uma obra maior da ficção do século XX. O seu estilo marcadamente confessional foi fortemente influenciado pela psicanálise de Freud. A sua singular obra, praticamente toda publicada em edições de autor, teria muito provavelmente caído no esquecimento se não fosse o esforço de James Joyce em divulgá-la. Joyce conheceu Schmitz em 1907 em Triste enquanto estudante de inglês. Lê então "Senilità" de Svevo, obra que fora publicada em 1898 e que havia sido completamente ignorada. Joyce apoia decisivamente a publicação de "A Consciência de Zeno" em França, onde o livro é acolhido com entusiasmo. Schmitz é também o modelo do judeu convertido Leopold Bloom, protagonista de o "Ulysses", a obra maior de Joyce.


Escrita em 1926, a novela "Um Embuste Perfeito" conta-nos a melancólica história dum literato que aos sessenta anos vive à espera da aclamação do seu romance de juventude, que não havia despertado qualquer reacção de público e crítica quando da sua publicação. A convicção na glória tolda completamente a razão do protagonista e leva-o a adoptar uma atitude arrogante relativamente à literatura do seu tempo. Um pretenso amigo, caixeiro-viajante de profissão, decide aproveitar a ingenuidade do protagonista e submetê-lo a um embuste. Convence-o que uma importante casa editorial de Viena estava interessada na tradução da sua obra. Vivendo entre a ilusão e a realidade, o protagonista acaba por descobrir que tudo não passava dum vil embuste, mas não antes dum irónico desenlace que lhe permite receber metade da quantia acordada no pretenso negócio com o editor austríaco devido a uma brusca variação de câmbio entre a lira e a coroa austríaca.

Uma novela de grande interesse que retrata, apesar das inevitáveis distinções de grau, o estado de espírito de todos os literatos. Há também uma moderada exaltação da literatura enquanto meio de expansão espiritual, independentemente da modéstia das condições materiais e objectivas de vida dos autores. O protagonista vive precariamente e a sua vida não se dilata para além da dependência emocional dum irmão mais velho e doente, e da compreensão benevolente do seu patrão. Esta benevolência suscita-me uma inevitável associação com o patrão Vasques do guarda-livros Bernardo Soares.


Orfeu B.


RICHARD BAUSCH, CONTISTA MAGISTRAL



Não, não me canso de ler – e de admirar – os contistas norte-americanos do nosso tempo. É o caso de Richard Bausch, romancista, novelista, contista, nascido em 1945, na Virgínia e aí residente desde sempre. Retratista de uma América profunda, Bausch é um grande contista, com uma escrita envolvente, que se situa na tradição dos contadores de histórias que fazem da sua palavra um instrumento de encantamento, de sedução.
Li e reli a tradução francesa (“L´homme qui a connu Belle Starr et autres nouvelles”, Gallimard) da sua obra “The stories of Richard Bausch”, publicada em 2003. E, uma vez mais, espantei-me como, neste mundo de globalização, esta obra ainda não seja conhecida em Portugal. Obra que consiste numa colectânea de 19 histórias, todas de estrutura perfeita, com um finíssimo sentido de humor, por vezes a resvalar para a ironia.
A história inicial, “L´homme que a connu Belle Starr”, que dá nome à tradução francesa, é um texto cheio de ritmo, que se inspira nos mitos americanos da violência e liberdade do século XX, e que têm expressão maior na saga de “Bonnie and Clyde”. Uma Bonnie e um Clyde plenos de equívoco e de loucura.
Histórias centradas na caracterização de situações em que as personagens se envolvem, a partir das quais os textos adquirem a inteligibilidade necessária ao desenvolvimento da acção, acção imbuída de um “non-sense” que tem tanto de difuso como de penetrante.
19 histórias que abordam uma multiplicidade de temas que, no seu conjunto, nos dão uma panorâmica de uma América sem valores, perdida num quotidiano sem sentido, em que as ideias feitas e os hábitos estereotipados se sucedem em ritmo impressionante. Exemplo flagrante é a história que, em francês, tem por título “Téléphone rose”, em que a perversão e o absurdo do sexo por telefone surgem com uma evidência que nos desconcerta.
Richard Bausch é um daqueles autores que organizam os seus livros segundo um esquema tradicional: a obra abre com um belo conto e fecha com outro (ou outros), igualmente de grande qualidade. “Le Guatemala” e “Le dernier jour de l´été”, os contos finais, são a expressão do que acabo de dizer. Se no primeiro avulta a crueldade subjacente a um almoço de família que se queria de paz e concórdia, já no segundo é nos dada a dificuldade de relação entre um pai e um filho, espectadores do mesmo jogo de futebol, mas separados por um fosso que não permite o entendimento entre pessoas de gerações diferentes.
Em suma, um livro magistral (construído a partir de situações vividas pela classe média americana), a atestar o virtuosismo de um dos maiores contistas dos Estados Unidos da América de finais do século XX, inícios de XXI.