quarta-feira, 20 de outubro de 2010

SALAZAR UMA BIOGRAFIA



Não, não é uma obra de ficção. É uma biografia que corresponde a um trabalho de de investigação histórica, consciencioso e bastante minucioso. É, como foi salientado, a primeira grande biografia de Salazar digna desse nome. Um trabalho que vem preencher uma lacuna na nossa historiagrafia contemporânea e coloca no seu devido lugar a biografia da autoria de Franco Nogueira (“Salazar”, 6 volumes, Atlântida Editora e Livraria Civilização), que se confinava a uma visão apologética da vida e obra de Salazar.
É seu autor um professor de História, Filipe Ribeiro de Menezes, que realizou esta investigação no âmbito do seu trabalho académico na Universidade de Dublin. Trabalho que intitulou “Salazar. Uma Biografia Política”e que acaba de ser publicado pela D. Quixote. Ribeiro de Menezes mobilizou um amplo conjunto de fontes documentais que analisou cuidadosamente. As análises e algumas interpretações de factos e situações nem sempre fáceis de interpretar (interpretações geralmente baseadas numa perspectiva linear de causa-efeito) são sempre feitas de modo isento e inteligente.
Daí a pergunta: a partir de agora poderemos considerar que temos, finalmente, uma obra de referência sobre Salazar, que nos permite conhecer em profundidade a pessoa e a sua época? Sim e não. Sim, na medida em que a documentação utilizada nos permite um conhecimento factual de quem foi ( e o que fez) o homem que nos governou cerca de 40 anos. Não, na medida em que as causas profundas que permitiram a sua subida ao poder e a sua permanência no poder durante décadas não são realmente analisadas. As perspectivas socio-políticas, ideológicas ou psicossociais que caracterizaram a época em que Salazar viveu e que condicionaram a sua acção governativa não são abordadas.
Estamos perante uma obra que não pretende ir além da descrição e da análise factual. Nesse sentido, cumpre os objectivos que se propunha alcançar. Mas a História, hoje, é mais do que isso. Sem retirar mérito à obra , considero que é apenas um ponto de partida para uma explicação abrangente do que foram as décadas de ditadura em que Salazar exerceu o seu poder discricionário. Do que foram essas décadas e quais as suas consequências na formação de uma mentalidade que, sob certos aspectos, continua a condicionar-nos. Por isso, considero que há uma História de Salazar e do Estado Novo ainda por fazer.

domingo, 17 de outubro de 2010

A VIDA DE GENTE VULGAR



Todos os anos, Rafaelle, fascista italiano que foi voluntário na Guerra Civil de Espanha, veste-se a si e ao neto com a camisa negra e a devida farda e vai à homenagem aos fascistas italianos mortos em Espanha e percebemos que essa cerimónia anual cria uma clara crispação no resto da família.

Temos neste ritual repetido anualmente o sinal de um tempo que vai apodrecendo e desagregando os afecto e a consistência da família Canmeroni.

Ignácio Martinez de Pisón relata nos seus livros a história de pessoas normais, se é que existem pessoas normais. Não se trata de grandes naufragados no tempo ou no espaço, grandes tragédias, grandes amores.

São pessoas vulgares (talvez seja melhor a palavra “vulgares” que “normais”); pessoas vulgares com os seus vulgares problemas quotidianos, os seus pequenos-grandes dramas, os seus amores sem grandes altitudes nem grandes quedas.

Estas histórias são servidas por um gosto agudo pela reconstrução cuidadosa de tempos recentes, na multiplicação de pormenores, gestos, preocupações e limitações das personagens, que quase nos transporta e faz respirar nesses anos em que alguns de nós ainda vivemos e que quase nos faz voltar a sentir os cheiros e o ambiente dos anos 50, 60, 70, com tantas semelhanças entre Espanha e Portugal.

A história de "Dentes de Leite" roda em torno deste fascista italiano voluntário na Guerra Civil de Espanha que deixa uma mulher e uma filha anormal em Itália e se casa e constrói outra família em Espanha.

Rafaelle vê nascerem 3 filhos espanhóis, um deles também anormal. Fascista, sim, mas aparentemente não será má pessoa. Autoritário apenas, o que talvez não seja pouco., porque, como diz o autor, o fascismo é uma forma de pensamento que impregna a vida de todos os dias.

Um dia, um a um, num tempo em que o franquismo anuncia o seu final, os membros da família revoltam-se com o autoritarismo de Rafaelle e com a mentira sobre a qual foi construída a sua vida. E abandonam progressivamente um velho que vê o seu universo ideológico e familiar a apodrecer.

Neste belo romance, mais do que a sua espinha dorsal que é conduzida com um ritmo tranquilo e metódico, são os pormenores, as reacções de cada personagem, as suas contradições, os seus conflitos, as suas pequenas paixões, os seus percursos cheios de surpresas e inversões que nos conduzem na leitura que em cada página se torna mais intensa.

O que nos faz amar esta escrita é o sentido humano que o autor confere às suas personagens que se nos apresentam pessoas como qualquer um de nós. Por isso mesmo, este é daqueles livros onde a leitura também nos inscreve o leitor, a sua história, as suas inquietações, as suas dúvidas e que o faz mais intensamente personagem do “romance da sua própria vida”.

sábado, 9 de outubro de 2010

amor.com



Pede-me uma leitora para que eu escreva algo sobre este livro. Porém, apesar de inúmeras tentativas, acabo sempre por voltar à objecção inicial, ou seja, à óbvia conclusão de que a ausência de distanciamento não me permite qualquer julgamento crítico da obra. Destaco contudo, a beleza da capa, concebida pela artista-editora-poeta-professora Ana Viana, e o interessante mosaico gerado por um programa que exibe de forma pictórica a frequência das palavras mais utilizadas. Finalmente, permito-me também reproduzir um fragmento do poema Copiar o Tejo:


Aprendemos com o rio
o sistema de suportar os outros elementos;
não nos roubam o caudal
de sermos mais calmos
que o tempo das águas
e o possível de cada margem.

...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

AS MARAVILHAS DA LEITURA




Belíssimo livro de Rui Zink. Delicioso divertimento e magnífica lição sobre o que é a leitura e o amor aos livros.

Um menino embarca sem querer num navio que vai à procura de um animal fantástico, um animal leitor de que um remoto explorador deixou notícia num escrito em que por estar constipado troca na escrita (!) os emes pelos bês e, por em vez de “animal leitor” escreve “anibaleitor”.

Num naufrágio, o menino naufraga e vai ter à caverna do Anibaleitor, um imenso gorila que Lê e come seres humanos. Não como o protagonista porque precisa de alguém para falar dos livros que lê.

Os diálogos entre os dois são não divertidíssimose carregados do humor e do uso brilhante do non-sense habituais em Rui Zink. Simultaneamente são uma lição fantástica sobre a leitura que vai derrubando um a um todos os lugares comuns que se interpõem entre os jovens e a fantástica aventura que é a leitura.

Este é daqueles livros que pode e deve ser lido por todas as idades, dos 12 aos 82 anos. E todos terão motivo para um tempo útil e muito bem passado.



Por puro acaso li de seguida estes dois livros com muitos pontos de semelhança. Afonso Cruz (também magnífico ilustrador de livros para a infância) serve-se também de uma imaginação e de um humor notáveis para nos dar a história de um homem que dedica a sua vida a ler e morre com um problema cardíaco. O filho vai percorrer o caminho das leituras do pai para o encontrar.

Da Ilha do dr. Moreau de Wells, passa ao Médico e o Monstro de Stevenson, deste chega a Crime e Castigo de Dostoievsky, passa pelo Barão Trepador de Italo Calvino e pelo “Farenheit 451” de Ray Bradbury. Conversa e discute com as personagens, irrita-se com elas, vai aprendendo que a leitura nos questiona ou ilumina a vida, como acontece no caso da sua amizade pelo gordo Bombo ou no amor por Beatriz, ambos seus colegas.

Outro livro que devia ser obrigatório (se é que faz sentuido falar de livros obrigatórios…), construído com uma ironia notável e que constitui também uma magnífica lição sobre o supremo prazer da leitura.

domingo, 3 de outubro de 2010

Val McDermid - Um Eco Distante




Este é um policial absorvente, lê-se numa assentada, sem respirar. Val McDermid é uma escritora escocesa que foi jornalista, talvez por isso retracta tão bem um jornalismo mediático e sensacionalista cada vez mais comum e onde uma pessoas poderá ser acusado, nas primeiras páginas de um jornal, de um crime que não cometeu.
“Um Eco Distante” conta-nos a história de amizade de um grupo de quatro jovens universitários passado nos anos 70 numa pequena cidade Escocesa e que numa noitada de festa e de boémia encontram uma rapariga quase morta num atalho que costumavam fazer. Um dos jovens, estudante de medicina, tenta salvar a rapariga enquanto outro procura socorro de um patrulha da policia com quem tinham cruzado anteriormente. O facto dos jovens ficarem com o sangue da rapariga são levados a interrogatório policial e ficam na lista dos suspeitos, para a imprensa e consequentemente para o público são considerados culpados. Embora as relações de amizade fossem grandes, a pressão leva a quebrar alguma ligação e suspeitarem também uns dos outros. É interessante como a escritora faz-nos envolver no ambiente emotivo e psicológico de forma a nós compreendermos todas as suspeitas e todos os pontos de vista. O assassínio nunca não foi descoberto e as suspeitas irão continuam nestes quatro jovens. 25 anos mais tarde o caso é aberto pela policia local para com as novas formas de investigação forense e á luz das descobertas dobre o DNA tentarem encontrar o criminoso, no entanto, as provas desapareceram nos armazéns da policia. Surge na história um filho desconhecido da vitima muito interessado em vingar o assassinato da mãe e quem foi o assassino. Duas das testemunhas que encontraram a vitima (dois dos jovens universitários) são estranhamente e violentamente assassinados o que leva aos outros dois a procurarem saber o que aconteceu. O livro tem mais intriga, mas intriga que estimula a nossa inteligência, sensibilidade e criatividade e não a outra. Claro que o final é muito surpreendente.

Tal como Mankell e Stieg Larsson, Val McDermid dá-nos um policial intenso, dramático e emocionalmente rico. Consegue caracterizar uma imprensa muito formatada e instrumentalizada por interesses puramente economicistas. O seu valor também esta da forma como apresenta os problemas e vivencias da nossa época assim como os preconceitos e os estados de alma das personagens. Não se esquece dos pormenores e as descrições de um ambiente paisagístico da Escócia. Assim como o ambiente cultural dos anos setenta e na entrada deste século.
Alem deste livro de Val McDermid em Portugal está traduzido muitos outros que tenho como perspectiva de ler, entre eles o “O Canto das Sereias” que é considerado um excelente livro policial.
Uma série na TV “Wire in the Blood” também escrita pala autora está a ser um êxito no Reino Unido. 

sábado, 2 de outubro de 2010

GARCÍA MÁRQUEZ: AS HISTÓRIAS DO REALISMO MÁGICO



Esta crónica tem como finalidade dar notícia de uma obra de Gabriel García Marquez, “A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada”, publicada recentemente pela D. Quixote. Obra que agrupa seis contos e uma novela de um dos mais considerados autores da literatura da segunda metade do século XX. Textos escritos nos anos sessenta, princípios de setenta e considerados como exemplos perfeitos de uma corrente literária que se celebrizou sob a designação de realismo mágico.
Histórias em que a magia irrompe para além dos limites impostos pela realidade, aprofundando o significado dos actos mais triviais do quotidiano. O que confere um sentido simbólico à linguagem e a impregna de uma aura poética. Veja-se, como exemplo , o início do conto “A Última Viagem do Navio Fantasma”:
“Agora vão ver quem sou, disse para si mesmo, com o seu novo vozeirão de homem, muitos anos depois de ter visto pela primeira vez o transatlântico imenso, sem luzes e sem ruídos, que uma noite passou em frente da aldeia como um grande palácio desabitado, mais comprido que toda a aldeia e muito mais alto que a torre da sua igreja, e continuou a navegar no escuro até à cidade colonial fortificada contra os corsários do outro lado da baía, com o seu antigo porto negreiro e o farol giratório cujas lúgubres riscas de luz, de quinze em quinze segundos, tranfiguravam a aldeia num acampamento lunar de casas fosforecentes e ruas de desertos vulcânicos(...)”
Atente-se no caudal impetuoso da escrita, uma das características mais marcantes do realismo mágico em García Márquez. Outra das características é a temática das histórias, a assemelharem-se a lendas ou a sagas medievais, em que o Bem e o Mal , encarnados pelas personagens principais, são postos em confronto.



Mas nem todas as histórias deste livro estão subordinadas aos cânones estritos do realismo mágico. E estas, em minha opinião, não são os menos interessantes. É o caso de “Morte Constante para Além do Amor.” História que poderemos designar como se situando na fronteira do realismo mágico. Nela se relata a viagem do senador Onésimo Sánchez, em campanha eleitoral por terras de todos os compromissos, ao encontro do Amor e da Morte, que acaba por dar sentido à sua Vida, purificando-a, ao despojá-la do ruído que as vicissitudes sociais a vinham conspurcando, ao longo dos anos.
A aura poética a que me referi é um elemento central da última história ( a que dá o título à obra), transportando-a para um mundo surreal, em que o onírico ressitua personagens, conferindo-lhes uma realidade simbólica. Entre outros, veja-se o seguinte exemplo:
“ Dispunha-se a regressar à tenda quando viu Ulisses de pé, sozinho, no espaço vazio e escuro onde antes estivera a fila dos homens. Tinha uma aura irreal e parecia visível na penumbra graças ao fulgor próprio da beleza.
E tu – disse-lhe a avó - ,onde deixaste as asas?
Quem as tinha era o meu avô – respondeu Ulisses com naturalidade - , mas ninguém acredita.
A avó voltou a examiná-lo com uma atenção enfeitiçada. “Pois eu acredito, disse.”Amanhã vem com els postas”. Entrou na tenda e deixou Ulisses a arder no seu lugar”
Estamos, pois, perante uma obra situada no tempo, mas de uma força e de uma beleza que a faz ser de todos os tempos.