quinta-feira, 30 de abril de 2009

Manuel António Pina


Que maravilha a entrevista que deu à Publica de domingo passado. Entre as coisas que disse sublinhei algumas que me pareceram importantes. Apenas me delicio com estas palavras, são saborosas, pouco tenho que acrescentar ou a comentar, pois elas dizem tudo, pelo menos para mim.
"A palavra criar, pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança..." 
"As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas." 
"Não gosto de psicanalistas. Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que espreitem cá para dentro." 
"A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado." 
Quando era mais novo "imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus. (...) na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus." "De vez em quando, dava um soco na barriga, - ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos. - imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade."
"Vou contar-lhe um segredo (...): Eu escrevia com uma régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o bilhete de identidade [a fazer de régua] para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade."
"Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade."

terça-feira, 28 de abril de 2009

HISTÓRIA SECRETA DE UMA NOVELA



Na Feira do Livro de Lisboa de 2005, encontrei um livrinho de Vargas Llosa, "História Secreta de uma Novela", editado pela Assírio e Alvim, em 1973. Nessa obra, o autor descreve o processo de construção da sua novela, "A Casa Verde". Processo que se desenrolou entre 1962 e 1965 e, durante o qual, experiências, imagens, sensações foram sofrendo transformações graduais, de cujos mecanismos nem o próprio autor teve consciência. Enfim, um processo de secretas alquimizações, um repto para a capacidade de análise, de auto-análise de Vargas Llosa. E, assim, pouco a pouco, foram sendo descortinados alguns dos elementos constitutivos, algumas possíveis combinações daquele "puzzle".
Este mergulho no passado - no seu passado - é algo de fascinante: histórias várias, acontecidas em momentos e lugares diferentes, indiciam os mecanismos de sobreposição, de reinterpretação e de fusão, a que foram submetidas, para darem lugar a uma narrativa totalmente autónoma. O que só é possível pela palavra escrita (o mistério da palavra escrita), que confere uma outra realidade às histórias vividas - a realidade da narrativa literária. Estamos, pois, perante o fenómeno da criação literária, no qual o tempo (o tempo das memórias ou as memórias do tempo?) tem um papel decisivo. O que se esquece e o que se retém? Como se opera a selecção de imagens, de sensações? Porque é que o que estava esquecido - aparentemente esquecido - surge, imprevistamente, à consciência? Qual o fio condutor que atravessa o nosso não-consciente e permite associações do que não tinha qualquer ligação entre si? Porque é que a escrita é mais do que o escritor? Se o escritor é o depósito de vivências, de lugares, de situações - e de personagens -, a sua escrita é um processo verdadeiramente autónomo (que não respeita a ordem, a lógica da experiência pessoal), pelo qual ele - o autor - se redescobre, mas no qual não se reconhece. Enfim, uma história secreta, onde o autor é apenas um meio de que os deuses se servem para comunicar com os mortais? Se outra "explicação" não houver, talvez esta nos possa servir, o que já não será mau, pois, ao nada explicar, guarda, em si mesma, toda a beleza, todo o mistério de que, em caso algum, a criação literária pode prescindir.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

OS GIRASSÓIS CEGOS



Este é daqueles livros que abanam o leitor. Abanaram-me a mim, pelo menos. A ponto de em certos momentos passar pela tentação de desistir da leitura, não por aborrecimento como às vezes acontece, mas, ao contrário, pela extrema densidade e dureza da narrativa.

O livro reune 4 histórias do final da Guerra Civil de Espanha. 4 histórias de derrotas. 4 histórias que nos mostram que ninguém venceu a terrível guerra que partiu a Espanha em dois lados que se combateram sem quartel e que, ainda hoje, mantém de pé ódios e rancores, feridas inconsoladas, dores insuportáveis de lado a lado.

São 4 histórias sem quartel que evoluem numa terrível geografia do pavor. Histórias que, apouco e pouco, se vão entrecruzando e onde os personagens de uma aparecem noutra, mostrando que, se calhar, aquelas 4 histórias são apenas uma, a história de todas as derrotas de uma Espanha terrivelmente dilacerada.

A escrita é seca, o tempo é manipulado e corre para trás e para a frente, obrigando o leitor a uma atenção especial

Único livro publicado em vida por António Mendez, editor falecido há alguns anos, recebeu inúmeros prémios póstumos.

Têm aparecido na ficção espanhola as obras quase sempre dolorosas que fazem o balanço da Guerra Civil. Sabemos que estes balanços da memória não são fáceis quando ainda estão vivos alguns dos seus protagonistas.

Lembro alguns outros romances que li sobre a mesma temática:

"Os soldados de Salamina" de Javier Cercas

"O lápis do carpinteiro" de Manuel Rivas

"20 anos e um dia" de Jorge Semprún

De alguma maneira passa-se o mesmo com a nossa Guerra Colonial. Também, a pouco e pouco vão surgindo as memórias e as ficções que fazem um balanço doloroso e que só pode ser feito sobre um fio de lâmina particularmente aguçado.

Se em ambas as nações não se fez o ajuste de contas e de culpas, e se esse facto tanto pode ser considerado negativo, na medida em que os crimes ficam por nomear, como pode ser considerado positivo no sentido em que contorna o bordo das feridas e procura uma pacificação nos braços maternos da democracia.

O ajuste de contas, o grande mergulho na memória será feito, quiçá, com mais rigor na ficção do que na História.

Porque a ficção transporta uma verdade que está para além dos factos e que será porventura a verdade mais verdadeira.

É assutador apercebermo-nos do que foi a bárbara Cruzada cristã contra "los rojos". É assustador percebermos como os sonhos se desfizeram até fazer das pessoas fantasmas, sombras, restos de gente arrastando-se nas masmorras, nos esconderijos ou na morte da derrota.

"Os girassóis cegos" são arrebatadores e cada uma das suas 4 histórias deixa-nos à beira de um abismo de cortar a respiraçao, o abismo dos tempos que se seguiram ao final de uma guerra onde todos perderam, uns mais que outros e a própria Espanha perdeu acima de todos.

Roteiro lírico e sentimental da cidade do Rio de Janeiro e outros lugares por onde passou e se encantou o poeta



Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes (este é o subtítulo completo) foi o projecto de um livro que atravessou praticamente toda a vida adulta do poeta e que ficou inacabado quando da sua morte. Uma preciosidade para os que amam a poesia sensual e soalheira de um poeta que se confunde com a cidade que é neste livro tão carinhosamente descrita, cantada, recordada e biograficamente percorrida.

Felizmente, para o nosso deleite, amigos e colaboradores do poeta que nalguma fase estiveram envolvidos com o projecto, foram bem sucedidos em editar o manuscrito, que embora incompleto, foi publicado no Brasil em 1992, seis anos após a morte do poeta. Curiosamente, o facto ter permanecido inacabado parece ter reforçado uma das ideias centrais do projecto, nomeadamente a de que a cidade e os seus habitantes estão em contínua transformação e são melhor apreendidos através de uma obra aberta que não se compromete com contemplações estereotipadas. Na verdade, o livro permite ao leitor a oportunidade de vislumbrar duplamente o que tinha em mente o poeta através de breves textos introdutórios que servem de mote aos temas a desenvolver. Na elegante edição brasileira da editora Companhia das Letras, estes textos ocupam a página à esquerda e apresentam o poema associado que ocupa a página seguinte. O livro é ilustrado com sugestivas fotografias antigas e estas não deixam de cumprir o papel de conduzir o leitor a um estado de doce nostalgia.

A ternura que conduz o poeta no esforço de caracterização in vitro da cidade e da sua gente, é mais que evidente quando descreve o mítico habitante do Rio de Janeiro, o carioca:

“O que é ser carioca? É ter nascido no Rio de Janeiro. Sim, é claro, e também não. Não porque ser carioca é antes de tudo um estado de espírito. Ser carioca é uma definição de personalidade. Charles Chaplin é carioca. A princesa Margaret é carioca, e já o Townsend não é, Marilyn Monroe é dos seres mais cariocas que há na face da terra. Como cariocas são Orson Wells, dois Pablos: Picasso e Neruda, Louis Armstrong, Ilia Eherenburg, o príncipe Ali Khan e Marlene Dietrich. Porque ser carioca, mais ainda que ser parisiense, é sentir-se perfeitamente integrado com a sua cidade e o seu meio; é portar roupas como carioca; é saber das coisas antes que elas sejam ditas; é detestar trabalhar (mas trabalhar); é adorar flanar e bater papo no meio de milhões de compromissos; é acreditar que tudo se arranja (e arranja mesmo); … E a maior felicidade é que ao carioca foi dado para amar, desamar, exaltar, trair e ser escravo um outro ser cuja graça é indefinível: a mulher carioca. …”

Naturalmente, um livro desta natureza não tem qualquer fim possível. Pensava o poeta encerrá-lo com um poema de título, Réquiem Carioca. Contudo, este não foi escrito e ficamos apenas com uma magnífica declaração de intenções:

“O poeta, como todo homem sensível, não suporta despedidas. Das mulheres, sempre terminou por fugir, dissolvendo-as numa delicada massa de lembranças impenetráveis e imagens esparsas. Sabe que o homem será ultrapassado pela cidade. O poeta, não. Ele será o celebrante de um ofício derradeiro, em que a cidade será tragada pelo tempo e a poesia sobreviverá. No fim dos tempos, a cidade será apenas isso: poesia. Restará um roteiro lírico, sentimental e caudaloso, um testamento de amor que poderá ser lido como uma anunciação. O ofício dos mortos terá devorado o homem e sua cidade. A palavra ficará como testemunha e profecia.”

Ao conjunto de textos relativos à cidade do Rio de Janeiro, juntaram-se uns tantos outros sobre “outros lugares que encantaram o poeta”. São de particular interesse os que descrevem a experiência do poeta em Inglaterra e as de viagens a Paris no mesmo período e posteriormente.

Explica-nos o poeta que o ano passado em Inglaterra (e que não se prolongou devido à guerra) decorreu de ele ser o primeiro brasileiro a quem foi atribuída uma bolsa do Conselho Britânico a ser usufruída em Oxford, isto no ano de 1938 (aqui a nostalgia do poeta carioca cruza com a do autor que agora vos escreve).

Como não podia deixar de ser, a cidade luz é efusivamente cantada pelo poeta.


Orfeu B.



terça-feira, 21 de abril de 2009

FILIPA LEAL



Tento estar atento a tudo o que se publica em poesia. E tenho para mim que a poesia dos jovens poetas portugueses publicada nos últimos 10/15 anos é muito frágil. Tem uma tremenda falta de urgência e de ruptura, por um lado, e, por outro, uma óbvia incapacidade de inserção na fortíssima tradição lírica portuguesa.

Na babugem das novidades, os opinantes de serviço constroem, de quando em vez, alguns ídolos de ocasião. Pés de barro. E muitos destes incensados jovens depressa desaparecem.

Em poesia tal como em pintura, é preciso acompanhar a caminhada do artista para perceber se um poema, um livro, um quadro, são passos seguros de uma maratona ou apenas breves relâmpagos que atravessam o espaço para logo se apagarem.

Há tempo que venho a seguir bastante interessado a poesia da Filipa Leal. Três livros até agora. Parece-me uma voz segura. Limpa. E própria. Capaz mostrar as raízes de que parte sem deixar de construir a sua própria forma de cantar.

Falo de cantar de propósito. Porque poesia é canto. Música da língua. Por vezes clara como água a correr. Outras vezes secreta e misteriosa. Mas música. E muita da jovem poesia portuguesa dos últimos anos é afónica. E pior, ainda, roda á volta de uma dimensão prosaica e muito pobre.

Conheci recentemente a Filipa Leal no lançamento deste seu último livro que nos traz um belo poema repartido numa série de pequenas paragens. É o seu texto mais antigo. Um texto para ler em voz alta. Parafraseando Fernando Pessoa, a princípio, este texto estranha-se e depois entranha-se. É um texto profundamente feminino, delicado e envolvente que nos leva em círculos lentos num voo solene e branco sobre a condição de ser mulher.

Filipa Leal é uma pessoa-poeta que voa e acredito que voará longe. E não vale a pena falar muito mais e fazer altas teorias acerca da sua poesia. A arte que precisa de muitas explicações é pasto bom para o negócio. E eu cá hei-de viver a gostar ou não gostar mas sempre intensamente. E hei-de morrer "sem jeito para o negócio", como dizia o Cesariny sobre o Mário Sá-Carneiro.

domingo, 19 de abril de 2009

HAIKU, HAIKAI




Haiku em Portugal, haikai no Brasil, para designar a mesma forma poética, que remonta ao século XII, no Japão, e que, a partir do século XIX, se estende por diversos países e influencia diferentes culturas literárias. Em Portugal, tem tido cultores de nomeada, como Venceslau de Morais e Camilo Pessanha, em finais do século XIX, inícios de XX, e, na actualidade, Eugénio de Andrade, Albano Martins, Casimiro de Brito, Herberto Helder.
Estes e outros dados vêm expressos na “Apresentação” que o poeta David Rodrigues faz do seu livro “Estações Sentidas – 111 Haiku”, publicado na editora Indícios de Oiro, em 2007. Ainda segundo o mesmo autor, “talvez a sedução do haiku seja o seu carácter conciso. Ainda que sem uma fórmula rígida, espera-se que o haiku tenha aproximadamente cinco sílabas no primeiro verso, sete no segundo e, de novo, cinco no terceiro”. Segundo o poeta brasileiro Paulo Franchetti, “haikai não é síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo de palavras. É antes a arte de, com o máximo, dizer o suficiente”. Um mínimo que se expressa, como dissemos, numa composição de três versos, que, segundo a tradição japonesa, tem por tema a Natureza, os seus ciclos, as suas múltiplas expressões.
Com o decorrer dos anos, a temática do natural foi dando lugar a outras temáticas, alargando-se às mais variadas manifestações humanas e sociais.
Ora, estas considerações vêm a propósito de uma nova obra de David Rodrigues, publicada em finais de 2008, na editora Corpos: “Respirar – 101 haiku”. “A nossa vida – diz-nos David Rodrigues – passa-se entre uma inspiração e uma expiração. Desde a primeira vez que inspiramos o ar do mundo, repetimos durante toda a vida este movimento vital pelo menos dez vezes por minuto. O último acto da nossa vida é uma expiração, como que devolvendo ao mundo o ar que lhe inspirámos quando nascemos”. Assim, o livro divide-se, fundamentalmente, em dois grandes capítulos: “Inspirar” e “Expirar”. No primeiro, agrupam-se, segundo o autor, formas mais tradicionais, cujo sentido está, “grosso modo”, sintetizado na expressão “da Natureza para mim”. Citemos alguns exemplos:

“como mão de amigo
o Sol de Inverno
amorna os ombros”
ou:

“inspiro com a Terra
quando o vento atravessa
os carvalhos”

ou, ainda:

“no Carnaval
a amendoeira vestiu-se
de neve”

No segundo capítulo, “Expirar”, agrupam-se textos de forte centração no autor e cujo sentido se poderá condensar na frase: “de mim para a Natureza”. Eis alguns exemplos:

“como cascas de árvore
as memórias flutuam
nas ondas da música”

ou:

“quando o Sol
entra em casa pela manhã
saio à sua procura”

David Rodrigues acrescenta um último capítulo, que denominou de “Transpirar”, no qual integra poemas de carácter jocoso e erótico, como é o que a seguir se transcreve:

“não há palavras
que segurem os meus olhos –
caem para o teu peito”

Estamos, pois, perante um poeta de nítida inspiração lírica, que se expressa de uma forma original e que revela uma consciência literária que não é habitual entre os nossos poetas. A divisão do seu livro nos três capítulos que mencionei é prova provada do que afirmei e denuncia uma postura reflexiva e crítica sobre a sua própria escrita, o que não é, de modo algum, um dos seus méritos menores.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O TEMPO DA ESCUTA






Jorge Semprun, em entrevista publicada na revista "Le Magazine Littéraire", aborda um tema extremamente interessante, o do "décalage", tantas vezes existente, entre o tempo da escrita de uma obra literária e o da sua "escuta", por parte do público leitor. E dá um exemplo: é habitual afirmar-se que as obras sobre os campos de concentração da Alemanha nazista só começaram a aparecer bastante tarde, cerca de uma geração após o termo da Grande Guerra. Mas, em sua opinião, tal não é exacto, pois, alguns dos textos mais significativos (textos de Rousset, de Antelme, até de Primo Levi) apareceram pouco depois da extinção dessas instituições à morte consagradas. O que aconteceu foi outra coisa: não tiveram eco na opinião pública. O seu "tempo da escuta" ainda não tinha chegado. Foi preciso conhecerem-se os "goulags" soviéticos (e sobre eles se começasse a escrever), para que essas obras fossem devidamente recepcionadas - o que, evidentemente, levou ao aparecimento de uma extensa literatura sobre o tema.
Ora, o que aconteceu com a literatura sobre o Holocausto, também se tem dado com muitas outras obras, de géneros e assuntos diversíssimos, aquando da sua publicação. Quantas vezes tem sido preciso esperar a vinda de um outro tempo para que fossem minimamente valorizadas! E, acrescenta Semprun, este desfasamento entre o tempo da escrita e o tempo da sua recepção ainda se torna mais evidente quando se trata de obras que têm a memória como suporte. Recuperar o passado (o passado recente), por um exercício de memória de quem foi sua testemunha, é algo de complexo, que nem sempre se pode fazer de um modo directo ou imediato.
E, aqui, coloca-se uma outra questão (embora interligada com a primeira), a da literatura das memórias. Qual o seu papel, qual a sua razão de ser? Além das razões relativas à sociedade, na qual e para a qual o livro foi escrito, outras haverá, referentes ao autor, enquanto indivíduo engravidado pelo seu passado. E, acerca do efeito do texto memorialista no seu autor, Semprun acrescenta: "O seu efeito é duplo e contraditório. Por um lado, ajuda a apaziguar a memória, estruturando-a; por outro lado, reavive-a." E cita o seu caso: após a publicação da sua primeira obra sobre os campos da morte, "A Grande Viagem", os seus escritos sobre o tema não pararam mais. Não, o assunto não estava esgotado, como supôs inicialmente, pelo contrário, quanto mais dizia, mais tinha para dizer. Uma espécie de auto-estimulação da memória, que lhe permitiu, entre outras coisas, ter a certeza de que todo esse pesadelo, em que esteve mergulhado, não tinha sido um sonho mau, mas uma realidade, a mais terrível das realidades que o Homem pode viver - que não pode, que não deve ser esquecida.
Também todos nós, os que temos escrito histórias sobre o nosso passado, experimentamos o que Semprun tão bem caracterizou: por um lado, a dificuldade em dar início à escrita sobre esse passado (mormente se ele é doloroso); por outro, o extravasamento do caudal da memória, quando se abre uma pequena brecha no dique que o retinha. Mas, para além do que foi dito, algo se impõe aos autores que fazem da sua memória histórica a fonte da sua escrita: a necessidade de saberem aguardar o tempo propício à recepção da sua obra - o que nem sempre é fácil...

domingo, 12 de abril de 2009

"MEMÓRIAS DE BRANCA DIAS" de MIGUEL REAL



Acabo de ler pela 2ª vez estas “Memórias de Branca Dias”. E a emoção foi a mesma ou maior porque agora alimentada por uma conversa recente com o autor sobre a maneira como este livro surgiu.

Se à primeira leitura apenas me movia o prazer da leitura, desta vez tinha a intenção de escrever, isto é, estive a ler reflectindo simultaneamente sobre a forma de transmitir a minha emoção. E este caminho da leitura para a escrita é um caminho para dentro e para o fundo que procura consolidar uma forma de ler sem qualquer intenção de julgar ou fazer aquilo a que se chama crítica, mas dar mais espessura ao trabalho do coração.

Livro editado pela Temas & Debates e de momento infelizmente esgotado, as “Memórias de Branca Dias” são um brilhante exercício de linguagem e de recriação do ambiente do Brasil no séc XVI. Mais do que isso, é o desenho firme de uma personagem extraordinária, a Branca Dias rude, dura, forte, sensual, criada a partir de pouquíssimos elementos históricos.

Romance histórico, vai para além disso, justamente pelo exercício de construção dessa personagem fortíssima que não esquecerei por certo e onde estão presentes traços de várias mulheres que conheci.

Há por ali ressonâncias minhotas, a genica das mulheres do Minho cantadas pelo Zeca Afonso ou retratadas por Camilo Castelo Branco. Mas não só, digo eu. Há também a raiz judaica, a luta pela manutenção das antiquíssimas tradições, o confronto real, prometido ou receado, com a Inquisição. A relação justa e suficiente com os filhos, com o parir. Branca Dias põe-nos cá fora e dá-lhes meios para andar. E depois, siga a dança, que a vida é o que é e não o que nós gostávamos que fosse.

O tratamento através da ficção das raízes judaicas da história e da cultura portuguesa parece-me bem importante para tirar da sombra algo que ainda hoje para muitos se reveste de um carácter algo críptico.

Outro aspecto importante é o da relação com o outro, o índio e o negro que Miguel Real trata com o respeito pela alteridade mas sem o elogio politicamente correcto do bom selvagem. Nesse sentido, a descrição das cenas de canibalismo é seca e fala-nos de rituais comuns sem aquela adjectivação pomposa que alguns autores usam e abusam para espicaçar a emoção dos seus leitores.

Este livro é um daqueles casos em que há matéria para mais história. Ou seja, há matéria que permitiria desdobrar a narrativa em rodriguinhos e muitas historietas. No entanto, o autor exerce um exercício de contenção notável. Escreve o suficiente e o necessário. Através da escrita, abre-nos uma janela para um passado pouco conhecido e para aquela personagem fabulosa que é Branca Dias Mas o entretenimento não é o seu primeiro objectivo e, por isso, Miguel Real honra o seu ofício com uma discilina narrativa pouco comum na nossa mais recente literatura.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

CRÓNICA DA VIAGEM D'EL-REI SALOMÃO




É sempre com alguma dificuldade que inicio a leitura de um novo livro de um dos nossos monstros sagrados, seja ele o José Saramago, seja o António Lobo Antunes. Dificuldade decorrente do medo de sofrer uma desilusão. Ou porque a obra não esteja ao nível das anteriores ou porque não acrescente nada ao que escrito já foi – em suma, que seja mais do mesmo. E foi o que me aconteceu com “A Viagem do Elefante” de José Saramago (edição da Caminho). Mas nenhum destes receios se confirmou. A última obra de Saramago é um pastiche delicioso das crónicas tradicionais portuguesas. Uma obra plena de ironia, por vezes sarcástica, em parte resultante da utilização contrastada de linguagem de hoje com uma linguagem (e uma narrativa) tradicional. Obra que também se poderia intitular “Crónica da Viagem d’El-Rei Salomão” ou, talvez, “Crónica da Viagem do Elefante Salomão e do seu Cornaca Subhro”, pois, na verdade, não estamos perante um romance, uma novela ou um conto, mas de uma crónica de viagem (por vezes, quase de uma anti-viagem), com um toque cervantino, em que as figuras do Sancho e do Quixote tanto se aproximam dos fazeres e dos sentires do cornaca Subhro, como se expressam nos comentários do autor. E é neste entrelaçamento de figuras e papéis que reside um dos seus encantos maiores.
De salientar, ainda, a linguagem, plena de subtilidades, servida por um conjunto de artifícios (utilização do lugar comum, obsessão pela precisão, pelo pormenor), o que confere ao texto uma parente banalidade do discurso, suporte da finíssima ironia (a roçar o sarcasmo) que atravessa a obra e lhe confere um carácter de crítica social e humana. Mas que também abre a porta a uma perspectiva de desconstrução da linguagem, como o autor nos chama a atenção nas páginas 175/6:

“Reconheça-se, já agora, que um certo tom irónico e displicente introduzido nestas páginas de cada vez que da áustria e seus naturais tivemos de falar, não só foi agressivo, como claramente injusto. Não que fosse essa a intenção nossa, mas, já sabemos que, nestas coisas da escrita, não é raro que uma palavra puxe por outra só pelo bem que soam juntas, assim muitas vezes se sacrificando o respeito à leviandade, à ética à estética, se cabem num discurso como este tão solenes conceitos, e ainda por cima sem proveito para ninguém. Por essas e por outras é que, quase sem darmos por isso, vamos arranjando tantos inimigos na vida.”

Esta desmontagem da linguagem, que também é uma tentativa de desconstrução da escrita, evidente no texto que se transcreve, está implícita em muitas outras passagens e constitui um repto à inteligência do leitor.
Por tudo isto e por algo mais, que compete a cada leitor ir descobrindo, sou de opinião que “A Viagem do Elefante” de José Saramago é uma obra que deve ser lida vagarosa, saboreadamente. Uma obra que, com o correr dos anos, irá ganhando um lugar de relevo na produção literária do autor.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

MISÉRIA E GRANDEZA DO AMOR DE BENEDITA



Um gozo delicioso. Um grande forrobodó para o leitor. Óbvia influência de Jorge Amado, até pela zona geográfica em que ambos se enquadram, o Recôncavo baiano.

A linguagem é barroca, tropical, magnificamente excessiva, carregada de ironia e sarcasmo. Pode mesmo dizer-se que se trata de um pequeno tratado de cinismo pela forma safada e muito exposta como o autor, sem se despir de óbvia ternura, consegue desmascarar os sucessivos podres dos habitantes da Ilha de Itaparica, desde a puta mais reles (coisa que aliás não existe entre as Itaparicanas) até ao próprio padre, modelo de rara depravação e poucavergonhice.

A história é quase só uma anedota. O importante é a linguagem. Poderíamos continuar a visitar esta sequência quase interminável de personagens deliciosas sem ter outro desejo que não o de nos abandonar aos apartes, comentários e desvios que fazem da escrita do autor uma verdadeira pérola.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

TRADUTORES E EDITORES

Um dos trabalhos literários para que não tenho qualquer competência é o da tradução. E tenho pena, pois sempre desejei verter para a minha língua o que escrito está numa outra. Por isso, admiro, e muito, aqueles que fazem da tradução uma profissão. Admiro os bons e, até os menos bons, pois sei que a todos eles se colocam as mesmas dificuldades. Ora, estou a recordar-me de um artigo, mais precisamente, de uma entrevista, em "El País", na qual Ester Turquets, proprietária e directora da editora RqR, nos fala do seu livro "Confesiones de una editora poco mentirosa", obra em que se analisam os problemas de uma pequena casa editorial. Entre eles, o que se passa com os tradutores: "Tradutores supostamente experimentados, tradutores de renome, não conhecem o idioma de que traduzem, nem aquele para que traduzem; ignoram palavras, palavras que não se dão ao trabalho de procurar no mais vulgar dos dicionários (...), põem na negativa frases que estavam na forma positiva, ou inversamente; saltam parágrafos inteiros... E, quanto pior é o tradutor, mais se obstina em corrigir o autor, em melhorar o texto original. Explica o que o autor não explica, altera uma pontuação que considera insólita, uma adjectivação audaciosa, para outras de cariz adocicado. E opta por traduções (que poderiam ser perfeitamente literais) eivadas de expressões castiças (...)" Mas como o pequeno editor não dispõe de meios para mandar fazer outra tradução, nem para pagar a um revisor, ou deixa sair a obra como está ou... leva-a para casa, para a ir corrigindo!
Se esta é a situação em Espanha, o que não acontecerá em Portugal, com todas as dificuldades editoriais que conhecemos. O que explica o absurdo de muitos textos traduzidos, que põem à prova a imaginação do leitor, obrigando-o a reinventar o sentido do que vai lendo... Uma forma sofisticada de levar o leitor a ser o autor do "seu" próprio texto? Se assim for, maior será ainda a minha admiração por esses "tradutores, traidores"…