quarta-feira, 22 de abril de 2015

Contos hieroglíficos


O reino de Larbidel situava-se antigamente no sopé da imponente montanha da Hirgonquiu. Os geógrafos, pouco habilitados para fazer comparações deste género, diziam que o reino se assemelhava a uma bola de futebol prestes a levar um valente pontapé. E foi isso mesmo que aconteceu, já que a montanha pontapeou o reino para dentro do oceano e nunca mais se ouviu falar de tal sítio. 

Um dia, uma jovem princesa subiu à montanha para apanhar ovos de cabra, cujas claras são excelentes para fazer desaparecer sardas. Ovos de cabra! — Sim: os naturalistas afirmam que todos os seres são concebidos em ovos. As cabras de Hirgonquiu podiam muito bem ser ovíparas e pôr ovos para chocarem ao sol. Esta é a minha suposição, independentemente de acreditar nela ou não. Estou aliás, disposto a contestar e a insultar qualquer pessoa que se oponha à minha hipótese. Seria o cúmulo, se homens eruditos fossem obrigados a acreditar naquilo que afirmam!

Horace Walpole

Há autores cuja característica fundamental é a de serem singulares e de terem uma clarividência surpreendentemente intemporal. É indubitavelmente o caso de Walpole, que através desta breve colectânea de seis contos “hieroglíficos”, nos regala com deliciosas distorções, com narrativas absurdas e factos surreais, todos estes invariavelmente impregnados de um humor “non sense”, quinta-essencialmente britânico. 

Escritos antes de 1785, os textos desta rica colectânea só foram publicados depois da morte do autor, em 1797. Mas para além da sua precocidade histórica, os textos de Walpole são de uma contemporaneidade desconcertante. Poder-se-ia argumentar que esta actualidade é fundamentalmente devida à constância do absurdo nas convenções sociais e das situações políticas, mas, na minha opinião, é também muito devida à imaginação delirante e a genialidade do seu autor. 

Os cenários destes contos são tão variados como a fertilidade imaginativa de Walpole e passam pelas Arábias, China, Espanha, Irlanda e Veneza, e foram, apesar de subversivos com relação ao estilo e aos conteúdos literários do seu tempo, um grande sucesso. Outra peculiaridade desta reunião de textos e que só foram publicados postumamente, pois em vida o autor imprimiu apenas sete cópias para a leitura de amigos (apesar da intenção declarada no prefácio de publicar 100 mil cópias!). 

Horace Walpole, que nasceu em 1717, teve uma longa vida e, como o pai, Robert Walpole, que foi primeiro-ministro de Inglaterra, seguiu a carreira política. Porém, foi através da literatura que se imortalizou. O seu O Castelo de Otranto (que eu não li), publicado em  1764, é considerado o marco inicial do movimento gótico europeu. Descrito pelos críticos como um “romance irracional”, a associação dos textos de Walpole aos do surrealismo e aos da modernidade literária é inevitável. A obra de Walpole compreende naturalmente, cartas e discursos políticos, mas também ensaios sobre jardinagem, e previsivelmente, histórias anedóticas, artigos polémicos, memórias forjadas, escritos que suscitaram invariavelmente numerosas polémicas.

Os Contos hieroglíficos são uma preciosidade literária e proporcionam uma leitura extremamente divertida e agradável.  

Orfeu B.




sexta-feira, 17 de abril de 2015

PESSOA LISBOA E OS OUTROS



Nos últimos tempos li duas excelentes publicações de poetas colombianos. A primeira uma antologia da poesia colombiana, a segunda uma colectânea de Juan Manuel Roca, ambos magnificamente traduzidos por Nuno Júdice.
Já ouvi falar e quero ler depressa "Troco a minha vida por candeeiros velhos", creio que de Jeronimo Pizarro, com tradução de Gastão Cruz e publicado pela Abysmo.

Parece-me óbvio que as autoridades colombianas (tão ao contrário das portuguesas) se preocupam em divulgar a sua literatura e, neste caso, a sua poesia.

O entusiasmo que senti ao ler "OS CINCO ENTERROS DE PESSOA" de Juan Manuel Roca começou na apresentação de Germán Santamaría Barragán, Embaixador da Colômbia em Portugal.

"Portugal é a literatura, e o seu idioma é talvez a língua da terra onde melhor soa a lírica da poesia. Portugal é o país contemporâneo onde mais se publica, e se lêem livros de poesia e onde há mais poetas por metro quadrado, e nas ruas de Lisboa a poesia está presente em cada livraria, nas casas de Fado, na roupa estendida ao colorido sol das janelas em cada calçada que trepa por labirintos de assombro...
A silhueta e o fantasma de Fernando Pessoa , um dos maiores poetas da literatura universal de todos os tempos, sente-se respira-se vive-se, e até assusta nesta cidade que é como o umbral mesmo de um paraíso urbano perdido para o homem e eis porque aqui a poesia encontra a sua perfeita morada para existir a partir da própria vida quotidiana dos seres que a habitam."

Juan Manuel Roca traz nos seus versos um sabor latino-americano maravilhosamente excessivo, largo e luminoso, sensual, carregando aos ombros a dignidade da palavra e a forma como apresenta o sabor dos frutos e da almas . É uma poesia que fala da dignidade dos homens ou do amor, que nos faz correr em círculo e nos deixa de súbito suspensos na explosão da palavra.

"Mas nenhum punhal de sobra tão cortante
Como a longa ausência do teu corpo."

Com ressonância de alguns versos de Vallejo, Neruda e outros, esta sensualidade derrama-se numa música de que a nossa poesia, infelizmente, tem andado tão afastada.

Juan Manuel Roca escreve poesia para mastigar, para cantar; poesia para a voz, para a partilha com o leitores, com os leitores que nele também se lembram de que uma vez tiveram "o sol na cabeça", "Os que sempre hão-se ser/ Mãe/ eu próprio corpo de delito"

terça-feira, 14 de abril de 2015

As bibliotecas do futuro

Octave Uzanne (1851-1931) é para a maioria dos leitores um autor desconhecido, apesar de ter sido um dos mais importantes e interessantes homens de letras e publicistas franceses dos finais do século XIX e da primeira metade do século XX. Para os bibliófilos, contudo, é uma figura incontornável, pelas dezenas de textos que publicou sobre o livro e sobretudo sobre a figura excêntrica, maníaca e enigmática do bibliómano, sendo ele próprio um dos maiores representantes da espécie.





aqui foi comentado pelo leitor Orfeu B. um dos seus textos mais importantes sobre a temática: O Fim dos Livros, um texto breve, publicado originalmente em inglês ("The end of books"), no número 2 da Scribner's Magazine e no volume Contes pour les bibliophiles, ambos de 1894.






imagens retiradas de
http://www.octaveuzanne.com/

Neste, o autor prevê que o futuro do livro será aquilo a que hoje chamamos audiolivro:


    "Não acredito (...) que a invenção de Gutenberg possa não cair, mais ou menos proximamente, em desuso (...).
     (...) os nossos descendentes já não confiarão as suas obras a este processo bastante velhinho e na realidade fácil de substituir pela fotografia, que está ainda nos seus inícios.
     O fonógrafo destruirá provavelmente a tipografia. Os nossos olhos são feitos para ver e reflectir as belezas da natureza e não para serem usados na leitura de textos (...)
     Os nossos ouvidos, pelo contrário, são chamados a dar a sua contribuição com menos frequência.
      (...) Nessa altura, que está bastante próxima, já não se chamará escritores aos homens de letras, mas antes narradores; o gosto pelo estilo e pelas frases pomposamente adornadas perder-se-á (...)”

(tradução de Jacinta Gomes, na excelente edição da Palimpsesto)







A leitura do pequeno conto pode ser complementada por um outro texto do mesmo autor, publicado em 1901 na Revue Franco-Allemande, intitulado “Les bibliothèques de l'avenir" (tanto quanto sei, ainda sem tradução portuguesa). É um texto ainda mais curto, sem o recorte literário do anterior, um pouco mais profundo e filosófico, mas igualmente pleno de humor e de ironia.

Uzanne começa por fazer uma crítica aos bibliófilos do seu tempo, por não se preocuparem nem se inquietarem com o futuro das suas bibliotecas. Vivem alegre e festivamente com os seus livros, como nos braços de uma amante, sem pensarem no acolhimento que estes possam vir a ter no futuro.

Mas o tema central são as bibliotecas do futuro, que Uzanne prevê que venham a ser constituídas por uma escolha muito criteriosa de livros, excluindo romances e textos de teatro:

“Os romances, esses enganadores da imaginação, esses inúteis gastadores de tempo serão proscritos para sempre, assim como os textos de teatro, que poderemos continuar a ver representados, mas que jamais voltarão a ser lidos.”

As bibliotecas dos bibliófilos do futuro serão um imenso “directory” de livros, constituído por dicionários, enciclopédias condensadas, compêndios, glossários de palavras e de coisas, obras de referência e índices de todos os géneros. Os livros serão bem encadernados e marcados com símbolos que permitam a sua rápida identificação.

Os homens de letras pertencerão a uma espécie de clubes ou círculos, onde os livros que constam dessas obras de referência podem ser lidos nos seus salões ou ser requisitados para leitura domiciliária através do telefone.

Os livros da época de Uzanne não serão mais do que pesos-mortos para as gerações pragmáticas do futuro, que se livrarão deles para prosseguirem a sua rápida marcha em frente.

A leitura de “Les bibliothèques de l’avenir” não só complementa (por vezes até contradiz) O Fim dos Livros, mas também nos diverte quando verificamos se as previsões se aproximam ou afastam da realidade do nosso tempo. Ambos os textos primam pela ironia, pois, como em todas as utopias, a previsão do futuro diz-nos provavelmente mais sobre as aspirações, receios e mundividência de quem escreve do que sobre o mundo que profetiza.

Para ler o texto de Uzanne em formato pdf:

https://www.hightail.com/download/UVJnYUo4ckk5eFVsYzhUQw

Para consultar o site de Bertrand Hugonnard-Roche, o maior especialista actual em Octave Uzanne:

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Boa Noite, Senhor Soares



O senhor Soares percorre as áleas do Jardim da Estrela, o qual se esconde como um fantasma de um parque antigo, dos séculos antes do descontentamento da alma. E enquanto os cisnes deslizam no espelho de água o senhor Soares, contemplando-os com olhos semifechados por trás das lentes, magica numa quermesse em que participam columbinas e pierrots e arlequins. Observa a criança que apanhou um tabefe da mãe por ter desejado mais um caramelo, e compadece-se do choro desabalado, vendo nele a metáfora da condição de todos nós, ambiciosos de uma cor inatingível, e do paladar que lhe corresponde. O senhor Soares repara agora no soldado que passa o braço nos ombros da criadita no banco que fica à beira  do canteiro de gladíolos, e inventa o teor das cartas que os dois se trocam ao longo das semanas, e nas quais se tratam por “meu adorado amor”, “minha vida”, e “riqueza do meu coração”. O senhor Soares leva o sapatos ligeiramente cambados, a dobra das calças surradas pelo pó, e o cabelo ao léu, mal lambido pela brilhantina. Aproxima-se de uma rapariga de expressão azougada, uma dessas moreninhas que gostam de exteriorizar uma certa malícia, simbolizada pela vírgula de penteado que se lhes cola à testa. 

E tudo isto se mistura na minha visão, não sei bem porquê, com um romance ancestral, em  cujas linhas intervêm Hamlet e Ofélia, heróis do grande Shakespeare, que só conheço de ouvir falar. A mulher, tendo escorraçado o cão para o quintal, e dado de comer às galinhas e rolas, passaria agora na cozinha, remexendo nas cafeteiras do pequeno almoço, e gemendo por causa das artroses que pela manhã, e enquanto os joelhos se lhe não desprendem, a afligem mais do que nunca. O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela, passeado a par da jovem que o esperava, mas de atenção posta mais nos carreirinhos das formigas do que nas pupilas negras daquela que palra sem cessar, acho eu que o metro da renda de Malines, ou sobre a audácia dos trapezistas do Circo Price que veio uma vez a Lisboa. E é então que principio a resvalar em definitivo para o sono, quando a claridade me entra pelas frinchas da persiana, e o senhor Soares se dirige a um país muito distante que no meu torpor se chama “Mar Português”. Atrás dele segue uma fosca multidão, e a primeira individualidade que nela distingo é aquele famoso doutor Reis, marchando muito erecto, com um livro aberto na mão direita, e um lápis em riste na mão esquerda, e que vai contando as sílabas de um verso, ou dividindo as orações de uma estrofe.

Mário Cláudio


Numa célebre carta a Casais Monteiro, Fernando Pessoa define o autor do Livro do Desassossego: «O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.»

Há muito, eu acredito que há uma infinidade de Livros do Desassossego. As razões que me levam a pensar desta forma foram expostas neste mesmo blog num breve texto. Mas se esta multiplicidade pode sugerir uma diluição do estilo do autor e uma dificuldade acrescida na fixação da sua unicidade, a leitura desta deliciosa novela convenceu-me que, depois da fonte, o Livro do Desassossego, o texto de Mário Cláudio é o que melhor situa o semi-heterónimo de Fernando Pessoa no contexto da cultura portuguesa. A novela de Mário Cláudio é uma radiografia da alma portuguesa, nas suas fraquezas e na sua grandeza. Mário Cláudio captura, com grande argúcia, as minudências e a essência dos tempos de Fernando Pessoa, demonstrando, por contraste, a singularidade da sua obra face às limitações materiais e intelectuais da sua vida quotidiana.   

Fundamentando-se no Livro do Desassossego, Mário Cláudio recria o guarda-livros Bernardo Soares através de um engenhoso artifício. Utiliza como narrador o moço de escritório - António da Silva Felício — um jovem recém chegado da província que se emprega, na função de aprendiz de caixeiro de escritório, no armazém de venda a retalho situado na Rua dos Douradores, onde o senhor Soares é tradutor. Mas na verdade, também o artifício esconde uma surpresa final: o autor do texto que exara os tempos de escritório de António da Silva Felício, é na verdade um escritor contratado, que não se coíbe de imprimir o seu estilo e as suas convicções à narrativa do seu contratante!   

Boa Noite, Senhor Soares, é uma novela de grande densidade humana e de grande mestria literária. Nela o leitor encontrará, para além da prazeirosa leitura, uma reinvenção extraordinária da vida criativa de um dos mais enigmáticos autores da língua portuguesa.

Orfeu B.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?






“-Como esta casa deve ser triste às três horas da tarde.”

A frase, convocada pela memória da personagem Beatriz logo no início do livro, é um dos pontos de partida deste romance, uma memória da juventude do autor e também uma citação do seu primeiro romance, Memória de Elefante. Assim se define uma das temáticas centrais: a passagem do tempo e a memória. Neste romance tudo se orienta e tudo se constrói a partir da morte da mãe, origem do labirinto das memórias individuais de uma vida familiar, que vão ser a sua substância narrativa.

Aquele domingo de Páscoa, 23 de Março, às 6 horas da tarde, momento da morte, sorte suprema de um romance estruturado como uma corrida de touros, é o pretexto para que o marido, os filhos e a criada Mercília se assumam como vozes narrativas de cada um dos quatro andamentos das cinco sortes tauromáquicas da corrida, que podem ser também as da vida e as da escrita.

Na linha de uma temática recorrente na obra de ALA, desde, pelo menos, Auto dos Danados, o romance revela-nos uma família desagregada e disfuncional, onde as relações e manifestações de ternura e afecto são sempre difíceis ou inexistentes, e onde as personagens procuram, na alienação ou no delírio, mitigar o deserto da sua dificuldade emocional e da carência que dela decorre.

Neste romance encontramos uns pais distantes, cujo afecto pelos filhos é sempre recusado ou apenas concedido em breves momentos, como aquele, real ou imaginário, em que o pai convida Beatriz a subir ao estribo do cavalo e a leva junto ao mar. É nesse espaço de fronteira para um limiar da imaginação que esta jura ter visto a sombra dos cavalos, memória eufórica e insistentemente convocada por esta personagem, que abre e fecha o romance.

A mãe, cuja morte se aproxima, como que delega em Mercília o amor e a proximidade que sempre recusou aos filhos. Mercília, afinal alter ego maternal que todos amam e simultaneamente desprezam ou rejeitam, única fonte de afecto que a todos protege e cujos pecados encobre. Mercília e o seu álbum de fotografias, que revela um surpreendente passado familiar que se vai entrelaçando no presente. Mercília, revelada tia por esse passado, e que, após a morte da mãe, tem também sofre a sua sorte suprema, ao ser expulsa por Francisco.

“-Onde é o passeio dona Mercília?
-Longe”

O afecto é procurado nos espaços de alienação exteriores à quinta, exteriores à terra, à mãe, à família. É procurado por Ana, no baldio onde se relaciona com o traficante de heroína que a explora e maltrata:

“-Quem é o teu dono?”

Também é procurado por João, homossexual e pedófilo, no parque em que transacciona o amor com os meninos, único lugar em que parece conseguir exprimir a dádiva do amor:

“-Quanto custas menino?”

Pelo pai, sempre ausente nos trabalhos da terra, pelos quais tenta sublimar a relação falhada com a mulher e que se vai perdendo e arruinando no jogo, numa repetição constante e obsessiva da aposta no número dezassete, um número que, por sempre falhar, parece não existir na roleta daquele casino, espaço de sortes adversas em que vai delapidando a fortuna e a vida.

O afecto é ainda procurado por Francisco, que sofre a obsessão da avareza e da vingança, e que tudo faz ilicitamente para ficar com os bens da família, possuído por uma espécie de racionalidade materialista de quem se sente injustiçado e que tudo rejeita e odeia nessa cegueira da carência:

“-Não tenho pais.”

Por fim, a personagem Rita, a quem a lua sorria, que atravessa o romance devastada pelo cancro, como um espectro nas vozes dos irmãos. Irmãos que paradoxalmente, para além da enunciação desta condição, parecem nada ter de fraterno, vivendo num universo de tensão, repulsa e raiva, ainda que pontualmente marcado por memórias de momentos intensos de alguma ternura.

A quinta onde vivem é o lugar matricial do romance, lugar amado e rejeitado, por oposição à cidade ou à casa da cidade, e que contamina a todo o momento um discurso povoado de elementos telúricos, onde os touros e os cavalos, junto às azinheiras, são tantas vezes metáfora e metonímia de medos e fantasmas.

O discurso exerce-se na técnica polifónica, magistralmente reelaborada por ALA, onde múltiplas vozes se entretecem à volta de uma dominante, que configuram, muitas vezes, apenas ecos distantes da recordação de situações ou objectos. Uma polifonia em que a voz do autor-narrador também emerge, exprimindo as suas dúvidas ou hesitações criativas que muitas vezes transfere para a consciência das personagens de cujos destinos é artífice.

As frases são reiteradas, numa técnica habitual em ALA, como que figurações de temas com inúmeras variações ou modulações de tonalidade, formando uma filigrana narrativa depurada segmento a segmento, palavra a palavra, por vezes mesmo letra a letra, num exercício de composição que confere à escrita de ALA um carácter de palavra essencial: nela nada está a mais ou a menos, como se uma outra palavra, em vez da que está, desse origem a um outro livro que não este.

Estamos perante uma escrita que, na sua ambiguidade e desestruturação, nos interpela e nos fascina e que obriga o leitor a reconstruir dentro de si toda a teia lógica do romance.

Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? é um romance de sombra e sol, em que os cavalos, sob a luz, vão ludibriando a morte que se anuncia projectando a sua sombra sobre as águas, destruidoras ou criativas, que nem todos conseguem alcançar ou sequer vislumbrar. O lente, lente currite, noctis equi, como se os mesmos cavalos do verso de Ovídio pudessem trazer a noite.

“Chegam os cavalos que fazem sombra no mar e assim que o mar emergir do escuro desaparecemos para sempre.”