domingo, 25 de junho de 2017

Não se deixe enganar


“Não se deixe enganar” de Diana Barbosa, João Lourenço Monteiro, Leonor Abrantes e Marco Filipe é um livro extremamente útil e bem conseguido. Combater a ignorância e a desinformação é possivelmente uma das tarefas sociais mais urgentes dos cientistas, pensadores, professores e cidadãos de boa vontade. Os autores deste livro têm sido particularmente activos na promoção da cultura científica no contexto da COMCEPT,  a Comunidade Céptica Portuguesa. O objectivo da COMCEPT tem sido o de promover discussões e debates que visam fundamentalmente esclarecer questões que envolvam matérias de natureza científica e sobre as quais o essencial é se ter conhecimento dos factos.
No momento histórico particular que vivemos, parece-nos fundamental sinalizar a importância da cultural científica e o seu papel estruturante enquanto suporte factual do conhecimento e como elemento metodológico central de qualquer processo decisório.
De facto, a ignorância e a desinformação, infelizmente, já contaminam uma fracão não desprezável dos cidadãos das sociedades modernas. Segundo o Washington Post, 7%, ou seja, 16 milhões de norte-americanos pensam que o leite achocolatado vem das vacas castanhas. Na Califórnia, 3 em 10 crianças não sabia que o queijo é feito a partir do leite. Em 2016, 84% dos norte-americanos entrevistados eram favoráveis à rotulagem dos organismos geneticamente modificados, mas 80% eram da mesma opinião relativamente aos alimentos com ADN! 
Já é um dado adquirido do nosso tempo o estilo truculento e a arrepiante ignorância do presidente dos Estados Unidos da América. Ouvimos que Donald Trump defende que o aquecimento global é uma fraude criada pela China; que manifestou desconfiança sobre a segurança das vacinas; e durante muitos anos propagou a teoria de que o registo de nascimento de Barack Obama era falso e que ele teria nascido na Quénia. 

Naturalmente, seria incorrecto assumir que este é um fenómeno exclusivo dos Estados Unidos da América. Na sua “República” Platão defendeu, há cerca de 2500 anos, que a sociedade era melhor governada por um conselho de sábios e filósofos. As sociedades democráticas contemporâneas são baseadas no pressuposto que todos os cidadãos são “filósofos” esclarecidos e têm capacidade para colectivamente decidir sobre os caminhos a seguir e segundo o interesse de todos.
A existência de bolsas de ignorância podem (e estão) desestabilizando o debate e a discussão política moderna e são potencialmente perigosos pela tendência que têm em simplificar os problemas complexos e por propagar a ideia de que a cultura científica, humanista e política, que são base das sociedades democráticas, é irrelevante e desnecessária. Será de facto?
Parece-nos útil relembrar alguns exemplos históricos. Entre 1915 e 1918, os líderes do império otomano assassinaram indiscriminadamente um milhão de arménios. Até hoje nenhum governo turco aceitou a responsabilidade deste genocídio. Entre 1933 e 1945 a Alemanha levou a cabo o assassínio de 6 milhões de judeus e foi responsável pela morte de mais de 60 milhões de seres humanos. As vítimas do Estalinismo ascenderam a possivelmente mais de 10 milhões de vidas; as do Maoismo a mais de 20 milhões de vidas; entre 1975 e 1985 o Khmer Rouge de Pol Pot assassinou entre um e dois milhões de cambojanos num país de 8 milhões de habitantes. No genocídio, em 1994, no Ruanda, 800 mil membros de etnia Tutsi foram assassinados pela etnia Hutus.
O que está por trás destas derivas demenciais? A desinformação e o desrespeito das regras essenciais da civilidade por conta de obscuras teorias da conspiração que deturpam irremediavelmente os factos e a História.
O anti-semitismo dá-nos um elucidativo exemplo sobre a génese destas absurdas teorias. Em 1902 a policia secreta do Tzar criou e distribuiu a publicação apócrifa e anti-semita, “Os Protocolos dos sábios de Sião”, um mês após o congresso sionista na Rússia, em Setembro daquele ano. Nesta publicação, os líderes da comunidade judaica são apresentados de forma caricatural e conspiram para controlar o mundo. O objectivo da publicação era justificar a perseguição daquela minoria e descriminalizar as regulares explosões populares de violência que espoliavam, aterrorizavam e assassinavam membros das comunidades judaicas na Rússia tzarista. O livro foi exposto como fraudulento pelo Times de Londres em 1921, mas as ideias ali veiculadas não deixaram de atrair os mais incultos e preconceituosos. Os Protocolos do sábios de Sião era, por exemplo, uma obsessão de Henry Ford, que subsidiou a impressão de meio milhão de cópias. No “Mein Kampf” de Hitler, há inúmeras citações dos Protocolos e incitações ao extermínio dos judeus por conta das revelações ali expostas.
As conspirações na ciência são mencionadas no capitulo 1 do “Não se deixe enganar”. No contexto estritamente científico, a ciência tem métodos para combater estas derivas, mas o problema é muito mais geral. Recordemos que a Teoria da Relatividade foi o alvo privilegiado das pseudo-critícas da chamada ciência ariana da Alemanha nazista. A Mecânica Quântica foi também duramente atacada e, como a Relatividade, foi qualificada de ciência judia.  
Mas voltemos ao livro em discussão, “Não se deixe enganar”. No capitulo 2, há uma excelente discussão sobre a absurda dicotomia entre a noção de alimentos à base de químicos em oposição aos naturais. Ouvimos com frequência sobre ovos, vegetais e alimentos orgânicos. Mas naturalmente quaisquer um desses alimentos são orgânicos; a questão é se a sua produção é industrial e com base em métodos ambientalmente menos agressivos.
Tudo o que é natural é bom? É claro que não necessariamente. Por exemplo, a chamada doença das vacas loucas foi causada pela utilização de alimentação supostamente natural de base animal contaminada com partículas priónicas.
Na página 60 do livro há uma lista muito útil de aditivos alimentares, que reproduzimos parcialmente:
E150a – caramelo (corante)
E260 – ácido acético (vinagre)
E300 – vitamina C
E330 – ácido cítrico, etc...
A conclusão é que é precipitado e sem sentido afirmar que os aditivos alimentares devam todos ser qualificados de artificiais e considerados perigosos, muito pelo contrário. Muitos são essenciais para a conservação e para a manutenção da integridade dos alimentos.
Com relação aos medicamentos, a situação é semelhante e é relevante compreender que não há um medicamento que possa curar doenças com causas tão diversas como bactérias, vírus, parasitas, mutações genéticas e factores ambientais. O livro é também muito útil neste alerta.
Sobre o irresponsável movimento anti-vacinas, somos relembrados do estudo fraudulento de 1998 do médico britânico Andrew Wakefield, que afirmava haver uma alegada relação causal entre a vacinação com a vacina tríplice (sarampo, rubéola e papeira) e o autismo. Apesar da sua publicação, os métodos do artigo foram demonstrados serem inteiramente inconclusivos ao ponto do artigo ter sido retirado da revista Lancet; a licença médica do autor foi posteriormente revogada e ele acabou por emigrar para os Estados Unidos da América, onde continua a militar em campanhas contra as vacinas.
Em Portugal, a primeira das vacinas, a vacina do médico inglês Edward Jenner (1796) contra a varíola (variolae vaccinae, varíola das vacas) foi introduzida em 1812 e o Programa Nacional de Vacinação (PNV) iniciou a sua actividade em 1965. O sucesso da acção do PNV é simplesmente impressionante. Os números falam por si. Antes de 1965, no que se refere, por exemplo, à tosse convulsa foram registados 14429 casos e 873 mortes. Entre 1999 e 2008, 279 casos e nenhuma morte. No que diz respeito à poliomielite, foram registados 2723 casos e 316 mortes antes de 1965 e nenhum caso depois de 1965, ou seja, a poliomielite foi erradicada.
É-nos inclusivamente descrita a prática absurda e irresponsável de alguns pais em comunidades de países desenvolvidos que não acreditam nas vacinas e que organizam festas de crianças não vacinadas com crianças doentes para que aquelas adquiram uma imunidade natural!
No capítulo 2, secção 3, a reacção aos organismos geneticamente modificados (OGM) é discutida e são referidas as técnicas conhecidas de obter OGMs (cruzamento - metodologia utilizada desde sempre -; mutagênese; poliploidia; transgênese; e edição genómica). Somos então levados a concluir que a transgênese é só uma forma de se obter OGMs e que segurança e a utilidade de qualquer organismo deve ser avaliado caso a caso e não pela técnica que lhe deu origem. De qualquer forma, é evidente que a tecnologia dos OGMs tem inúmeras potencialidades e não pode simplesmente ser descartada automaticamente.
No capítulo 3, são apontadas algumas causas da desconfiança que muitas vezes o público tem acerca da ciência aplicada à medicina, por exemplo. São mencionados: os escândalos de fraude e os processos de encobrimento, via de regra causados pela predominância de interesses comerciais; a atracção pelo exotismo; a História Colonialista do Ocidente; ideias pós-modernistas e relativistas que veem a ciência como apenas uma narrativa entre as muitas possíveis.
De facto, a medicina teve que passar por centenas de anos de desenvolvimento até atingir a maturidade e os padrões de rigor que lhe caracterizam e que estão associados às práticas de meta-análise, revisões sistemáticas, ensaios duplamente cegos, o entendimento dos efeitos placebo e nocebo, etc.
Recordemos que só foi em 1828 que o médico francês Pierre Louis conduziu o primeiro estudo clínico com o objectivo de determinar a eficiência das sangrias em 77 pacientes com pneumonia. Apesar de serem os seus resultados claramente negativos, não determinaram contudo a abolição imediata da prática.
Na década de 1840, o médico húngaro Ignaz Semmelweis, observou a diminuição da mortalidade de parturientes quando os médicos e enfermeiras lavavam as mãos. Porém, foram necessários muitos anos para que as suas observações fossem consideradas universalmente.
Na verdade, como é afirmado na página 104: “Conhecemos os erros no processo científico, não por intuição, nem por magia, mas sim porque há investigação sistemática sobre o tema. É ciência feita sobre ciência”.
No capítulo 3, secção 2, há uma interessante descrição das terapias alternativas mais conhecidas e do  seu paupérrimo suporte científico. São discutidas a acupunctura, a homeopatia, a fitoterapia, a medicina tradicional chinesa, a osteopatia, a quiroprática. Pelas mesmas razões, quase que invariavelmente, as vantagens de certos suplementos alimentares e produtos miraculosos, tem que ser qualificada de  gratuita e desprovida de qualquer validade científica.
Também nos é explicado como, em 2015, um estudo premeditadamente fraudulento atestando a vantagem de chocolate negro para a perda de peso foi publicado em uma revista sem qualquer reputação ao nível científico, embora tenha recebido uma cobertura muito ampla pela comunicação social. Curiosamente, poucos notaram que o instituto onde alegadamente o estudo foi levado a cabo que só tinha existência no ciberespaço.
Assim percebemos algo bem conhecido dos profissionais, nomeadamente que a existência de revistas que se designam de científicas, mas que na verdade, são reguladas por lógicas puramente comerciais, indiciam que os aspectos mais nocivos da nossa sociedade não deixam de se infiltrar nas instituições científicas e que no processo dão origem a fenómenos puramente sociais completamente desprovidos de significado científico. Naturalmente, estas dinâmicas exigem do público e dos intervenientes da comunicação social um espírito critico e um contínuo exercício de verificação das fontes, consulta de cientistas qualificados, e uma atitude verdadeiramente informativa aquando da publicação de factos e afirmações extraordinárias.
É óbvio que enquanto actividade humana, a ciência não poderia estar completamente livre de influências económicas, sociais, etc, porém a incontornável contribuição da ciência para a melhoria da qualidade de vida de todos leva, mesmo ao mais céptico dos leitoras, à  conclusão que a ciência é a força motriz mais consistente do progresso da humanidade.
Segundo a Royal Society:
“A ciência é a procura e a aplicação do conhecimento e compreensão do mundo natural e social recorrendo a uma metodologia sistemática com base em evidências.”
Segundo Richard Dawkins a ciência é a “poesia do real”. Nas palavras de Carl Sagan: “a ciência é uma vela na escuridão”.
Segundo os autores deste utilíssimo livro: “a ciência é uma ferramenta que permite resolver ou pelo menos mitigar as nossas falhas sensoriais e cognitivas. Uma ferramenta que consegue erradicar doenças e colocar sondas a milhões de quilómetros de distância. É uma actividade que procura observar e quantificar com instrumentos rigorosos o que escapa aos nossos sentidos; que atenua o efeito dos nossos preconceitos ao juntar pessoas de várias nacionalidades, credos e identidades políticas; o que aceita apenas o que pode ser testado e comprovado de forma independente; que reconhece que todo o conhecimento é provisório e que pode mudar com novos factos. Pode não ser perfeita, mas é a ferramenta mais bem sucedida para reduzir a probabilidade de chegarmos a conclusões erradas.”
Palavras que o autor destas linhas subscreve integral e entusiasticamente.
Orfeu B.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

O Bispo Alucinado



“ ... Convirá, no entanto, lembrar que este bispo foi uma das figuras mais controversas da Igreja Portuguesa, nos séculos XVIII e XIX. Para alguns, um santo (chegou a ser enviado a Roma um processo, visando a sua beatificação); para outros, um visionário, raiando a loucura e a depravação (veja-se o processo que o Santo Ofício lhe moveu).

Pelo elementos de que pude dispor e a opinião de historiadores e pessoas que conheceram bem os meios brigantinos da época, como é o caso do Abade de Baçal, não pude deixar de concluir pela perspectiva que lhe é a mais favorável -- a santidade. Se outras razões não houvesse, uma, pelo menos haverá: “in dúbio pro reo” …

Albano Estrela

Há textos que transbordam uma humanidade que transcende em muito as convicções que formamos das personagens que são retratadas. Muitas vezes sugerem uma taxonomia de caracteres que correspondem ao nosso imaginário e são, assim, algo previsíveis. Os textos de Albano Estrela, profícuo professor catedrático reformado, virtuoso das ciências da educação e, prolífico autor que eu tanto aprecio, não estão nessa categoria, pois acabam sempre por nos conduzir a caminhos  inesperados. A humanidade dos textos de Albano Estrela é encantadora, assim como o tom diáfano que ele utiliza para nos introduzir as suas personagens. Poder-se-á argumentar que os livros de Albano Estrela deveriam ser lidos na sua integridade, mas eu suponho que o meu querido amigo, por se rever, acima de tudo, como um contista, prefira que as sua estórias sejam lidas como se fossem ilhas que só o acaso temporal de sua concepção ligou ao arquipélago de um livro ou de uma colectânea. 

De facto, quando tenho a oportunidade de conversar com Albano Estrela, o que nos últimos tempos são momentos raros e, por isso, ainda mais preciosos, nunca me refiro a livros, pois prefiro focar-me nas suas estórias e, sobretudo, nas suas personagens. Na minha modestíssima opinião, as duas estórias de “O bispo alucinado” são exemplos disso mesmo, para além de serem características da habilidade descritiva e da imaginação de Albano Estrela. 

No primeiro conto, a vivida descrição vida cultural do Porto no anos 1950, as suas limitações, os seus locais, as suas “aves raras”  arrasta-nos para a análise cúmplice de um personagem singular que nos é apresentado com a riqueza e o realismo que só um mestre da escrita pode criar. Um personagem que se perde periodicamente na obsessão de leituras que ele julga serem redentoras e que nos parece ser, à primeira vista, apenas um caso da exacerbação de uma personalidade incompleta e imatura. Mas a descrição de Albano Estrela vai muito para além desta primeira impressão, pois há nela uma empatia natural para com as fraquezas de carácter, para com as ilusões, e para com o êxtase místico que arrasta a sua personagem para o abismo das suas obsessões e que o conduz à sua solidão final destituída de remissão. É esta capacidade extraordinária do autor Albano Estrela que tanto impressiona. Uma capacidade infinita de entender e admitir as alucinações, as dúvidas, as falhas e os desvios, como manifestações naturais e inerentes da própria humanidade.  

Na segunda estória, a que empresta o título ao livro, a agonia da última noite de um bispo que procura deixar sob a forma escrita o testemunho da virtuosidade do seu amor a deus, e assim “perder-se no amor divino, arder no seu fogo …”. Uma agonia que nos sugere ser a consequência lógica do turbilhão de emoções que engolfa o crente cioso de compreender o descaminho e as contradições de um deus tão pouco zeloso da sua obra. Mas a descrição de Albano Estrela é muito mais rica e sugere, como na vida real, que por trás de cada gesto ou acto, há um sem número de interpretações possíveis, cuja síntese nenhum leitor, ouvinte ou observador, pode defender sem trair a sua honestidade intelectual. E não é esta, segundo os crentes, a infinitude de caminhos do divino? Ou o equivalente agnóstico ou ateu, do princípio do benefício da dúvida que todos, sem exceção, devem merecer? Em suma, esta é a virtude maior da inteligência superior de Albano Estrela, a sua capacidade de exemplificar nas suas estórias os múltiplos caminhos da vida real, sem menosprezar qualquer das vias, ainda que esta não seja a que mais se aproxime da sua visão do mundo e das suas convicções. 

Assim, "O Bispo Alucinado" é mais uma surpreendente contribuição de Albano Estrela, um texto rico e humano que propicia uma prazeirosa leitura.     

Há uma nota final que este comentador, não pode deixar de escrever. Nomeadamente, que me é insuportável a ideia que este seja o último livro de Albano Estrela. É-me absolutamente impensável supor que Albano Estrela pense que nos pode privar da sua inteligência e da sua sensibilidade. Fica aqui o apelo: Albano Estrela, a sua obra está muito longe de estar concluída!


Orfeu B.


sábado, 25 de março de 2017

Seis Breves Apontamentos de Cosmologia Contemporânea

A Cosmologia é uma das mais pujantes áreas da investigação da Física contemporânea. Mobiliza vastos recursos teóricos e experimentais: estes materializam-se em missões espaciais, programas observacionais que visam compilar catálogos astronómicos com uma extensão jamais vista, e recursos de computação e simulação que estão no limite das capacidades hodiernas em termos de complexidade, armazenamento e manipulação de dados. Esta riqueza de implicações só é possível graças à maturidade teórica que a Cosmologia atingiu nas últimas décadas. Nesta breve introdução à Cosmologia Contemporânea, os aspetos observacionais e teóricos mais salientes da ciência do Universo são descritos e teorizados. Tendo como ponto de partida a Teoria da Relatividade Geral, o livro discute a história térmica do Universo, a necessidade de um período primordial de expansão acelerada, a inflação, as propriedades mais marcantes da radiação cósmica de fundo, a problemática da matéria e da energia escura, e a hipótese de construção de descrições cosmológicas alternativas com base em teorias da gravitação que não as baseadas na Relatividade Geral. Os temas abordados fazem deste livro uma obra particularmente útil para um curso introdutório de Cosmologia.

Orfeu Bertolami e Jorge Páramos



domingo, 12 de fevereiro de 2017

As Criadas


… 

Claire - Fala, por favor. Fala da bondade de Madame.

Solange - Da bondade de Madame! É fácil ser boa, sorridente e meiga. A meiguice de Madame. Quando se é linda e rica! mas ser criada e boa! Nos contentamos enquanto arrumamos a casa e lavamos a loiça. Brandimos um espanador como se fosse um leque. Fazemos gestos elegantes com o avental.

Jean Genet


Numa fria noite de Janeiro, três actrizes, Luísa Cruz, Beatriz Batarda e Sara Carinhas, personificam, com total entrega, As Criadas de Jean Genet (1910-1986) no Teatro Aveirense.

A encenação de Marco Martins, conjuga com inteligência as múltiplas possibilidades de um texto rico e alusivo com o vigor interpretativo das actrizes, muito particularmente a das criadas, Claire e Solange (Sara Carinhas e Beatriz Batarda). 

A encenação acontece com o público disposto ao redor do palco que,  qual um ringue de boxe, contém e amplifica a energia da personificação. A parte interior das paredes do palco é espelhada de modo a propiciar ao público uma visão completa do trabalho interpretativo. Os elementos cénicos são, ao longo da encenação, desenhados pelas criadas com giz no palco de ardósia. A declaração cénica é evidente: todos os elementos da encenação são criados pelas actrizes. Sem as actrizes não há nada, não há teatro, só há um espaço inerte e esvaziado de objecto. O contexto do teatro é completamente definido pela acção das actrizes. Uma magnífica leitura da dramaturgia de Genet, um autor que através de peças essenciais como As Criadas (1947) e O Balcão (1957), demonstrou eloquentemente como as relações e, sobretudo, as identidades dos personagens são criações dos interlocutores. 

Baseada no caso real das irmãs Lapin que assassinaram a sua patroa e a filha, em Le Mans, França, na década de 1930, o texto As Criadas foi escrito aquando de um período de encarceramento por conta da pequena criminalidade que foi, por muitos anos, a actividade principal do autor. Na verdade, as primeiras obras de Genet, que incluem textos como a Nossa Dama das Flores (1943) e o Diário de um Ladrão (1949), subvertem completamente os padrões morais estabelecidos ao celebrar a humanidade através da singularidade das suas experiências de pequena criminalidade, homossexualidade e vagabundagem.  

O texto de As Criadas suscita muitas leituras e interpretações, mas parece-nos seguro afirmar que ao descrever quão desesperadamente as irmãs procuram escapar do seu quotidiano limitado e miserável, Genet procurou demonstrar o efeito devastador que a exploração tem na vida dos que vivem em função dos seus exploradores e como estes se apropriam inclusivamente do imaginário dos seus criados, condicionando-o pela imitação e pela incorporação dos valores burgueses. 

A vibrante encenação de Marco Martins e a brilhante interpretação das actrizes Beatriz Batarda, Sara Carinhas e Luísa Cruz, é, para além de uma muitíssimo bem sucedida e original revisita a um texto clássico da dramaturgia do século XX, uma demonstração do poder inesgotável do teatro enquanto vector criativo e veículo de reflexão.

Orfeu B.
     


sábado, 19 de novembro de 2016

Utopia

Thus have I described to you, as particularly as I could, the constitution of that commonwealth, which I do not only think the beat in the world, but indeed the only commonwealth that truly deserves that name. In all other places it is visible, that while people talk of a commonwealth every man seeks his own wealth; but there, where no man has any property, all men zealously pursue the good of the public; and, indeed, it is no wonder to see men act so differently; for in other commonwealths every man knows that unless he provides for himself, how flourishing soever the commonwealth may be, he must die of hunger; so that he sees the necessity of preferring his own concerns to the public; but in Utopia, where every man has a right to everything, they all know that if care is taken to keep the public stores full, no private man can want anything; for among them there is no unequal distribution, so that no man is poor, none in necessity, and though no man has anything, yet they are all rich; for what can make a man so rich as to lead a serene and cheerful life, free from anxieties; neither apprehending want himself, nor vexed with the endless complaints of his wife? He is not afraid of the misery of his children, nor is he contriving how to raise a portion for his daughters, but is secure in this, that both he and his wife, his children and grandchildren, to as many generations as he can fancy, will all live both plentifully and happily; since among them there is no less care taken of those who were once engaged in labour, but grow afterwards unable to follow it, than there is elsewhere of those that continue still employed. I would gladly hear any man compare the justice that is among them with that of all other nations; among whom, may I perish, if I see anything that looks either like justice or equity: for what justice is there in this, that a nobleman, a goldsmith, a banker, or any other man, that either does nothing at all, or at best is employed in things that are of no use to the public, should live in great luxury and splendour, upon what is so ill acquired; and a mean man, a Carter, a smith, or a ploughman, that works harder even than the beasts themselves, and is employed in labours so necessary, that no commonwealth could hold out a year without them, can only earn so poor a livelihood, and must lead so miserable a life, that the condition of the beasts is much better than theirs? For as the beasts do not work so constantly, so they feed almost as well, and with more pleasure; and have no anxiety about what is to come, whilst these men are depressed by a barren and fruitless employment, and tormented with the apprehensions of want in their old age; since that which they get by their daily labour does but maintain them at present, and is consumed as fast as it comes in, there is no overplus left to lay up for old age.

Thomas More

Utopia é uma obra seminal, única, genial e revolucionária, publicada há 500 anos. É o texto mais importante e controverso do estadista, diplomata e jurista inglês Thomas More (1478-1535). Escrita em Latim, esta obra fundamental foi publicada por Erasmo de Roterdão (1466-1536) há 500 anos em Lovaina. O livro só foi traduzido para o Inglês em 1551, 16 anos após a execução do seu autor por se ter recusado a jurar lealdade a Henrique XVIII como chefe da igreja anglicana. 

O texto consiste de dois livros associados a duas discussões que supostamente tiveram lugar em Antuérpia em 1515 quando More foi enviado por Henrique VIII para Flandres para "negociar e compor certas questões" com o rei Carlos de Castilha. Nestas vívidas trocas de impressões, um culto viajante português, Rafael Hitlodeu (o nome alude ao redentor arcanjo Rafael, o apelido ao sentido da palavra grega disparate), discute com os seus ilustres interlocutores os problemas políticos e sociais de então, mas que, na verdade, até hoje nos afligem. Claramente, Rafael Hitlodeu é o alter-ego de More. No primeiro livro da Utopia, Rafael discorre sobre os males das sociedades europeias do seu tempo. No segundo livro, Rafael descreve um estado-ilha, material e espiritualmente muito mais desenvolvido, Utopia (do grego, em nenhuma parte), que teria conhecido em profundidade numa das suas viagens, e onde os problemas sociais mais persistentes da nossa sociedade haviam sido pacificamente resolvidos por meio de uma organização social justa e racional. 

Naturalmente, a ideia de More de criar uma sociedade imaginária tem origem numa tradição que remonta aos textos clássicos, “A República” de Platão (427-347 a.C), e a “Política” de Aristóteles (384-322 a.C). “Utopia” deu origem a um género literário e inúmeras obras de cariz semelhante que lhe seguiram os passos, tais como, "A Cidade do Sol", escrita em 1602 por Tommaso Campanella (1568-1639), a “Nova Atlântida” de Sir Francis Bacon (1561-1626), publicada em 1627, por muitas outras no século das luzes e na literatura revolucionária dos séculos XIX e XX (Pierre Proudhom (1809-1865), Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858) e Saint-Simon (1760-1825), a quem Karl Marx (1818-1883) designou de "socialistas utópicos", em oposição, ao “socialismo científico" por ele criado e pretensamente implantado na Rússia por Valdimir Lênin (1870-1924)). Na verdade, a extraordinária lucidez de Rafael Hitlodeu ao sugerir que a ordem social do seu tempo era simplesmente absurda, é fortemente inspirada no não menos importante livro de Erasmo de Roterdão, “Elogio da Loucura”, onde o sábio renascentista argumentava que ao constatar os males, dogmas e concepções irracionais do seu tempo, só a loucura tinha o bom senso e a imaginação que eram necessárias para melhorar o mundo. As obras de More e Erasmo são possivelmente os mais representativos exemplos do humanismo renascentista.   

Para exemplificar o sentido absolutamente visionário da obra de More, basta referir que na Utopia nos é apresentado um conjunto de ideias espantosas pela sua modernidade e justeza: há uma vigorosa defesa da ideia de que a propriedade privada como um fim em si é uma fonte desarmonia social;  da ideia de que todos os cidadãos têm o direito a condições dignas de trabalho e sobrevivência; de que os cidadãos irreversivelmente doentes devem ter o direito de dispor de suas vidas e decidir quando desejam morrer; de que a liberdade de culto é um direito; e de  que todos os cidadãos devem ter o direito a decidir sobre o seu futuro e destino. Liberdades que, decorridos 500 anos, muitos estados, instituições, governantes e indivíduos julgam ter o direito de usurpar dos seus concidadãos. 

Conta-nos ainda Rafael Hitlodeu que em Utopia e nos estados vizinhos (Tallstoria, Nolandia e Aircastle) não há advogados dada a simplicidade e a naturalidade das suas leis e por serem os seus cidadãos estimulados a comportarem-se de forma socialmente adequada. A propriedade é predominantemente comunitária e o trabalho é baseado na necessidade e na rotatividade e não se estende por mais que seis horas diárias. Na ilha descrita por More nada é de ninguém e tudo é de todos, o bem comum está acima do bem individual, o ouro e os metais preciosos são destituídos de valor, a guerra é considerada uma abominação e a caça uma brutalidade.  Claramente, More acreditava que a propriedade individual e o dinheiro eram incompatíveis com a felicidade. 

Contrariamente a Platão, More não acreditava que os filósofos devessem se envolver na governação, pois acreditava que a realidade política criaria inevitáveis conflitos com as suas convicções. More acreditava no reconhecimento da necessidade de uma ordem social justa e na disciplina e bom senso na sua manutenção, rejeitando assim e ideia de uma liberdade absoluta e irrestrita.  More preconizava a tolerância religiosa e defendia uma pacífica coexistência ecuménica. A sua ardente defesa da paz e o seu veemente discurso anti-belicista são de uma actualidade arrepiante. 

A assombrosa amplitude, abertura e visão de Thomas More e o seu papel ímpar na cultura europeia e universal fazem-me crer que a leitura da sua Utopia deveria ser obrigatória em todas as escolas.  O autor dessas linhas também acredita na necessidade absoluta de se alterar a triste ordem social vigente na maior parte do mundo contemporâneo e adequa-la à extraordinária visão de Thomas More e, num outro texto, designou a força criativa decorrente da oposição entre a realidade política vigente e os ideais igualitários de tensão utópica.  
      
Orfeu B.
     
                                                

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Letra Aberta

                                           
       
que nunca por nunca estas linhas tivessem um ar acabado,
quisera apenas que uma urgência das coisas
as reclamasse, uma veemência,
uma potência as coisas,
e aí acabasse a sua breve música
mas já que a mim devastava
que a ti te devastasse
leitor sempre inimigo
como o cria assim a sua própria sombra

Herberto Helder

Decorrido um ano do desaparecimento do poeta em Março de 2015, foi publicada em Março de 2016 a primeira recolha póstuma de poemas inéditos de Herberto Helder. Selecionados pela viúva, Olga Lima, de entre um espólio que certamente nos reserva assombros e sobressaltos, esta edição única alerta os admiradores do poeta de que está em preparação uma edição crítica da obra inédita do autor de A Morte sem Mestre, Os passos em volta, A faca não corta o fogo, e de outras obras marcantes. 

Certo é que com os poemas de Herberto Helder todos os leitores são, até os mais assíduos, sempre arrebatados pela surpresa e não menos pelo deleite. Para Herberto Helder os poemas eram contínuos como o espaço-tempo e nos eram apresentados a fumegar. Herberto Helder era, para além de um encantador de palavras, o fogo que as envolvia antes delas sairem da forja da sua oficina.    

Só nos ocorre pensar em termos de culminâncias. O dom da palavra como píncaro da evolução, Herberto Helder como cume da língua Portuguesa, cada poema como vértice em altitude de uma cordilheira de poemas abertos, evocativos de imagens inesgotáveis.    

Não é verdade que depois da morte do poeta há o vazio de um pesado silêncio. A poesia nunca cessa de sibilar sentidos. Fiquem atentos os ouvidos. Todos os poemas são inéditos.    

Orfeu B.

a morte é mesmo estranha:
morre-se todos os dias
e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida,
e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de nenhum país,
e não há ranhura onde a moeda entre, nem a ranhura de uma velha caixa de música, e no entanto estremeço
e falta-me o ar, sim sim
arrebatavam-me as músicas de J.S. Bach
no silêncio das naves através da catedral inteira,
vozes e vozes dos rapazes castrados
e de repente um baixo monstruoso,
e isto se Deus existisse mesmo, punhal fundo no músculo coração,
e depois quente chôro pela cara abaixo
- oh porque me abandonaste?
mas na verdade ninguém me abandonara

Herberto Helder


domingo, 28 de agosto de 2016

FRAGMENTOS



“FRAGMENTOS”

GEORGES STEINER

Steiner é um mestre. Numa entrevista concedida a Ramin Jahanbegloo afirma que “Gostaria de ser recordado (...) como um mestre de leitura, como alguém que passou a vida a ler com os outros.” E é isso mesmo que ele faz. Ensina-nos a ler e a pensar. E esse é talvez um dos maiores prazeres da vida.

Logo na segunda página deste imenso livrinho afirma que” A nossa própria existência é um acto de leitura contínua do mundo, um exercício em decifração, em interpretação no interior de uma câmara de eco, cujo volume de mensagens, de entradas semióticas, é incomensurável”.

Este livro é um exercício brilhante de reflexão num gesto de deliciosa fantasia literária.

É suposto tratar-se de um conjunto de reflexões sobre um pergaminho carbonizado e incompleto atribuído a Epicarno de Agra, moralista e orador do séc. II d.C., e encontrado nas ruínas da cidade romana de Herculano.

Epicarno de Agra é uma invenção de Steiner que utiliza este estratagema para falar sobre alguns grandes temas da cultura e do pensamento humano. A eloquência do silêncio, as virtudes da amizade em comparação com as do amor, a importância da educação e a raridade do talento, a realidade ontológica do mal e a omnipotência do dinheiro, os perigos da religião e a transcendência da música. E finalmente, a morte, a decadência da velhice e o elogio do suicídio e da eutanásia na escolha do momento de morrer.

Brilhante, motivador, fazendo a ponte entre filosofia, história e literatura, Steiner
oferece-nos um pequeno livro que exige tempo para “mastigar”, já que, com cada linha, cada parágrafo, cada tema abordado, inquieta-nos, interroga-nos, leva-nos a reflectir emocionadamente sobre grandes temas e questões que vão das mais vastas e antigas do pensamento humano às mais actuais.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

VER NO ESCURO


“VER NO ESCURO”

CLAUDIA R. SAMPAIO

Tenho aprendido a lutar contra o preconceito na minha leitura de poesia. Em boa parte devo-o ao trabalho que levei a cabo com o Pedro Quintas na organização da Antologia “POEMAS DA SAÚDE E DA DOENÇA – De Fernando Pessoa aos nossos dias”.

Ambos leitores fervorosos de poesia, com uma diferença de 28 anos de idade, apesar de uma larga disponibilidade ao desfrute da diferença, descobrimos que cada um de nós trazia consigo alguma forma de preconceito em parte geracional (e por isso mesmo também de discurso e estilístico) em relação a certos nomes de poetas.

A trabalhar um com o outro aprendemos muito a vencer preconceitos e a olhar de forma mais disponível para nomes que cada um tinha tendência a pôr de parte.

Foi o que me aconteceu também com a jovem Cláudia R. Sampaio.

Nas suas duas obras anteriores contavam-se dois livros, entre os quais um intitulado “A primeira urina da manhã”.

Este título irritou-me. Não gosto em poesia do excesso de mergulho num quotidiano limitado, por vezes rasca, que tem sido próprio de alguns poetas com cuja escrita francamente embirro (também tenho direito, quand même).

Só não deixei de lado este novo livro de Cláudia R. Sampaio porque foi publicado numa muito respeitável colecção de poesia dirigida por Pedro Mexia para a editora Tinta da China.

Folheei e percebi que se tratava de poesia mesmo. Da boa. De lei. Intensa e comovente. Trouxe-o para casa e li-o devagar e fiquei rendido à voz de Claudia R. Sampaio

Fui ler mais sobre a poeta e encontrei o que ela afirmou acerca do do tal objecto da minha embirração:

“O livro fala de coisas que me aconteceram numa fase da minha vida em que fui ao fundo e depois tive de renascer das cinzas, evoluir."

Resultado: vou à procura urgentemente da "Primeira urina da manhã", mea culpa e adiante.

A poesia deste "Ver no escuro" é intensa, é dura, é frágil, atravessa o escuro da vida à procura de um corpo, de uma casa, de uma cidade, da essência do amor.

Escrever assim rasga-nos. Talvez esta escrita seja a única forma de nos curarmos de muita dor. E eu pergunto-me: até que ponto é possível a autora continuar a manter-se inteira escrevendo desta forma? Não seria a única. Mas esta escrita exige habitar continuadamente numa dolorosa margem de si própria. Sei bem como a arte é uma forma de correr alguma espécie de maratona. Fico, por isso mesmo, muito ansioso pelo que possa estar para vir.

Quando for embora não deixarei
migalha de mim.
Levarei o cheiro a desorientada
melancolia e desastre
e não deixarei um cabelo que seja.
Levarei comigo as gatas e os livros,
a roupa deixo-a às minhas amigas,
o umbigo, à minha mãe.

Vou e não esqueço.

Partirei sem as orquídeas que
me assombram delicadeza
e sem os cactos que me superam
em estirpe.
Vou aberta como um eterno retorno
e na simplicidade de um bebé que
procura um sítio onde se sentar.

Aqui há a desactivação das almas à
nascença e a ovação aos tristes.
Há a exultação do silêncio profundo
e a altivez congratulada dos néscios.
Há o sangue cansado dos bichos
e a preparação para a fuga da terra.
Aqui há a terra sem terra e a saliência
do teu ombro morto.

Há orelhas frias que soluçam tarde
e uma cova a dizer adeus.

Por isso vou embora no sentido inverso
ao das árvores
numa descida clandestina à mulher que
morreu em ondas.
Vou embora e deixo o meu vinco que
não morre mesmo que me passem com
alcatrão fresco e me estiquem.

Deixo apenas a verdade dos meus
olhos quando pendurados na janela,
a sorrir mundos
deixo as abelhinhas doidas que ignoraram
o meu salto,
e o riso da desistência
porque ainda preciso de mim.

sábado, 20 de agosto de 2016

O AMOR EM LOBITO BAY




“O AMOR EM LOBITO BAY”

LÍDIA JORGE

Lídia Jorge é uma grande senhora da literatura portuguesa que escreve do alto de uma enorme elegância e de um rigor pouco comuns, sem que, no entanto, as suas narrativas se furtem ao lado mais duro e inquietante da humanidade.

Estes contos são atravessados por um sopro de estranheza e de inquietação. Subvertem mas também procuram encontrar um caminho de pacificação.

Surgem inofensivos, sem sobressaltos, sem anunciarem a dimensão que depois surge à medida que se vai caminhando na narração.

Serão talvez desiguais, embora sem nunca deixar a elegância e o rigor da escrita. Embora sejam contos há uma estratégia de escrita que os atravessa a todos, uma atitude permanente e sublinhada em relação à forma de olhar para o mundo e para a humanidade que os conduz a todos como num percurso que se pretende unificador.

Alguns emocionaram-me, entusiasmaram-me, fizeram-me pensar: “Boa, minha amiga! Acertaste no alvo com o melhor do teu talento!”

Nesse sentido, a “Imitação do êxodo” é um conto notável e impiedoso relativamente a uma certa vulgata pedagógica e bem intencionada mas que impõe boas intenções numa cegueira que não presta nenhuma atenção nem respeito pelo profundo olhar da criança.

O conto que dá o título ao livro “O amor em Lobito Bay”, depois de nos expor ao horror do ritual com que uma criança pretende tornar-se no melhor corredor do mundo e que é salva desse ritual por um secreto sentimento de bondade, de poesia e de solidariedade familiar .

“Overbooking” parte de uma extraordinária vitória por 9-2 num jogo de futebol. Mas torna-se terrível, assustador e, no entanto, revela-nos a necessidade de perdão que todos temos para os pequenos e grandes “crimes” de que alguns serão capazes em momentos únicos da sua vida.

Será sempre um prazer raro partilhar com Lídia Jorge a arte que a leva a percorrer os caminhos inquietantes e exaltantes da literatura.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

As cores da memória



    
A propósito da obra Mariola Landowska

Todo artista é um microscópio, um telescópio, uma máquina do tempo, um prestidigitador, um tomógrafo de almas. Todo artista, no delírio febril do processo criativo é, acima de tudo, um fabulador de estórias possíveis na sua impossibilidade, um narrador de estórias reais e potenciais. A verdadeira arte é a verosimilhança do inverosímil, é o recuperar da cor da memória dissipada que melhor se adequa ao exercício de relembrar. Mas desculpe-me o leitor por essas considerações iniciais algo genéricas. Certamente, fosse eu um artista, sentiria a arte de Mariola Landowska de forma distinta e seria capaz de exprimir mais claramente as motivações e as ambições mais profundas que caracterizam os artistas do nosso tempo. Mas quem escreve não é mais que um professor de física que tem como horizonte a expansão acelerada do universo e a matemática como seu guia. Ocorre-me o exemplo clássico de Giorgio Vasari, o artista que magistralmente descreveu-nos as vidas e as obras de Giotto, Brunelleschi, Donatello, Mantegna, Leonardo, Michelangelo, entre outros, e que demonstrou serem os artistas os mais capacitados para discursarem sobre a arte. Mas suponho que um físico que tem a imaginação como fiel instrumento de trabalho, terá alguma sensibilidade para escrever umas poucas linhas sobre o encantamento e o fascínio que suscita a obra de Mariola Landowska. Que assim o seja.

Ao contemplar as telas de Mariola Landowska somos impelidos a viagens inesperadas. Sentimo-nos indígenas banhando-se nas águas amazónicas da realidade e do mito. Ouvimos a orquestra selvática de símios e aves, o zumbido de insectos, o miar abundante de gatos multicoloridos, que elegantes  e melancólicos, executam Noturnos de Chopin. Ou então, mergulhamos na alma da Índia ou do Fado, enquanto pedalamos na bicicleta da infância da artista. E é muito ágil essa improvável polaca que abraça o universo e que o pinta com o optimismo da inocência infantil. Os meus olhos a acompanham até onde a minha imaginação pode ir, mas ela é demasiado curta e às tantas perco de vista a artista quando ela vira a esquina duma estrela distante e reaparece no cantar de um galo numa encosta de Alfama ou a molhar os pés na praia de Carcavelos. Porque a arte de Mariola Landowska conduz-nos à canícula dos trópicos, leva-nos a respirar a salsugem e os aromas fortes e cortantes, a sentir o fresco das montanhas e as águas gélidas do Mar Báltico. Cada tela de Mariola nos impele contingentemente para direções surpreendentes, mas inexoravelmente para o âmago dos temas em foco. Mariola Landowska tem o mundo como sua casa e as suas telas transpiram a multiplicidade tonal das suas experiências existenciais. E há na arte de Mariola Landowska a clareza estética que define inequivocamente a maturidade de um estilo. E jaz na essência dessa afirmação o delicioso paradoxo da antropofagia artística. Se pudéssemos encharcar uma esponja com solvente e passar numa tela de Mariola Landowska, e quando digo uma tela quero dizer qualquer tela de Mariola, e fizéssemos uma análise semântica-cromatógrafa-anímica encontraríamos fragmentos dum Chagall tropical, dum Lazar Segall centro-europeu, dum Portinari amazónico, duma Morisot onírica, e as cores de Macke, Kandinski e Gauguin. E sentiríamos o aroma de especiarias incorruptas e chás exóticos. E o sabor de raízes cozidas e de carnes de caça.

E a explicação do pretenso paradoxo é tão simples como o da mistura das cores: o verdadeiro artista é a encarnação intelectual e emocional de todos os artistas. O mesmo exercício, por exemplo, numa tela de Chagall revelaria uma Mariola Landowska embrionária ou em processo metamórfico. Mas para além da beleza pictórica e a estética do optimismo praticada por Mariola Landowaska há na sua arte um compromisso espontâneo com a humanidade nas suas múltiplas e variadas manifestações culturais. A arte de Mariola Landowska não é um exercício de expansão de um ego que procura justificar-se enquanto artista inserida na dimensão mesquinha duma sociedade de consumo e do seu mercado; muito pelo contrário, a arte de Mariola Landowska é fruto duma identidade madura e segura que desaparece ao capturar os seus sujeitos, mas que reaparece íntegra e indelével no resultado de cada tela. O conhecido dito segundo o qual a descrição duma imagem exige pelo menos mil palavras sugere que seria necessário um extenso e mágico texto para fazer justiça à arte de Mariola Landowska; contudo, sinto-me escusado de multiplicar linhas, pois julgo que o mais adequado é o exercício zen que sugere, para mais profundamente apreender a essência das coisas, uma desconstrução da lógica usual e o entendimento do “som” duma só mão a aplaudir. Noutro registo, mas na mesma linha, a poeta Natália Correia proclamava ao perorar um bem conhecido poema: “ó subalimentados do sonho! a poesia é para comer”. Penso que as telas de Mariola Landowska são a dieta ideal para carências como a anemia crónica de imaginação.

Porto, Julho 2012

Orfeu B.



quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Do Big Bang ao Homem


Do Big Bang ao Homem é uma coletânea de textos resultantes de um conjunto de palestras que tiveram lugar na Reitoria da Universidade do Porto de Novembro a Dezembro de 2013, no âmbito da Exposição Terra em Transformação. Neste livro são debatidos temas de uma vastíssima problemática: da origem do Universo à origem da vida e do homem, passando pelo aparecimento dos planetas, da Terra, das plantas e dos animais. Ao leitor é permi­tido vislumbrar a riqueza conceptual e metodológica de diversas disciplinas de investigação, mas acima de tudo, perceber as ideias centrais de cada tema e o esforço de articulação das distintas áreas do saber. Somos todos cidadãos do Universo, mas só através do entendimento dos aspetos centrais do conhecimento integral que temos do mundo é que podemos efetivamente usufruir desta cidadania.  

A coordenação e organização dos textos esteve ao encargo de Orfeu Bertolami e Helena Couto, e  contribuíram para o livro: António Amorim, Frederico Sodré Borges, Orfeu Bertolami, Helena Couto, Octávio Mateus, Mário Mendes, João Pais, João Pedro Cunha Ribeiro e Nuno C. Santos.




terça-feira, 2 de agosto de 2016

O Ponto da Ternura


Se

Se me dessem um animal de solidão
seria um flamingo.
Sua mancha rosada se vislumbraria de longe,
seus pés aparentemente hesitantes
traçariam um círculo ao meu redor
e seu pescoço fino acharia sempre 
o ínfimo espaço
entre mim e qualquer outro
e se fecharia, fiel, no meu pescoço.


Cobertura

… debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. 

Bernardo Soares/Fernando Pessoa, “O Livro do Desassossego”


Nesta hora escura
todas as crianças são iguais.
Nesta treva basta a palavra “crianças”
para que se encolha de medo.
A boca do caminhão se escancara, Salima
Matria procura tesouros na imundície,
já estará enterrado no monte de lixo
cobertura, a mão busca os cobertores
enrolados em sua candidez,
cobertores que nem tinham caído. 
Ahmed Zar’una não subirá mais
no brinquedo do grande blindado,
seu coração agita-se no peito magro
sob o alvo do fuzil
Assim, com os pulsos sobre a cabeça,
o amor está amarrado ao terror. 


O Ponto da Ternura

… at the hour when we are
trembling with tenderness
lips that would kiss
form prayers to broken stone

T.S. Eliot

Aqui é onde mora a ternura.
Ainda que o coração, em seu silêncio,
afunde pela cidade feito pedra -
sabe que este é o ponto de ternura.

Segura a minha mão neste mundo.
Vi uma mãe falando ódio a seu filho,
exterminado com palavras.
Vi um prédio ruir a pó,
devagar, piso por piso -
como precisamos de piedade,
como precisamos de alívio. 

O cair da noite numa nuca tão beijada
vai além da cura: para toda asfixia,
de toda garganta,só há um remédio.
Vê, simplesmente, é o ponto. 

Tal Nitzán


Há literaturas que são indissociáveis do contexto que lhes dá origem. Tal ligação é muito marcada nos escritores de origem judaica. De Kafka a Joseph Roth e Paul Celan na Europa central, passando por Saul Bellow, Philip Roth, Paul Auster e Moacyr Scliar nas Américas, para citar alguns exemplos, retratar o ambiente que os circunda de uma forma única e original não é só um exercício literário, mas pelo contrário, é a fonte primordial, ainda que muitas vezes críptica, que engendra e alimenta as suas fabulações e estilos. 

Esta ligação é ainda mais forte nos escritores israelitas contemporâneos. Das condições históricas que deram origem ao estado de Israel, ao incontornável conflito israelo-palestiniano, a literatura israelita é um campo aberto de experimentação que não pode deixar de reflectir sobre estas questões sem correr o risco de ser artificial e estéril. E neste contexto historicamente complexo e tenso, escritores da estirpe de Amos Oz e David Grossman demonstraram que não há neutralidade possível. O escritor deve estar necessariamente do lado da humanidade, do lado da solução e da mitigação imediata dos conflitos que hoje afligem a todos, israelitas e palestinianos. O escritor deve ir necessariamente para além da sua origem e do seu posicionamento político-ideológico, deve situar-se no terreno mais elevado duma ética que não pode admitir o sofrimento dos semelhantes, independentemente da sua origem, deve ser arauto de uma ética que coloca a humanidade acima de tudo. Esta posição é compartilhada e está fortemente reflectida na escrita da poeta israelita Tal Nitzán. 

A coletânea “O Ponto da Ternura” em versão bilingue, Hebraico-Português, publicada em 2013 em São Paulo (Lumme Editore, Brasil 2013) com tradução de Moacir Amancio, reune poemas escritos ao longo de cerca de década e reflectem a maturidade de uma escritora com uma voz muito própria. Mas como o dissemos acima, a originalidade de Tal Nitzán está indelevelmente marcada pelo contexto denso e viscoso de uma realidade que impõe a todos, e muito particularmente aos escritores, a defesa de causas, o examinar crítico das encruzilhadas da ética e da lógica dos posicionamentos automáticos. 

Se por um lado, a minha incapacidade de apreender a poesia de Tal Nitzán na sua versão hebraica original é um óbvio obstáculo, a universalidade da mensagem de Tal Nitzán é-me perfeitamente inteligível e conduz-me, sem reservas, a uma solidária empatia com as causas que defende. No livro “O Ponto da Ternura” a autora intercala a sua intimidade emocional e as suas inquietações com a discussão de questões que envolvem diretamente as implicações do conflito israelo-palestiniano. Inconformada com a violência de toda espécie, com qualquer acção repressiva e com a guerra, há na mensagem da poeta Tal Nitzán um clarão de esperança na forma pungente como expressa o seu amor por todas as crianças, israelitas e palestinianas, por todos os gatos, pelos flamingos e pela pureza das emoções. Ao ler Tal Nitzán somos confrontados com a certeza básica de que pertencemos a uma família alargada que deve necessariamente incluir aqueles que durante décadas foram retratados como sendo os inimigos.      
    
Etty Hillesum (1914-1943), escreveu em 1943 no seu diário, enquanto ia a caminho de um campo de extermínio, que era preciso ajudar Deus, então fraco e moribundo, a cumprir a sua tarefa. Não creio em Deus ou em deuses, acredito nas ideias. Mas penso que vivemos tempos onde até as ideias que potencialmente nos poderiam salvar estão exangues. Há que as resgatar das sombras e do cinismo, e as pintar com as tintas frescas da esperança. Há que reinventar as palavras e as religar segundo critérios de humanidade renovados. É significativo que uma poeta israelita tenha esse dom. Há muito, foram as trombetas, os cimbalos, as harpas e os tambores que secundaram os Salmos e que cantaram ideais que carregados pelos ventos do deserto chegaram até nós.   

Orfeu B.
   

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Copo de Cólera


… estava longe de me interessar pelos traços corriqueiros de um caráter trivial, e nem eu ia, movendo-lhe o anzol, propiciar suas costumeiras peripécias de raciocínio, não que metessem medo as unhas que ela punha nas palavras, eu também, além das caras amenas (aqui e ali quem sabe marota), sabia dar ao verbo o reverso das carrancas e das garras, sabia, incisivo como ela, morder certeiro com os dentes das ideias, já que era com esses cacos que se compunham de hábito as nossas intrigas, sem contar que - empurrando pra raia do rigor - meus cascos sabiam inventar a sua lógica, mas toda essa agressão discursiva já beirava exaustivamente a monotonia, não era mais o caso de bocejar em cima de um sono mal-dormido, não era o caso enfadonho de esticar braços supérfluos, as coisas aqui dentro se fundiam velozmente com a febre, eu já não tinha sequer pedrisco na moela, quanto mais cascalho que era o indicado para digerir o papo dela, sem esquecer que a reflexão não passava da excreção totalmente enobrecida do drama da existência, … 
                                         
Raduan Nassar


Prémio Camões de 2016, autor sintético de uma prosa elegante e cortante, Raduan Nassar (1935) é autor de narrativas exactas e intensas, por vezes inspiradas na escrita seca e directa de Graciliano Ramos, de quem é um confesso admirador. Sendo autor de apenas três obras, Lavoura arcaica (1975), Copo de cólera, escrita em 1970, mas só publicada em 1979, e a coletânea de contos Menina a caminho, publicada em 1997, não deixa de ser surpreendente que uma prosa com um estilo tão marcado e original tenha surgido praticamente sem qualquer experimentação. 

Copo de cólera é uma novela erótica e feroz, veloz e arrebatadora na forma como se situa na instabilidade entre a dominação e a submissão, entre a paixão e o ódio, entre a ternura e a violência. Pela dialéctica visceral como disseca a complexa anatomia de um amor selvagem e arrebatador, Copo de cólera é uma obra verdadeiramente intrigante e única na língua portuguesa.  

Orfeu B.



domingo, 10 de julho de 2016

VAMOS COMPRAR UM POETA



Uma pequena delícia. Uma brincadeira muito séria.

Retrato de uma sociedade reduzida aos números e aos processos mentais de um economia incapaz de integrar o valor do sonho, da metáfora, da poesia.

Uma família compra um poeta como quem compra um cão e põe-no a viver debaixo da escada.

Este texto pertence à família de outros como , por exemplo, “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, ou, de certa forma, “As aventuras de João sem medo” de José Gomes Ferreira.

São textos que se constroem contra ditaduras políticas ou económicas, que excluem a cultura do seu dia a dia e que, resolvendo aparentemente todos os problemas dos homens, se tornam secas e poucas e, por isso mesmo, incapazes de estrangular o que há de profundamente humano dentro de nós e que, mais tarde ou mais cedo, acaba por vir à tona na literatura, na arte, na poesia, coisas “inúteis” que resistem e se tornam em atitudes que o(s) poder(es) consideram perigosamente subversivas.

A literatura em Afonso Cruz é uma festa. E, sendo capaz de tratar assuntos de grande espessura e profundidade, fá-lo sempre de forma clara, instilando no leitor capacidade desconstruir as certezas manhosas do mundo em que vivemos, mas fazendo disso uma promessa de felicidade.

Este “Vamos comprar um poeta” torna a leitura num divertimento muito muito sério. Devia ser texto obrigatório no ensino.

sábado, 9 de julho de 2016

Shakespeare, Albert Camus, Sándor Márai, Orfeu e a Ilha de Lesbos

Apresentação da Revista número 11 do Centro de Estudos Teatrais da Universidade do Porto “O estranho e o estrangeiro no Teatro”
7 de julho de 2016, Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Shakespeare, Albert Camus, Sándor Márai, Orfeu e a Ilha de Lesbos
No dia 20 de junho a Professora Cristina Marinho esteve no Departamento de Física e Astronomia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e deixou-me: um volume intitulado “O estranho e o estrangeiro no Teatro”; uma belíssima rosa encarnada com subtis traços cor de rosa; e o pedido para apresentar o volume 11º da revista de Teatro do Mundo, publicado pelo Centro de Estudos Teatrais da Universidade do Porto (CETUP).
Ao folhear o volume, tornou-se mais que evidente que não havia qualquer hipótese de satisfazer minimamente o que me era pedido. Eu simplesmente não tenho os conhecimentos, a cultura e a perspicácia para fazer uma apresentação que seja minimamente credível e competente de uma revista tão rica e tão complexa. Inevitavelmente, recordei-me de um texto de Borges, no qual o participante de um concurso de poesia que tinha como tema a rosa, decidiu, por conta das convicções estilísticas, enviar ao júri o mais genuíno poema naturalista: um botão de rosa. Mas, para a apresentação da revista, já não era possível. A rosa já tinha aparecido no início da história.
Todos sabem que Shakespeare é a quinta essência do teatro e, assumindo que esta apresentação termina bem, ou noutra língua, a de Shakespeare, “All’s well that ends well”, o que me cabe é conduzir esta apresentação de modo a ser consentânea com o epílogo desta bem conhecida peça:
King: The King’s a beggar now the play is done. All is well ended, if this suit be won: That you express content: which we will pay: With strife to please you, day exceeding day: Ours be your patience then, and yours our parts; Your gentle hands lend us, and take our hearts.
E também com as linhas iniciais e finais do soneto número XXIII do bardo inglês:
As an unperfect actor on the stage.
Who with his fear is put besides his part.
... 
O! learn to read what silent love hath writ: 
To hear with eyes belongs to love's fine wit. 
Albert Camus é possivelmente o mais eminente escritor e pensador que encarnou a figura de um Sísifo da existência; Albert Camus é também o criador do personagem aparentemente  simplório que era estrangeiro da própria vida. Estrangeiro, estranho, alienígena, errante, refugiado. Albert Camus deu à existência a densidade do chão que todos nós pisamos e partiu prematuramente, deixando-nos encurralados no segundo acto de uma peça de Beckett que não tem seguimento, ainda que todos saibamos que a solução deveria nos ser revelada no terceiro acto.
Sándor Márai: Na sua obra prima “A mulher certa” o escritor húngaro apresenta-nos a história de uma relação marital desfeita do ponto de vista dos três personagens envolvidos (algo como a “Caixa Negra” de Amos Oz). Três pontos de vista pós-modernamente correctos, mas que constroem uma encenação teatral disjunta e contraditória, na qual os personagens se dirigem a si próprios, estranhos uns para os outros, estrangeiros na sua terra natal e noutras, estando ao mesmo tempo profundamente entranhados na trama da vida desfeita e refeita pela continua transformação do mundo e das vontades.
Orfeu: Orfeu é aqui o personagem à procura de um autor; é o estrangeiro, objectivo e subjectivo, desta apresentação. Nome mítico que imperfeitamente habita a condição de ser actor de si mesmo. Percebe alguma coisa de física e de manipulações matemáticas, mas tem grande dificuldade em formalizar e exprimir o essencial no que se refere ao lançamento do 11º número da revista de Teatro do CETUP.
A Ilha de Lesbos: quem viu a “Vida de Adéle”, ou como sugere o texto da Professora Cristina Marinho nesta revista e onde é sugerido o título alternativo “Le Bleu est une Couleur Chaude”, entende que mesmo as coisas mais genuínas como o amor entre duas mulheres pode dar origem a tempestades de areia nas mentes mais porosas. Orfeu, o estrangeiro, não sabe se há um amor lésbico, um amor gay, um amor hétero, pois só acredita na existência do amor ou do desamor, embora perceba que, em oposição, o ódio pode ter infinitas nuances.
Mas esta apresentação já vai longa e não dá um sinal inequívoco de que vai terminar bem.
Sim, Orfeu, o estrangeiro, pede desculpas pela generalidade dos comentários. Ele percebe a estratégia das apresentações, mas costuma perder-se nas tácticas das subtilezas retóricas. Enfim, não são só as palavras que exprimem o estranho e o estrangeiro no teatro, há muito mais no teatro naturalista da vida. E, neste, somos todos estrangeiros uns para os outros; desempenhamos com convicção o nosso papel, mas falhamos miseravelmente na representação do que os outros actores-encenadores esperam de nós. Transformamos a comédia em tragédia, a tragédia em comédia e, contrariamente ao que preconizava Shakespeare, almejamos ser reis, embora não passemos, quase que invariavelmente, de mendigos.

Orfeu B.