domingo, 25 de junho de 2017

Não se deixe enganar


“Não se deixe enganar” de Diana Barbosa, João Lourenço Monteiro, Leonor Abrantes e Marco Filipe é um livro extremamente útil e bem conseguido. Combater a ignorância e a desinformação é possivelmente uma das tarefas sociais mais urgentes dos cientistas, pensadores, professores e cidadãos de boa vontade. Os autores deste livro têm sido particularmente activos na promoção da cultura científica no contexto da COMCEPT,  a Comunidade Céptica Portuguesa. O objectivo da COMCEPT tem sido o de promover discussões e debates que visam fundamentalmente esclarecer questões que envolvam matérias de natureza científica e sobre as quais o essencial é se ter conhecimento dos factos.
No momento histórico particular que vivemos, parece-nos fundamental sinalizar a importância da cultural científica e o seu papel estruturante enquanto suporte factual do conhecimento e como elemento metodológico central de qualquer processo decisório.
De facto, a ignorância e a desinformação, infelizmente, já contaminam uma fracão não desprezável dos cidadãos das sociedades modernas. Segundo o Washington Post, 7%, ou seja, 16 milhões de norte-americanos pensam que o leite achocolatado vem das vacas castanhas. Na Califórnia, 3 em 10 crianças não sabia que o queijo é feito a partir do leite. Em 2016, 84% dos norte-americanos entrevistados eram favoráveis à rotulagem dos organismos geneticamente modificados, mas 80% eram da mesma opinião relativamente aos alimentos com ADN! 
Já é um dado adquirido do nosso tempo o estilo truculento e a arrepiante ignorância do presidente dos Estados Unidos da América. Ouvimos que Donald Trump defende que o aquecimento global é uma fraude criada pela China; que manifestou desconfiança sobre a segurança das vacinas; e durante muitos anos propagou a teoria de que o registo de nascimento de Barack Obama era falso e que ele teria nascido na Quénia. 

Naturalmente, seria incorrecto assumir que este é um fenómeno exclusivo dos Estados Unidos da América. Na sua “República” Platão defendeu, há cerca de 2500 anos, que a sociedade era melhor governada por um conselho de sábios e filósofos. As sociedades democráticas contemporâneas são baseadas no pressuposto que todos os cidadãos são “filósofos” esclarecidos e têm capacidade para colectivamente decidir sobre os caminhos a seguir e segundo o interesse de todos.
A existência de bolsas de ignorância podem (e estão) desestabilizando o debate e a discussão política moderna e são potencialmente perigosos pela tendência que têm em simplificar os problemas complexos e por propagar a ideia de que a cultura científica, humanista e política, que são base das sociedades democráticas, é irrelevante e desnecessária. Será de facto?
Parece-nos útil relembrar alguns exemplos históricos. Entre 1915 e 1918, os líderes do império otomano assassinaram indiscriminadamente um milhão de arménios. Até hoje nenhum governo turco aceitou a responsabilidade deste genocídio. Entre 1933 e 1945 a Alemanha levou a cabo o assassínio de 6 milhões de judeus e foi responsável pela morte de mais de 60 milhões de seres humanos. As vítimas do Estalinismo ascenderam a possivelmente mais de 10 milhões de vidas; as do Maoismo a mais de 20 milhões de vidas; entre 1975 e 1985 o Khmer Rouge de Pol Pot assassinou entre um e dois milhões de cambojanos num país de 8 milhões de habitantes. No genocídio, em 1994, no Ruanda, 800 mil membros de etnia Tutsi foram assassinados pela etnia Hutus.
O que está por trás destas derivas demenciais? A desinformação e o desrespeito das regras essenciais da civilidade por conta de obscuras teorias da conspiração que deturpam irremediavelmente os factos e a História.
O anti-semitismo dá-nos um elucidativo exemplo sobre a génese destas absurdas teorias. Em 1902 a policia secreta do Tzar criou e distribuiu a publicação apócrifa e anti-semita, “Os Protocolos dos sábios de Sião”, um mês após o congresso sionista na Rússia, em Setembro daquele ano. Nesta publicação, os líderes da comunidade judaica são apresentados de forma caricatural e conspiram para controlar o mundo. O objectivo da publicação era justificar a perseguição daquela minoria e descriminalizar as regulares explosões populares de violência que espoliavam, aterrorizavam e assassinavam membros das comunidades judaicas na Rússia tzarista. O livro foi exposto como fraudulento pelo Times de Londres em 1921, mas as ideias ali veiculadas não deixaram de atrair os mais incultos e preconceituosos. Os Protocolos do sábios de Sião era, por exemplo, uma obsessão de Henry Ford, que subsidiou a impressão de meio milhão de cópias. No “Mein Kampf” de Hitler, há inúmeras citações dos Protocolos e incitações ao extermínio dos judeus por conta das revelações ali expostas.
As conspirações na ciência são mencionadas no capitulo 1 do “Não se deixe enganar”. No contexto estritamente científico, a ciência tem métodos para combater estas derivas, mas o problema é muito mais geral. Recordemos que a Teoria da Relatividade foi o alvo privilegiado das pseudo-critícas da chamada ciência ariana da Alemanha nazista. A Mecânica Quântica foi também duramente atacada e, como a Relatividade, foi qualificada de ciência judia.  
Mas voltemos ao livro em discussão, “Não se deixe enganar”. No capitulo 2, há uma excelente discussão sobre a absurda dicotomia entre a noção de alimentos à base de químicos em oposição aos naturais. Ouvimos com frequência sobre ovos, vegetais e alimentos orgânicos. Mas naturalmente quaisquer um desses alimentos são orgânicos; a questão é se a sua produção é industrial e com base em métodos ambientalmente menos agressivos.
Tudo o que é natural é bom? É claro que não necessariamente. Por exemplo, a chamada doença das vacas loucas foi causada pela utilização de alimentação supostamente natural de base animal contaminada com partículas priónicas.
Na página 60 do livro há uma lista muito útil de aditivos alimentares, que reproduzimos parcialmente:
E150a – caramelo (corante)
E260 – ácido acético (vinagre)
E300 – vitamina C
E330 – ácido cítrico, etc...
A conclusão é que é precipitado e sem sentido afirmar que os aditivos alimentares devam todos ser qualificados de artificiais e considerados perigosos, muito pelo contrário. Muitos são essenciais para a conservação e para a manutenção da integridade dos alimentos.
Com relação aos medicamentos, a situação é semelhante e é relevante compreender que não há um medicamento que possa curar doenças com causas tão diversas como bactérias, vírus, parasitas, mutações genéticas e factores ambientais. O livro é também muito útil neste alerta.
Sobre o irresponsável movimento anti-vacinas, somos relembrados do estudo fraudulento de 1998 do médico britânico Andrew Wakefield, que afirmava haver uma alegada relação causal entre a vacinação com a vacina tríplice (sarampo, rubéola e papeira) e o autismo. Apesar da sua publicação, os métodos do artigo foram demonstrados serem inteiramente inconclusivos ao ponto do artigo ter sido retirado da revista Lancet; a licença médica do autor foi posteriormente revogada e ele acabou por emigrar para os Estados Unidos da América, onde continua a militar em campanhas contra as vacinas.
Em Portugal, a primeira das vacinas, a vacina do médico inglês Edward Jenner (1796) contra a varíola (variolae vaccinae, varíola das vacas) foi introduzida em 1812 e o Programa Nacional de Vacinação (PNV) iniciou a sua actividade em 1965. O sucesso da acção do PNV é simplesmente impressionante. Os números falam por si. Antes de 1965, no que se refere, por exemplo, à tosse convulsa foram registados 14429 casos e 873 mortes. Entre 1999 e 2008, 279 casos e nenhuma morte. No que diz respeito à poliomielite, foram registados 2723 casos e 316 mortes antes de 1965 e nenhum caso depois de 1965, ou seja, a poliomielite foi erradicada.
É-nos inclusivamente descrita a prática absurda e irresponsável de alguns pais em comunidades de países desenvolvidos que não acreditam nas vacinas e que organizam festas de crianças não vacinadas com crianças doentes para que aquelas adquiram uma imunidade natural!
No capítulo 2, secção 3, a reacção aos organismos geneticamente modificados (OGM) é discutida e são referidas as técnicas conhecidas de obter OGMs (cruzamento - metodologia utilizada desde sempre -; mutagênese; poliploidia; transgênese; e edição genómica). Somos então levados a concluir que a transgênese é só uma forma de se obter OGMs e que segurança e a utilidade de qualquer organismo deve ser avaliado caso a caso e não pela técnica que lhe deu origem. De qualquer forma, é evidente que a tecnologia dos OGMs tem inúmeras potencialidades e não pode simplesmente ser descartada automaticamente.
No capítulo 3, são apontadas algumas causas da desconfiança que muitas vezes o público tem acerca da ciência aplicada à medicina, por exemplo. São mencionados: os escândalos de fraude e os processos de encobrimento, via de regra causados pela predominância de interesses comerciais; a atracção pelo exotismo; a História Colonialista do Ocidente; ideias pós-modernistas e relativistas que veem a ciência como apenas uma narrativa entre as muitas possíveis.
De facto, a medicina teve que passar por centenas de anos de desenvolvimento até atingir a maturidade e os padrões de rigor que lhe caracterizam e que estão associados às práticas de meta-análise, revisões sistemáticas, ensaios duplamente cegos, o entendimento dos efeitos placebo e nocebo, etc.
Recordemos que só foi em 1828 que o médico francês Pierre Louis conduziu o primeiro estudo clínico com o objectivo de determinar a eficiência das sangrias em 77 pacientes com pneumonia. Apesar de serem os seus resultados claramente negativos, não determinaram contudo a abolição imediata da prática.
Na década de 1840, o médico húngaro Ignaz Semmelweis, observou a diminuição da mortalidade de parturientes quando os médicos e enfermeiras lavavam as mãos. Porém, foram necessários muitos anos para que as suas observações fossem consideradas universalmente.
Na verdade, como é afirmado na página 104: “Conhecemos os erros no processo científico, não por intuição, nem por magia, mas sim porque há investigação sistemática sobre o tema. É ciência feita sobre ciência”.
No capítulo 3, secção 2, há uma interessante descrição das terapias alternativas mais conhecidas e do  seu paupérrimo suporte científico. São discutidas a acupunctura, a homeopatia, a fitoterapia, a medicina tradicional chinesa, a osteopatia, a quiroprática. Pelas mesmas razões, quase que invariavelmente, as vantagens de certos suplementos alimentares e produtos miraculosos, tem que ser qualificada de  gratuita e desprovida de qualquer validade científica.
Também nos é explicado como, em 2015, um estudo premeditadamente fraudulento atestando a vantagem de chocolate negro para a perda de peso foi publicado em uma revista sem qualquer reputação ao nível científico, embora tenha recebido uma cobertura muito ampla pela comunicação social. Curiosamente, poucos notaram que o instituto onde alegadamente o estudo foi levado a cabo que só tinha existência no ciberespaço.
Assim percebemos algo bem conhecido dos profissionais, nomeadamente que a existência de revistas que se designam de científicas, mas que na verdade, são reguladas por lógicas puramente comerciais, indiciam que os aspectos mais nocivos da nossa sociedade não deixam de se infiltrar nas instituições científicas e que no processo dão origem a fenómenos puramente sociais completamente desprovidos de significado científico. Naturalmente, estas dinâmicas exigem do público e dos intervenientes da comunicação social um espírito critico e um contínuo exercício de verificação das fontes, consulta de cientistas qualificados, e uma atitude verdadeiramente informativa aquando da publicação de factos e afirmações extraordinárias.
É óbvio que enquanto actividade humana, a ciência não poderia estar completamente livre de influências económicas, sociais, etc, porém a incontornável contribuição da ciência para a melhoria da qualidade de vida de todos leva, mesmo ao mais céptico dos leitoras, à  conclusão que a ciência é a força motriz mais consistente do progresso da humanidade.
Segundo a Royal Society:
“A ciência é a procura e a aplicação do conhecimento e compreensão do mundo natural e social recorrendo a uma metodologia sistemática com base em evidências.”
Segundo Richard Dawkins a ciência é a “poesia do real”. Nas palavras de Carl Sagan: “a ciência é uma vela na escuridão”.
Segundo os autores deste utilíssimo livro: “a ciência é uma ferramenta que permite resolver ou pelo menos mitigar as nossas falhas sensoriais e cognitivas. Uma ferramenta que consegue erradicar doenças e colocar sondas a milhões de quilómetros de distância. É uma actividade que procura observar e quantificar com instrumentos rigorosos o que escapa aos nossos sentidos; que atenua o efeito dos nossos preconceitos ao juntar pessoas de várias nacionalidades, credos e identidades políticas; o que aceita apenas o que pode ser testado e comprovado de forma independente; que reconhece que todo o conhecimento é provisório e que pode mudar com novos factos. Pode não ser perfeita, mas é a ferramenta mais bem sucedida para reduzir a probabilidade de chegarmos a conclusões erradas.”
Palavras que o autor destas linhas subscreve integral e entusiasticamente.
Orfeu B.