sábado, 30 de agosto de 2008

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Chico Buarque


No natal de 2007 vi um documentário sobre Chico Buarque. Nesse documentário ouvi um excerto do seu livro “Budapeste”. Não resisti. Li o livro. Li o “Estorvo” e agora acabei o “Benjamim”. Em todos eles ficamos surpreendidos como compõe as palavras, como é solidário com as suas personagens, como conduz a narrativa, com o sentido de humor, como perspectiva a tragédia, tornando-a quase burlesca.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

A mulher do Chapéu de Palha


Não conhecia Graça Pina de Morais, nem nunca tinha ouvido falar dela, desculpem a minha ignorância. Este conto breve é muito bonito. A escrita dela é como uma bossa nova, fez-me lembrar Astrud Gilberto a cantar. Talvez porque vi uma foto de Graça Pino de Morais e vi as datas de nascimento e morte e vi que são da mesma geração, quase o mesmo rosto, um sorriso igual, o mesmo penteado, uma mesma voz.
“Nítidos eram os raros transeuntes que povoam avenida. Pareciam-lhes igualmente belos. Não eram com efeito uma beleza formal… belos são todos os seres humanos quando vistos com precisa nitidez e destacados uns dos outros na clara matinalidade do dia. Nem os corpos deformados pela idade, nem as rugas cavadas nos rostos, nem o sorriso de bocas desdentadas a magoavam como habitualmente conseguiam ser ainda mais belos do que se conservassem a impecável correcção duma juventude perfeita.”

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Uma Casa na Escuridão – A casa, a Escuridão

Dois livros para se ler em paralelo, do mesmo autor.
Numa escrita densa, surge uma história com várias personagens misteriosas: o escritor que tem uma mulher dentro dele que o faz escrever, o editor preso por recusar escritas de novos pretensos autores, a mãe morta por dentro e que ressuscita com a música, o senhor violinista que faz ressuscitar a mãe, a escrava Miriam que ama o príncipe, o príncipe de calicatri que guardava no coração todos os países por onde viajou, ninguém que não houve, não vê e não fala, o visconde (viscondessa) com um buraco na barriga, a tradutora que o observa, que o abraça, os soldados invasores que tudo amputam, o homem gordo chefe dos invasores, as crianças filhas do invasor, os gatos que andam pela casa.
Uma alegoria sobre o escrever, uma autobiografia, um drama. Um romance imenso e negro. Tudo cai num abismo. Os invasores que destroem os desejos e as vontades das pessoas, criam a impossibilidade do escritor continuar a escrever, amputam os seus braços e as suas pernas. Imputam as mãos de quem faz música, os ouvidos de quem a escuta, de quem a ama. O escritor sem escrever faz nascer uma escuridão dentro dele, e apodrece e morre.
A barbárie presente, personificada nesses homens barbudos com as suas espadas violentas, nesses invasores cruéis, que matam, que violam.
Muitas das imagens descritas são de uma beleza enorme, ler este livro é melhor que visitar uma exposição. Está sempre presente essa violência, essa tristeza, esse drama.
Um dos poemas da "A casa, a Escuridão" tem como protagonista os leitores, nós.

A Tradutora

tu lês. antes de ti, ela muda as palavras. antes dela,
eu escrevo. eu passei por aqui, ela passou por aqui,
tu passas agora por aqui.

entendes isso? ela está onde tu estarás. eu estou onde
ela estará. eu corro pelas palavras, ela persegue-me.
tu corres atrás de nós para nos veres correr.

eu escrevo casa e continuo pelas palavras. ela segura
as letras da casa e escreve vida. tu lês vida e entendes casa
e vida. eu não sei o que entendes.

eu corro. ela corre atrás de mim. tu corres atrás dela.
não existimos sozinhos. sorrimos quando paramos,
quando nos encontramos. aqui.

José Luís Peixoto "A Casa, a Escuridão"


Recomendo.

A Invenção literária

Ainda a propósito da criação literária repesco este exerceto, "desviado" do blogue "O Bibilotecário de Babel" sobre o processo de escrita de Jorge Luis Borges.

Excerto do livro de entrevistas a Jorge Luis Borges, Em Diálogo, de Osvaldo Ferrari (volume 1, Círculo de Leitores, 2001):
«Hoje gostaria que falássemos de algo que muitos querem saber. Isto é, de como se produz em si o processo da escrita, ou seja, como começa no seu interior um poema, um conto. E a partir do momento em que se inicia, como continua o processo, a confecção, digamos, desse poema ou desse conto.Começa por uma espécie de revelação. Mas uso essa palavra de um modo modesto, não ambicioso. Isto é, de repente sei que vai acontecer algo e isso que vai acontecer pode ser, no caso de um conto, o princípio e o fim. No caso de um poema, não: é uma ideia mais geral e às vezes foi a primeira linha. Isto é, algo me é dado e depois intervenho eu, e talvez tudo se deite a perder (ri-se). No caso de um conto, por exemplo, bom, conheço o princípio, o ponto de partida, conheço o fim, conheço a meta. Mas depois tenho de descobrir, através dos meus muito limitados meios, o que acontece entre o princípio e o fim. E depois há outros problemas a resolver, por exemplo, se convém que o facto seja contado na primeira pessoa ou na terceira. Depois, é preciso procurar a época; agora, quanto a mim – isso é uma solução pessoal minha –, acho que o mais cómodo acaba por ser a última década do século dezanove. Escolho – se se tratar de um conto de um porto –, escolho locais do litoral, por exemplo, de Palermo, ou de Barracas, ou de Turdera. E a data, digamos que mil oitocentos e noventa e nove, o ano do meu nascimento, por exemplo. Porque, quem pode saber exactamente como falava aquela já morta da beira-mar? Ninguém. Isto é, que eu possa actuar com comodidade. Em compensação, se um escritor escolhe um tema contemporâneo, então já o leitor se converte num inspector e decide: “Não, neste bairro não se fala assim, as pessoas desta classe não usariam esta ou aquela expressão.”O escritor prevê tudo isto e sente-se travado. Em compensação, escolho uma época um pouco distante, um lugar um pouco distante; isso dá-me liberdade e já posso… fantasiar… ou falsificar, até. Posso mentir sem que ninguém se aperceba, pois é preciso que o escritor que escreve uma fábula – por mais fantástica que seja – acredite, naquele momento, na realidade da fábula.»

O Anjo Literário


Há algum tempo atrás falei-vos aqui de “Um Diário de Leituras” de Alberto Manguel. Esse livro fez-me recordar outra obra, lida há alguns meses atrás, e que constitui um exercício literário deveras interessante. Trata-se de “O Anjo Literário” de Eduardo Halfon. A pergunta de base do autor é “Porque é que alguém começa a escrever? Existirá o momento da primeira inspiração literária, de um despertar narrativo”. Eduardo Halfon oferece-nos assim cinco exercícios difíceis de catalogar (oscilando entre o conto, o “ensaio” e um diário reflexivo do próprio autor) sobre Herman Hesse, Ernest Hemingway, Raymond Carver (um dos meus contistas de eleição!), Ricardo Paglia (que confesso desconhecer) e Vladimir Nabokov. A resposta à pergunta de base imaginada por Eduardo Halfon não é linear e esse momento de inspiração é interpretado/imaginado de diversas maneiras. E o que é belíssimo neste livro é que Eduardo Halfon consegue mimetizar o estilo de cada um dos cinco autores ao descrever “esse momento de inspiração literária”.Por exemplo, no caso de Herman Hesse é descrito um dia na infância passado a correr na floresta acompanhado de um duende. A magia de Herman Hesse está presente: “Ser mago. Sem o saber, sem jamais o ter pretendido, o doutor Gundert gerou em Herman o seu mais intenso desejo: aspira a converter-se em mago. Desde muito pequeno que sente um profundo descontentamento por aquilo a que os outros costumam chamar realidade, considerando-a uma ridícula convenção dos adultos. Quer encantá-la, transformá-la, potenciá-la. Deseja fazer crescer maçãs durante o Inverno. Concentra-se em encher os bolsos de ouro. Sonha encontrar tesouros, paralisar os inimigos, ressuscitar os mortos e tornar-se invisível”. Um mentira sobre a origem de uns figos leva o pai de Herman Hesse a castigá-lo obrigando-o a passar uma noite no sótão, castigo esse que funciona como fonte literária. Herman Hesse descobre no fundo de um caixote um grosso livro amarelo. Abre-o. E começa a ler as peripécias, os delitos e os sofrimentos de um bandoleiro alemão. “Vira as páginas com irreprimível ansiedade até que, algumas horas mais tarde, regressa ao início e começa a ler tudo de novo. Está encantado. Pela primeira na sua vida uma narrativa inspirou-lhe um profundo e prazenteiro sossego. Através do pirata, entende-se a si mesmo. E tudo, pensa Herman, apenas com a palavra escrita”. Para citar mais um exemplo, Eduardo Halfon, quando se debruça sobre Raymond Carver, adopta o estilo depurado, desencantado, de frases curtas descritivas característico do autor. Tal como em Raymond Carver o texto começa num “corte temporal” e termina sem um fim concreto. É-nos relatado o dia-a-dia de Raymond Carver jovem, casado com a sua primeira mulher, já com dois filhos. A presença constante do álcool, das dificuldades económicas, o dia-a-dia ressacado e desencantado, a paixão pela leitura e pelo seu autor inspirador (Chekov) estão disseminadas pelo texto. Vamos encontrar de início Raymond Carver numa lavaria de Iowa City, a ler um conto de Chekov enquanto a roupa dos seus quatro filhos dava voltas em quatro máquinas de lavar. “Não se lembrava de quando decidira tornar-se escritor. Nem porquê. Porém, sem que disso se apercebesse, tinha afastado a possibilidade de escrever um romance. Para além de não conseguir concentrar-se durante períodos muito longos, achava que os romancistas viviam num mundo que, para eles, tinha sentido. O seu mundo, em contrapartida, era insensato. Passava o mês inteiro a preocupar-se com o pagamento da renda e a manutenção dos filhos. Não havia tempo para grandes narrativas. Só escrevia textos de uma assentada. Poemas. Contos. Depois, durante semanas, reescrevia-os com prazer, dez, quinze, vinte vezes”.
Estes belos textos de Eduardo Halfon são acompanhados de um diário do período de escrita e de uma descrição de forma reflexiva sobre o próprio processo da sua escrita.
Em suma, uma excelente obra e cinco belíssimos exercícios.

terça-feira, 26 de agosto de 2008


Acabei de ler “O Heresiarca & C.ª” do Guillaume Apollinaire (mais conhecido pela sua obra poética do que pela prosa) recentemente traduzido pela Assírio & Alvim. Começo por destacar a excelente apresentação do tradutor (Aníbal Fernandes), a cuidada tradução e a profusão de notas dada a constante referência a figuras históricas e mitológicas ao longo do livro, profusão essa que apesar de cortar um pouco o ritmo da leitura nos ajuda muito à compreensão do texto. Trata-se de um livro de contos que podemos dividir em duas temáticas distintas. Em primeiro lugar, temos um conjunto de contos em que existe um tensão grande entre o profano e o sagrado, o sacrílego e o religioso: Exemplos soltos e avulsos: “O heresiarca fechou rapidamente a sotaina, deu um nó no cordão e convidou-me, com um sorriso, a entrar na sala contígua que era a biblioteca. Eu estava estupefacto por ver que aquele homem dava á carne semelhantes castigos e ao mesmo tempo satisfazia a sua glutona sensualidade” (in o Heresiarca e C.ª); de um padre numa recepção com o papa: “ A vossa Infalibilidade, esse dogma incontestável porque assenta numa realidade terrestre, confere-vos um magistério que não suscita nenhuma contradição. Podeis impor aos católicos a verdade ou o erro, á vossa escolha. Sede bom! Sede humano! Ensinai o que é verdadeiro! Ordenai ex cathedra que o catolicismo seja dissolvido! Proclamai que as suas práticas são supersticiosas! Anunciai que o glorioso e milenar papel da igreja terminou! Erigi estas verdades como dogma e tereis adquirido o reconhecimento da Humanidade (in A Infalibilidade). Os restantes contos têm uma dimensão mágica/surreal latente. Um homem capaz de mimetismo com as paredes dos edifícios; um guardanapo que nas recepções de um pintor aos seus amigos era sempre oferecido aos convivas com a desculpa de que a lavadeira não cumpria o seu serviço. Os convivas vão morrendo e no final o lenço adquire nos quatro cantos as feições dos convivas; um falso Messias capaz de estar presente simultaneamente em várias sinagogas ao mesmo tempo, etc.
Em suma, um livro de uma beleza erudita que se lê serena mas avidamente.

Acrescento a apresentação do autor que podemos ler no sítio da editora:

Nasceu em Roma, em 1880, filho de uma nobre polaca e de pai desconhecido (possivelmente um oficial italiano com quem a mãe vivia na época do seu nascimento). A infância e adolescência de Guillaume e do seu irmão, Albert, repartiram-se por várias cidades, obedecendo à errância amorosa da mãe: Roma, Paris, Mónaco, Cannes e Nice.Aos 20 anos, instalado em Paris, interessou-se por literatura e política, revelando simpatias anarquistas. Começou a procurar emprego. Também nessa altura, inicia a escrita novelas eróticas para sobreviver. Nos anos seguintes, viajou até à Áustria, Alemanha e Inglaterra. Por volta de 1901, quando trabalhava como perceptor de uma família alemã, conheceu e apaixonou-se por Annie Playden, a governanta inglesa. Este amor não correspondido inspirou-o a escrever «A canção do mal amado».Entre 1902 e 1907 publicou contos e poemas em várias revistas (incluindo a portuguesa O Portugal Futurista). Entre os seus amigos de Paris dessa altura, contam-se Picasso, Rousseau e Delaunay, entre outros.Em 1911, foi preso por suspeita de roubo de umas estatuetas fenícias do Louvre. Em 1913, publicou Alcools, uma recolha do seu trabalho poético desde 1898.Alistou-se no exército francês em 1914, e partiu para a guerra (uma ocasião que lhe serviu para se declarar «francês genuíno» e servir a sua pátria). Combateu na Cavalaria, e mais tarde passou à Infantaria. Para não perder a veia poética, trocava abundante correspondência com os amigos e a mais recente paixão não correspondida, Louise de Coligny-Châtillon (ou «Lou», como lhe chamava nos poemas). Acabou por ser ferido na cabeça pela explosão de um obus.Depois de recuperar, e já em Paris, voltou ao trabalho: levou à cena a peça Les Mamelles de Tirésias e publicou Calligrammes. Em 1918, casou com Jacqueline Kolb (a «linda ruiva» do último poema de Calligrammes), mas enfraquecido pela ferida de combate, morreu em Novembro desse ano, de gripe espanhola. Tinha 38 anos. Foi enterrado no cemitério de Père Lachaise, enquanto pelas ruas de Paris se festejava o fim da guerra.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

HISTÓRIAS DE 1 MINUTO



As histórias pequeninas sempre me fascinaram. Por isso, não perco oportunidade de as ler, venham elas de onde vierem. E, desta vez, vieram da Hungria, em livro de Istvän Örkény, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, com o título de "Histórias de 1 Minuto." Evidentemente que nem todas as histórias podem ser lidas num minuto e são exactamente as que excedem essa medida temporal (embora continuem a ser curtas) que mais me agradaram. E por várias razões: por serem expressão de uma literatura (e de uma cultura) que desconheço; por constituírem exercícios de escrita de algum virtuosismo, em que o leitor tem de se implicar, a fim de "completar" o que "falta" na história; por utilizarem o humor como suporte da acção, mas sempre fugindo à linearidade ou à banalidade da anedota, que esbate sentidos e reduz o humor à graça fácil da pilhéria. Proska Filcai, o tradutor, em prefácio à obra, refere-se a esse risco, que o autor soube correr, e ao modo como o evitou:
"Os narradores destes contos, assumindo um ponto de vista de intelectuais observadores, tentam mostrar as situações grotescas da vida. A maioria das vezes elaboram urna narração que interpreta os dados - ao contrário dos modos narrativos que contam anedotas -, assim chamando a atenção para as irracionalidades, para as contradições do nosso mundo."
E, um pouco mais à frente, esclarece:
... (a obra) "foi o produto de um longo processo da sua escrita, durante o qual os textos baseados em anedotas simples foram ultrapassados por um tom grotesco-filosófico."
Este é, para mim, um dos méritos da obra: pegar numa anedota, recriar e ampliar o seu sentido, tornando-a numa referência da nossa condição humana - no que ela tem de grandioso ou de mesquinho -, é tarefa só ao alcance de um grande escritor.
Vejamos um exemplo, colhido ao acaso. No conto "A Bravura Incomparável da Polícia", descreve-se um roubo ocorrido numa estação de correios, no momento em que se verificou um corte de electricidade. A polícia, posta na pista do crime, prende, num bar, dois "suspeitos" e dois outros indivíduos, seus "cúmplices." Na esquadra, fizeram-lhes apenas uma pergunta: no dia X, às tantas horas, na estação de correios H, houve um roubo de uma avultada quantia de dinheiro, no momento em que se deu um corte de energia. Se vocês passassem por lá, nesse momento, e vissem a estação desprotegida, praticariam esse roubo? Os bebedores, que talvez tivessem achado piada à pergunta, responderam sem hesitação: oh, sim! O que bastou para os incriminar e levar a tribunal. Este procedimento policial foi muito apreciado pelas autoridades superiores, que passaram a recomendar a sua utilização de um modo sistemático, pois, assim, poder-se-iam evitar muitos crimes, prendendo preventivamente os seus (possíveis) autores. Este conto, que se aplicava com muita propriedade aos países do leste europeu, sujeitos a uma forte repressão policial e política, tem, hoje, um sentido muito mais amplo, como se verifica pelo conceito (e prática) da guerra preventiva, tão querido à administração americana de George Bush...
Ainda um outro exemplo, já a roçar a impossibilidade de transformar a banalidade da anedota em história com um significado específico. Estou a referir-me ao textinho intitulado "O Pesadelo". Um soldador, que trabalha até muito tarde, vem sempre para casa de madrugada e bastante alcoolizado. Como não tem chave da porta da rua, toca para o porteiro. É o único inquilino que chega tão tarde, o que enfurece o dito porteiro, pois obriga-o a levantar-se no momento em que o sono é mais profundo. O senhor Kálmán Kirch, o inquilino, como bêbado gentil que é, saúda-o sempre da mesma maneira: "Boa noite, querido senhor Hornák", o que o enfurece ainda mais. Nessa noite, acontece o mesmo, talvez com uma pequena diferença: Kirch ainda está mais bêbado. Sobe ao andar onde vive e abre a porta que dá para a varanda, a fim de apanhar o ar fresco da noite, mas a varanda ainda não tem grade e o nosso Kirch cai do segundo andar sobre um monte de neve. Recomposto, volta a tocar à campainha do seu prédio. O porteiro, que entretanto tinha adormecido, acorda em sobressalto, a amaldiçoar tal inquilino. Mas logo se lembra que ele já tinha entrado e isso acalma-o um tanto. Mas, ao deparar-se com o seu "algoz", que o cumprimenta com a afabilidade de sempre, entra em descontrolo total, acabando por ser levado para o manicómio. Enfim, uma história feita de quase nada, mas que nos dá a dimensão da tensão das nossas relações sociais e da fragilidade do equilíbrio psicológico de cada um de nós.
Muitos outros merecimentos têm as histórias de Istvän Örkény, mas, hoje, não quis deixar de realçar a estreita relação que existe, em muitos dos seus textos, entre a anedota e a história com um sentido e uma estrutura específicos, que lhes conferem uma inequívoca dimensão literária. Melhor, será difícil fazer. Diferente, talvez. Eu não seria capaz!

domingo, 24 de agosto de 2008

TRÊS ROMANCES HISTÓRICOS

De férias com livros, andei à bolina do blog. Mas atento. Um olho no blog, outro nas leituras. De regresso, começo aqui alguns apontamentos breves. E começo por 3 romances portugueses que se lêem muito, muito bem, o que só por si, é óptimo.



Escrita elegante, sequência dramática muito bem tecida. Simplicidade e eficácia como é normal na escrita de VGM. Um quadro colorido da vida em Lisboa durante a ocupação francesa traçado com imensa finura e saber.

É apaixonante. Mas prometia mais. Embala para uma narrativa a sugerir outro fôlego. E fecha com um truque final como se o autor fosse um deus azedo e mal disposto que resolve pôr um ponto final na história, já farto de brincar com uma figura a que tinha dado dimensão, carne e uma promessa de outros voos.

Em resumo, um daqueles casos relativamente raros de uma narrativa que tinha mangas para muito mais.




O Mário sempre foi um escritor/jornalista que tem de contar uma história e vai direito ao fundamental A sua ternura malandra é sempre deliciosa e incapaz de tratar mal mesmo as piores personagens.

É assim que nos dá o espírito, o cheiro, o tom da época, os anos 50 de um sedutor carregado de uma ingenuidade algo devedora daquela que vem dos filmes portugueses dos anos 30/40 e que faria parte do nosso ambiente lisboeta mais pequenino e provinciano do que cosmopolita e dado aos grandes arroubos de alma. Era um tempo em que ainda se escreviam cartas de amor…



Um ritmo narrativo muito bem conseguido e muito na moda na construção de um puzzle de tempos que se misturam saltando uns por cima dos outros que aqui fazem todo o sentido porque torna ofegante e emaranhada a sequência dos tempos como é pretendido para dar sentido à figura visionária, contraditória, modernista e obsessiva de Duarte Pacheco. Prova de como se pode fazer um belíssimo romance histórico sem pastelices nem moralidades de cordel.

sábado, 23 de agosto de 2008

"Quando alguém lê um livro meu perto de mim, sou uma criança envergonhada."


"Nunca, por mais que me cruze com pessoas a lerem os meus livros nas paragens de autocarro, nunca, por mais que veja universitários a caminharem despreocupados com os meus livros debaixo do braço, nunca, por mais que traduzam os meus livros e haja pessoas a lê-los em línguas cheias de consoantes, nunca heide ficar indiferente no momento em que alguém esteja a ler um livro meu perto de mim. Nas palavras que escrevi permanece aquilo que pensei durante um momento, ou durante um ano, ou durante a vida toda. Nas palavras que escrevi permanece aquilo que fui, aquilo que não sei se ainda sou. Quando alguém lê um livro meu perto de mim, sou uma criança envergonhada."

José Luís Peixoto escreve em "Uma Casa na Escuridão"

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Crimes Exemplares

Max Aub escreve nestes Crimes Exemplares confissões de quem cometeu actos brutais, de quem acabou com a vida de outro. Mas em todos há uma justificação, um porquê. O autor amansa a nossa repugnância através de um sentido de humor particular, através de uma curta narrativa de contextualização desses crimes, às vezes tão curta como um instantâneo, uma fotografia que nos faz imaginar o resto dos actos (e nós os leitores exigimos espaço de criatividade, espaço de especulação). Tão curtos como “Para dizer a verdade, ninguém suportava a minha irmã.” ou “Matei-a porque me doía o estômago.”.
Mas as histórias são muitas, além destas confissões temos os “Outros Crimes Mexicanos” e “Dois Crimes Barrocos”. Em todos o autor nos surpreende pela simplicidade, pela astúcia, pela a forma como nos apresenta o assassino e nos faz rir.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Amantes e Inimigos


Tenho o terrível defeito de tentar ler todos os livros de um autor que gosto. Esta acontecer com a minha escritora de eleição, Rosa Montero.

Este é um livro de contos.

Numa pequena explicação que nos dá ao início do livro, a nós leitores, que merecemos todas as explicações dos autores: como leitora aprecia os contos mas como escritora prefere os romances, porque lhe dá mais possibilidades “mais propícios à aventura e por suporem uma longa e incerta viagem ao fabuloso mundo do imaginado”. No entanto ela vê os seus contos como “uma espécie de exploradores narrativos, uma sonda aérea lançada em direcção a um novo campo expressivo.”. Talvez muitos autores fazem os seus contos um estádio do seu processo criativo, lembro-me de Murakami que no livro “A Rapariga que Inventou o Sonho”, encontramos ai personagens e narrativas que aparecem noutros livros dele.

Estes contos de Rosa Montero entusiasmam, todos eles falam de relações amorosas onde por vezes a paixão é afastada na vida das pessoas, pelos receios, por dificuldades do quotidiano ou por outras razões. A relação amor ódio está muitas vezes presente, tal como no livro de Rubem Fonseca “Ela e outras mulheres” que parece a versão deste livro no masculino. Engraçado, como estes autores tão opostos nas suas ideias estão tão próximos nos seus livros, nas suas narrativas. Quase que podíamos dizer num campo puramente literário que Rosa Montero e Rubem Fonseca são “Amantes e Inimigos”, estes dois escritores de países que fazem fronteira connosco – e nós leitores portugueses aqui no meio deste romance.

Dos contos aqui apresentados, não vos sei dizer qual o preferido. Gostei especialmente do “A glória aos feios” que nos apresenta dois adolescentes que vivem um pouco excluídos pelas suas naturezas físicas e que um dia por acaso encontram-se “Foi no dia 11 de Maio e, embora talvez não o recordem, quando os olhos de Lolo e Lupe se cruzaram, o mundo tremeu, os mares agitaram-se e os céus encheram-se de meteoros ardentes. Também os feios e os tristes têm os seus momentos de glória.”

Vou continuar a ler tudo dos meus escritores preferidos, eu, um leitor obcecado.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

O eterno retorno


Desde que tenho memória de mim, vejo-me como um leitor. Fui fazendo o meu percurso, iniciado com as aventuras dos “Cinco” e dos “Sete” da Enyd Blyton. Lembro-me de muito jovem ter descoberto o Hemingway e o Steinbeck que me maravilharam. Descobri os autores russos. Enfim, fui fazendo o meu trajecto nem sempre rectilíneo nos meandros da literatura. Confesso que havia um tipo de literatura que eu considerava um género “menor”: o romance policial. Tal impressão desapareceu com o empréstimo por mão amiga do “Assassinato de Roger Ackroyd” da Agatha Christie. E foi “tiro e queda”. Fui descobrindo outros autores e tornei-me leitor assíduo de policiais. Há vários autores que me marcaram: Dashiel Hammet, Raymond Chandler, James Ellroy, Patrícia Highsmith, Dona Leon, etc. Numa fase posterior descobri o maravilhoso Manuel Vasquez Montalban e o seu detective Pepe Carvalho, marxista ala gastronómica, e o seu fiel escudeiro Biscuter. Andrea Camileri criou uma personagem em homenagem a Montalban: o inspector Salvo Montalbano: são romances deliciosos numa Sicília bem real, apesar de situados numa imaginária Vigata. E há um humor muito fino que percorre os romances de Camileri, um autor que começou a escrever tardiamente. Num estilo mais denso, com personagens também elas desajustadas (um mote nos policiais), ambientes mais negros e opressores destaco os autores nórdicos. O sueco Hening Mankel que passa metade do ano a escrever na Suécia natal e a outra metade a dirigir uma companhia de teatro moçambicana. E os islandeses Arnaldur Indridason e Yrsa Sigurgardottir.
Mas a minha verdadeira paixão no domínio dos romances policiais são os livros do Simenon. O modo como o inspector Maigret se vai imbuindo do ambiente, dos hábitos, costumes, estados de alma das pessoas é para mim encantador e fascinante. E a galeria de personagens assim escalpelizadas (de costureirinhas a grandes “bom vivant”, mas sobretudo o que poderíamos chamar de “o povo”) é imensa porque o Simenon escrevia a um ritmo impressionante. E há também os romances “romances” também eles muito bons, onde destaco “Bairro Negro” e “O Homem que Via Passar os Comboios”. Como verdadeiro apaixonado tenho (com 99.99% de certeza) todos os livros do inspector Maigret (muitos deles livros de bolso da “livros do Brasil” comprados em alfarrabistas de Lisboa, outros em língua francesa ou inglesa). Como verdadeiro devoto percorri a Liége natal de Simenon em busca dos vários sítios que marcaram a sua vida nessa cidade.
E tenho um ritual de leitor. As Edições Asa estão de há uns anos a esta parte a lançar os livros do inspector Maigret e os romances “romances”. Assim que vejo um nos escaparates, e apesar de já ter o livro noutra edição, compro-o sofregamente e paro tudo o que estiver a ler para me deliciar com uma descida do inspector Maigret à realidade de mais uns personagens. No caso presente foi “Maigret e a Amiga de Madame Maigret”, mas pouco importa.

Eugénio de Andrade



Tenho esta pequena relíquia guardada comigo e que vinha junto de um livro de Eugénio de Andrade adquirido num alfarrabista em Lisboa. Quando Paulo Ventura colocou a Carta de Almada Negreiros lembrei-me deste postal de Eugénio de Andrade enviado a alguém chamado Helena. Fala do Miguel (filho adoptivo). Tenho comigo dentro do Livro “Branco no Branco”. Partilho convosco . Eu que sou apenas um leitor com sorte. Talvez um dia passe pela Fundação Eugénio de Andrade e ofereça este postal.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

AMÉLIE


"TEMOR E TREMOR" de AMÉLIE, petite AMÉLIE

A referência de Alberto Manguel a Amélie Nothomb fez-me recordar o livro da autora, "Temor e Tremor" (edição portuguesa da ASA). Na verdade, e como diz Manguel, trata-se de um romance que conta uma história, a história de Amélie (uma jovem europeia), funcionária durante um ano, de uma empresa japonesa, sediada em Tóquio. A história desenvolve-se em torno de uma relação complexa, tensa, entre Amélie e outros funcionários da empresa, todos japoneses e imbuídos de uma mística empresarial muito própria. O choque de culturas constitui a matriz dos conflitos que se vão sucedendo. Entre esses conflitos, avulta o de Amélie com a sua superiora hierárquica, a belíssima e arrogante Fubuki (a "Tempestade de Neve"). A narrativa está centrada na primeira pessoa e será, pois, através de Amélie, dos seus actos, dos seus sentimentos, dos seus valores, que o leitor vai ter acesso ao desenrolar da história-conflito. O que, no entanto, não o obrigará a tomar partido, pois as perspectivas que a narradora lhe propõe são sempre matizadas por alguma dúvida interpretativa, expressão da sua propensão para a tolerância, para a compreensão do outro (mesmo quando por ele é ofendida).
Um dos aspectos mais interessantes da obra é a caracterização que nos faz da empresa nipónica: as suas regras de funcionamento, os valores que lhes estão subjacentes: hierarquia, disciplina rígida, obediência total. Um sentido de honra-dever, que impregna todos os actos do quotidiano, mesmo os mais insignificantes. Enfim, algo que é inerente à sociedade feudal do Japão Medieval, que se consubstanciou nas relações dos samurais com os seus senhores. Samurais que devem temer - e tremer - quando se dirigem ao seu superior. Mas Amélie tem dificuldade em aceitar este modo de ser e de estar e contra eles se revolta. Mas, ao mesmo tempo, tenta compreender, pois, acima de tudo, admira, ama, a civilização japonesa - um ideal que lhe vem da infância e que ela não que ver maculado.
O elemento central da história é a relação de Amélie com a sua chefe - um misto de amor e ódio, que a japonesa maneja com a subtileza e o requinte de que só um oriental é capaz - o que leva Amélie a situações profissionais degradantes. Assim, de despromoção em despromoção, acaba por ficar encarregada da limpeza das retretes. Humilhação que ela não deixa que a afecte psicologicamente: tudo o que lhe vai acontecendo acaba por ser fonte de alegria e de liberdade – a liberdade interior que experencia a freira do Carmelo encarregada das tarefas mais rotinizadas e aviltantes.
Talvez este romance não seja obra maior da moderna literatura francesa, mas encerra, em cada um dos seus capítulos, uma enorme pujança narrativa, que nos obriga a ler, de um só fôlego, as suas 117 páginas. O que me faz dar razão a Alberto Manguel: uma boa leitura ainda é o grande indicador de uma boa literatura...

sábado, 16 de agosto de 2008

História Universal da Infâmia


Porque não tenho palavras para descrever esta prosa tão intensa de Jorge Luís Borges atiro para aqui pequenos excertos para verem como é bom ler esta "História Universal da Infâmia".


"A partir de 1899 Eastman não era só famoso. Era chefe eleitoral de uma zona importante, e cobrava fortes subsídios das casas de lampeão vermelho, das casas de jogo, das prostitutas das ruas e dos ladrões deste sórdido feudo. As associações consultavam-no para organizar mal-feitorias e os particulares também. Eis os seus honorários: 15 dólares por uma orelha arrancada, 19 por uma perna partida, 25 por uma bala numa perna, 25 por uma punhalada, 100 pelo negócio completo. Às vezes, para não perder o costume, Eastman executava pessoalmente uma encomenda." Pág. 49/50

" Em 25 de Dezembro de 1920 o corpo de Monk Eastman amanheceu numa das suas centrais de Nova Iorque. Recebera cinco balas. Desconhecedor feliz da morte, um gato ordinário rondava-o com certa perplexidade." Pág. 54

"Este é o final da história dos quarenta e sete homens leais - mas que não tem final, porque os outros homens, que não somos leais talvez, mas que nunca perderemos de todo a esperança de o ser, continuamos a honrá-los com palavras." Pág. 70

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Nenhum Olhar


Este livro é um poema. Li palavras, frases, parágrafos que me fizeram tremer. Foram momentos de puro e autêntico prazer. Parece que este livro vem de dentro, muito dentro. Personagens que estão entre o real e o fantástico: Uma voz dentro da arca que diz coisas que viciam as mulheres que a escutem; o velho Gabriel que tem 150 anos e que foi transportado por pássaros impedindo de ir ao funeral dos irmãos gémeos; O Demónio com a sua intriga, cínico; o Gigante - brutal mas que morreu atacado por uma mantilha de cães; A prostituta cega - cegueira que atinge muitas gerações na sua família; A cozinheira que no auge da sua paixão faz cozinhados maravilhosos, visualmente maravilhosos; Os gémeos unidos por um dedo; O escritor que está num quarto sem janela e que só se escuta a sua caneta a escrever num papel será José Luís Peixoto que está presente discretamente no seu livro? No final tudo se precipita para o fim, para esse nenhum olhar que já estava presente.
Este é um livro para saborearmos devagar. Parar para reler um parágrafo, uma página e até um capítulo. Recomenda-se a leitura de todas as letras deste livro.

"«O Senhor Juarroz» e como organizar uma biblioteca"

Uma passagem de um dos senhores de Gonçalo M. Tavares, "O senhor Juarroz". Uma das que gosto.
Para as "organizadorAs de bibliotecas" que se perdem ou se encontram no meio de livros.


A biblioteca
«O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, Porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de
cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática capaz de desvendar a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2 1 9 1 30 1 93
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, um bloco gigante coberto de números, disse: Já sei! E apresentou depois a fórmula da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo. Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.»

"Mais um livro que li com prazer (não é leitura de férias, porque ainda estou a trabalhar)"



«Finalmente, ao fim de muitos anos, aconteceu uma coisa absolutamente inesperada. Por vezes uma pequeníssima mudança é o suficiente. Dissemina-se pela trama imensa de recordações e hábitos que é uma pessoa. Irresistivelmente. E muda toda uma vida. Nada há que permaneça. O mundo real não tem recordações. Vem sem etiquetas.»
Começa assim, Lars Gustafsson, em "A amante colombiana", editada, entre nós, pela Asa em 2001.
«Estava bem, estava esmagadoramente bem. Estava tudo bem. Mas havia também qualquer coisa de desagradável. Esta passagem de uma forma habitual de se relacionar com uma pessoa para outra. Como por acaso, tinha dado o salto de um quase desconhecimento para uma espécie de conhecimento profundo. Tinha saltado por cima de tudo o que se encontrava entre as duas coisas. E esse «entre» era grande como os oceanos e os continentes. Ao mesmo tempo, era justamente o desconhecimento que se tornava aliciante. Dava-lhe um pouco a sensação de se preencher com o conteúdo de outra pessoa. Ou de, por um momento, entregar o seu próprio conteúdo, já por demais conhecido, a alguém totalmente desconhecido.»
É um livro forte e bonito que se lê vorazmente. Gostei muito!!
Lars Gustafsson é o autor de "A morte de um apicultor", também editado, pela Asa.




quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Um Diário de Leituras


Acabei de ler um livro do autor que dá o mote a esta nossa aventura, Alberto Manguel. O livro chama-se Um Diário de Leituras e vem classificado como sendo um ensaio, tendo recebido aliás o Prémio Grinzane Cavour (Itália) na categoria de ensaio. Ao deparar-me com este rótulo preparei-me mentalmente para o modo “estudo” de leitura, munido de uma imaginária caneta de tinta fluorescente. Quem parta para esta obra com esse quadro mental vai ficar bem surpreendido e pela positiva. O livro é uma verdadeira lufada de ar fresco. E o título faz jus ao que se passa no interior do livro: é mesmo o diário de um leitor. Alberto Manguel resolveu, no espaço de um ano, reler um livro por mês de entre os seus livros preferidos. Estes livros são muito diversificados indo desde O Signo dos Quatro de Arthur Conan Doyle, às Afinidades Electivas de Goethe, passando, por exemplo, pela Invenção de Morel de Adolfo Bioy Casares. O autor vai relatando-nos as suas impressões à medida que vai relendo cada livro, faz citações de partes que acha mais significativas ou interessantes. Este exercício estimula a memória e vêm à baila outros autores, com pensamentos, citações, ou até simplesmente a descrição do conteúdo da secretária de um escritor. Facto assaz curioso, estas releituras permitem ao autor um olhar sobre a actualidade. Por exemplo, a Invenção de Morel serve de mote à interpretação da crise económica que aqui há uns anos assolou a Argentina. A propósito do Livro de Cabeceira de Sei Shonagon (dama de companhia de uma imperatriz do Japão), reflecte sobre a iminente invasão do Iraque. E sugere mesmo que se faça um livro de cabeceira para os dirigentes mundiais onde deve constar do Canto IV d’Os Lusíadas: “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça!....”.
E trata-se de facto de um diário que acompanha o dia-a-dia do autor ao longo destes meses. A sua viagem a Buenos Aires, as suas viagens ao Canadá (onde residiu), mas sobretudo o seu porto de abrigo: um casa que imagino magnífica numa pacata aldeia francesa. Casa essa com jardim e pomar. Assistimos às peripécias de uma aldeia: é ilustrativo o episódio em torno da decisão sobre a partir de que hora deve o sino começar a tocar. Para os que moram mais longe, a hora preferida é as seis; para os que moram mais próximo o madrugar tão cedo é quase um crime. E assistimos com prazer à instalação da biblioteca do autor num celeiro reconstruído e sentimos com ele a fruição de desempacotar os caixotes de livros. Manguel chega a dormir a na biblioteca para se apoderar do lugar.
Em suma, um livro excelente.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Livros à Solta

Dieter Roth

O tema do Projecto com Escolas do próximo ano lectivo na Fundação de Serralves vai ser "Livros à Solta". Fica esta pequena e interessante curiosidade aqui, onde os livros já andam à solta.

Um pequeno balanço (1 mês)

Escultura de Adam Bateman

É demorada esta empreitada de ler todos os livros de ouro. São mais aqueles que esperam ansiosos no monte dos livros para ler do que aqueles que repousam tranquilos na prateleira dos que já foram lidos. Este lugar (7 leitores) faz-nos abrir mais portas, descobrir mais livros, encontrar preciosidades. Quase não há espaço para tantas promessas de leitura, quase não há tempo para cumprir o prometido.
As histórias dos livros confundem-se com a nossa história. Existimos nos livros que lemos. Quando olharmos para nós, vamos ver que já vivemos muitas vidas numa só.
Este é o meu balanço! Eu que sou apenas um medíocre leitor.

citação de Marguerite Yourcenar


Uma citação da Marguerite Yourcenar: "O nosso verdadeiro local de nascimento é aquele no qual lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós próprios. As minhas primeiras pátrias foram os meus livros."

O leitor de Alberto Manguel


Transcrevo aqui a noção de leitor perante a escrita do Alberto Manguel no livro “Um diário de leituras” que ando a ler com muito prazer: “O leitor contradiz o método do escritor qualquer que ele seja. Enquanto leitor, eu sigo sem grandes cuidados um enredo cuidadosamente pensado, permitindo-me ser distraído por pormenores e por pensamentos aleatórios; por outro lado, leio uma obra fragmentária como se estivesse a ligar os pontos, em busca da ordem. Em ambos os casos, porém, ando à procura de (ou imagino) uma ligação entre o princípio e o fim, como se todas as leituras fossem, pela sua própria natureza, circulares”.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

CARTA INÉDITA DE ALMADA NEGREIROS

COMO É POSSÍVEL ESCREVER TÃO CLARO EM MOMENTO TÃO ANGUSTIANTE E DE DESEPERO!

Os Bons Leitores


Transcrevo aqui um pequeno texto do prólogo da primeira edição da “História Universal da Infâmia” de Jorge Luís Borges porque glorifica a nossa condição de leitores, de bons leitores:
“Quanto aos exemplos de magia que fecham o volume, não tenho outro direito sobre eles que os de tradutor e leitor. Por vezes creio que bons leitores são cisnes mais tenebrosos e singulares que os bons autores. (…) Ler, para já, é uma actividade posterior à de escrever: mais resignada, mais cortês, mais intelectual.”

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Entrevista a valter hugo mãe


Para quem perdeu a entrevista ao Público do ©, tem aqui o link para a entrevista na íntegra. Confesso que ainda não o tinha lido, apesar do prémio José Saramago do ano passado. Estou agora a ler O remorso de Baltasar Serapião (e a ficar fascinado com a escrita) e depois conto passar para o Apocalipse dos trabalhadores




Abraços

domingo, 10 de agosto de 2008

CARLOS V, OS CLÁSSICOS E GÓGOL



Levei alguns segundos a tentar descobrir quem seria o Carlos quinto do email recebido ou, melhor, “o Carlos V”. Também de pequenos desacertos e distracções se faz a leitura….

O Carlos V de Ventura veio dar-nos a todos uma pequena e muito séria lição. Muitas vezes, também na leitura, deixamo-nos levar pela urgência das novidades, pela voragem do consumo, pela sedução terrível do marketing, pela sucessão de novos e “fantásticos” autores que alguns críticos promovem por incumbência das editoras.

Vamos arriscando e lendo alguns livros engraçados, outros assim-assim, outros que nem por isso, um ou outro genuinamente interessante ou apaixonante até. Mas ficamos sempre com a sensação de que não lemos nem uma pequena parte do que o mercado nos oferece.

Neste caminho algo angustiante com que pretendemos estar à la page vamos deixando para trás os clássicos que muitas vezes não lemos e andamos a adiar para um dia em que…

Flaubert, Camilo, Tolstoi, Goethe, Melville, Eça… E também Aristóteles, Dante, Shakespeare, António Vieira. E ainda Aquilino, Steinbeck, Conrad, … Tantos!

Talvez os modernos estejam mais próximo de nós. Talvez seja mais difícil a leitura daquilo a que se chama os clássicos. Mas também as alegrias no final são quase sempre bem maiores.

Tenho a sensação de que os clássicos têm para nós um prestígio quase sagrado que nos obriga a entrar nas suas páginas com o respeito e a compostura de quem entra nas naves imensas e sombrias das grandes catedrais.

Os clássicos exigem da parte do leitor um compromisso mais intenso, uma entrega mais fervorosa, um esforço maior no sentido de mergulharmos nos pressupostos de um tempo outro, com outras paisagens, outros costumes, outros ritmos, outros olhares.

No final, os clássicos oferecem-nos o júbilo da pedra preciosa, a maravilha da frase e do parágrafo, a profundidade do olhar, o encontro com o mais fantástico e terrível da nossa tão imperfeita humanidade.

Por isso…

A propósito, um dos clássicos que mais me entusiasmou nos últimos meses foi os “Contos de São Petersburgo” de Nikolai Gógol. Um primor de narrativa, de escrita e também de tradução. Pode ser lido dos 10 aos 80 anos. E ainda mais, as “Almas mortas”, também de Gógol são outro mergulho nos primores da observação e reflexão sobre a natureza humana.

Autores irritantes

Temos todos utilizado este espaço para falar do que mos encanta. Hoje vou quebrar a regra e vou falar do que me irrita (um exemplo entre muitos). Há escritores a quem não dou sequer opotunidade de me irritarem porque nunca os li, nem lerei. Outros, como o Pedro Paixão, experimentei em tempos longínquos, e a memória é a de irritação com o escrito. Mas, nos saldos de uma livraria havia um livro (Onze noites em Jerusalém) a um euro e resolvi dar um nova oportunidade. O livro foi rapidamente condenado ao inferno do david Toscana. Irritou-me profundaamento o pedantismo e o convencimento. Foi bem feito: que me sirva de emenda.
Abraços.

sábado, 9 de agosto de 2008

URAS

"O GRANDE PROBLEMA COM OS LIVROS NOVOS É QUE IMPEDEM A LEITURA DE LIVROS VELHOS" (JOSEPH JOUBERT)

CARLOS V

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Autores memoriosos e amnésicos

O Tiago evocou aqui a Rosa Montero e o José no seu comentário evocou um belíssimo livro dela: A louca da casa. Nesse livro a autora faz uma distinção assaz interessante que aqui repesco. Ela divide os autores em memoriosos e amnésicos. Os primeiros são os nostálgicos do seu passado, aqueles que pensam ter perdido o paraíso em algum momento da infância e escrevem, diz ela, “para o tentar recuperar, para retomar aquilo que se foi, para lutar contra a decadência e o fim inexorável das coisas”.
Continuando com este raciocínio, e simplesmente agarrando noutros nomes, a autora alega o contrário: que outros escritores encontraram na literatura a forma de escapar do inferno ao qual a sua infância esteve submetida; adoptaram-na como um meio de construir para si próprios um lugar seguro para se refugiarem da ameaça exterior. Estes, continuo a citar Rosa Montero, são os autores amnésicos, os que “não querem ou não podem recordar; certamente fogem da sua própria infância e a sua memória é como um quadro mal apagado”. Para ela, mesmo as suas formas de escrever são diferentes. Os primeiros, como Tolstoi, “partilham um estilo literário mais descritivo, reminiscente, cheio de móveis, objectos e cenários carregados de significado para o autor e desenhados até ao mais pequeno detalhe porque se referem a coisas reais petreamente instaladas na recordação”. Os segundos, exemplificados por Conrad, “apesar de reproduzirem quase ponto por ponto uma experiência real do escritor, não têm nada a ver com o rememorativo e autobiográfico. Quando Conrad fala da selva, não está a descrever a selva do Congo belga, mas sim a selva como categoria absoluta e nem sequer isso, porque essa floresta enigmática e horrivelmente fértil representa a escuridão do mundo, a irracionalidade, o mal fascinante, a loucura”.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Terra de Ninguém

Tenho vindo a descobrir, tardiamente mas com crescente entusiasmo, a colecção “Ovelha Negra” da Editora Oficina do Livro. Trata-se de uma colecção com muito bons livros latino-americanos. Acabei agora de ler um livro de contos dessa colecção que me deixou fascinadíssimo: Terra de Ninguém do mexicano Eduardo António Parra. Os contos situam-se na paisagem rural mexicana, na maior parte dos casos aldeias áridas e inclementes, mas também em paisagens urbanas do Norte do México e no El Dorado americano apenas sonhado, relatado ou entrevisto. Os personagens desses contos, os últimos entre os últimos da sociedade, estão entre os dois lados de uma linha/fronteira que dá o mote a cada conto: a linha entre o real e o fantástico/mágico; a normalidade aborrecida e a vida nas margens da sociedade feliz e trágica ao mesmo tempo; a marginalidade com moral e a corrupção; a ponte entre o México e os Estados Unidos que funciona como montra para contemplar de perto os sonhos; a modorra de uma aldeia isolada versus a turba pagã incendiada por temores ancestrais, etc.. Perpassa por estes contos a crueldade, a violência, a tragédia, mas também as contradições do ser humano. Aconselho a leitura ao som da banda americana Calexico, uma banda também ela da fronteira entre dois mundos e com a qual sentimos a aridez do México.

"Apaixonada pela leitura"




terça-feira, 5 de agosto de 2008

"Os efeitos da leitura"



Já que falamos de livros e de leituras, gostaria de lembrar os tempos (prefiro pensar que isto já não acontece!) em que ler era ociosidade e os efeitos de "muita leitura" poderiam ser desastrosos, pelo que todo o cuidado era pouco, face aos livros !

Voltando ao livro de José Morais "A arte de ler" (digo voltando porque diversas vezes o tenho referido) cito uma passagem que, por sua vez, é também uma citação, de "Dom Quixote" - Cervantes.

"É preciso saber que o referido fidalgo, durante seus momentos de ócio (que eram a maior parte do ano), punha-se a ler livros de cavalaria com tanto entusiasmo e gosto, que quase esqueceu completamente o exercício da caça e a administração de seus bens... Em suma, enfrascou-se tanto em sua leitura que passava as noites de claro a claro e os dias de escuro a escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que veio a perder o juízo".

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Senhor Brecht - Gonçalo M. Tavares

" O mestre O mestre mais importante da cidade queria desenhar uma circunferência, mas errou e acabou por desenhar um quadrado. Pediu aos alunos para copiarem o seu desenho. Eles copiaram, mas por erro, desenharam uma circunferência." Gonçalo M. Tavares - Senhor Brecht

domingo, 3 de agosto de 2008

A Prisão de Jesús Zárate

A partir da leitura de O último Leitor do David Toscana, e da consulta da colecção Ovelha Negra da Oficina do Livro, fui parar (guiado também pela mão do José) ao excelente e belíssimo A prisão de Jesús Zárate. Para vos falar deste livro tomo de empréstimo as palavras de Urbano Tavares Rodrigues no também excelente prefácio ao livro (A filosofia na Cela).
“Liberdade, justiça, encarceramento, eis as três questões quase incessantemente vividas, sentidas, discutidas por quatro presos numa pequena cela de uma prisão colombiana, longe das grandes cidades.
Antón Castán, o mais jovem, inocente do crime de que o acusam e que ele acabou por confessar após várias sessões de tortura sem saber sequer de que se tratava, entretém-se a relatar num diário, que bem pode tornar-se num romance, o dia-a-dia daquele espaço fechado habitado por mais três homens. Mister Alba, já velho, zarolho majestoso, vestido a rigor, é um burlão de alto coturno, aliás culto, versado em leis, com mil histórias para contar, talvez mitómano. David Fresno, jovem com estudos universitários, loucamente apaixonado por uma quase mítica Nancy, merecedora de todos os carinhos e desvarios, foi condenado por falsificar a assinatura de um tio rico e sedentário. O quarto recluso, Braulio Coral, pintor de paredes, foi ali parar por crime de bigamia. É naturalmente menos instruído do que os outros, mas o facto de com eles conviver permanentemente, de os escutar, de ter por vezes que dar opiniões, fê-lo evoluir e ganhar até meios de expressão. A atmosfera daquela cela é assim desconcertante para o leitor desprevenido. (…) E de tão irreal que tudo isto é, o filosofar dos presos, o seu humor por vezes de arame farpado, o seu relacionamento entre si e com os funcionários e carcereiros, privados que estão das duas horas de sol no pátio do recreio, o irreal e o absurdo tornam-se imensamente reais.” A história sofre evoluções, mas deixo ao leitor o prazer da descoberta de como se quebra a monotonia pesada da prisão. Na opinião do Urbano Tavares Rodrigues há fortes marcas borgesianas neste romance tão complexo e interrogativo; e há outras: as de O Processo de Kafka; de Crime e Castigo, de Dostoiévski e, acima de tudo, de O Estrangeiro, de Albert Camus. Urbano Tavares Rodrigues termina com uma afirmação que subscrevo: “E por aqui me fico, na certeza de que nenhum leitor inteligente, exigente e sensível deixará de amar A prisão de Jesús Zárate.

A SONATA DE KREUTZER



"A Sonata de Kreutzer" de Lev Tolstoi

A escrita de Tolstoi é impressionante. O tema nesta pequena novela é o ciúme e também, a solidão dentro do casamento, o ensimesmamento, e a incapacidade de entender o outro.

Esta história de ciúme e crime é contada pelo seu protagonista a um desconhecido durante uma viagem de comboio. Ao lê-la senti-me despido, questionado, atirado contra as minhas mais fundas paredes. Tolstoi sabia tudo. Até chateia. A sua escrita atravessa a alma humana até onde nem imaginamos que se possa ir.

Como é normal na Relógio d'Água, há que assinalar aquilo que me parece ser uma extraordinária tradução de Nina e Filipe Guerra. Pergunto-me o que é que me faz gostar de uma tradução a partir de uma língua que não conheço e que não posso comparar com a transposição para português.

Digo que é uma boa tradução quando sou capaz de reconhecer uma música que toma conta de mim em português mas que mantém um grau de estranheza, uma ressonância, uma escolha vocabular, uma construção imagética que me transporta para um outro universo sonoro e linguístico que não conheço mas adivinho através do bosque da tradução.

Sobre a tradução muito gente importante reflectiu, escreveu e explicou por certo muito melhor do que eu o faço. Mas é importante tentarmos perceber o trabalho de cateiro, de postino. que é o do tradutor que pode oferecer-nos a alma do original ou destraí-la sem só nem piedade.

Desta novela saiu uma outra tradução feita não a partir do russo mas do inglês com o título de “Ensaio sobre o ciúme” que não tem nada a ver com o título original. No cinema, onde o critério comercial é mais premente, abundam estas alterações dos títulos.

Mas o mercado manda e, ainda há pouco, li um divertidíssimo romance de Steinbeck cujo título original é “Tortilla flat” (nome do lugar onde se passa a acção) e em que, na versão portuguesa, optaram por intitulá-lo: “Milagre segundo S. Francisco”…

sábado, 2 de agosto de 2008

LEITURA E LITERATURA


Amélie Nothomb

ALBERTO MANGUEL NA ENCRUZILHADA DA LEITURA COM A LITERATURA


Alberto Manguel, o autor de "Uma História da Leitura", obra premiada em França, em 1998, deu uma entrevista ao "Figaro Litéraire", na qual fala da sua paixão, da sua obsessão pela leitura. Começa por dizer que não pode impedir-se de ler, pois é algo mais forte do que ele. E, em abono do bem fundado dessa obsessão, cita Cervantes, que, no primeiro capítulo de D. Quixote, fala da sua compulsão pela leitura, que o leva a ler os bocadinhos de papel que encontra na rua.À pergunta do entrevistador sobre os seus gostos literários, diz que tanto pode encontrar prazer num conto policial como numa obra de filosofia. Acrescenta, ainda, que não consegue estabelecer qualquer distinção entre leitura e literatura. Para ele, tudo o que lhe dá prazer ler é... literatura! E o que lhe dá mais prazer é uma boa história, uma história cujo enredo seja susceptível de despertar o seu interesse. Por isso, verbera os autores do "nouveau roman", que privilegiam a desmontagem do texto em detrimento da própria história. Ou, como ele diz, valorizam a "ferramenta" do romance e não o romance. Considera, no entanto, que esse período chegou ao seu termo, pois autores recentes (refere-se ao universo da literatura francesa) vêm-se centrando na escritura de textos que valorizam, de cada vez mais, as estruturas romanescas. E, entre eles, aponta e valoriza Amélie Nothomb.

O olhar de um leitor




Enquanto leitores, temos a sensação subjectiva de que os nossos olhos percorrem as linhas impressas suave e continuamente da esquerda para a direita e de cima para baixo. Nada mais longe da verdade. Se equiparmos uma pessoa com uns óculos especiais que registam os movimentos oculares e lhe dermos uma texto para ler obtemos um registo do género que está em cima. Os nossos olhos fixam-se sobre uma palavra (e não necessariamente sobre todas as palavras) e depois há um movimento de salto dos olhos para uma nova posição na linha (movimentos sacádicos). Ocorrem também regressões, ou seja, movimentos dos olhos para trás, para uma parte já examinada da linha, sobretudo para porções de texto que não foram bem compreendidas de uma primeira vez.

Quando os nossos olhos se fixam sobre a linha impressa apenas uma pequena porção dessa linha fica disponível para análise (a denominada amplitude perceptiva; ver figura acima). A acuidade visual é muito limitada porque só uma área muito restrita em torno do ponto de fixação do nossos olhar vai ser dirigida para a fóvea (área de maior resolução da retina), enquanto que à medida que nos afastamos do ponto de fixação a informação vai ser dirigida para áreas da retina com cada vez menos resolução.
É a nossa mente, com um conjunto sofisticado de operações, que consegue transformar esta apreensão fragmentada da informação escrita na impressão subjectiva de uma leitura escorreita e suave. E, é claro, não estamos conscientes de nehum destes processos.
Abraços










sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Uma solidão demasiado ruidosa

Evoquei aqui o livro “Uma solidão demasiado ruidosa” de Bohumil Hrabal através de uma citação. Não queria, no entanto, deixar de vos chamar a atenção para esta pequena obra-prima, na minha modestíssima opinião.
O protagonista deste livro, Hanta, trabalha na cave de um depósito de reciclagem. “Durante trinta e cinco anos prensei papel velho, e se eu tivesse que optar de novo não quereria fazer outra coisa senão aquilo que fiz nestes trinta e cinco anos”. Trabalha com uma velha prensa e os seus dias passam-se a comprimir livros e papéis, actividade regada copiosamente de cântaros de cerveja. “Mas tal como na corrente turva de um rio que acaba de passar pelas fábricas de repente cintila um belo peixinho, assim também na corrente de papel velho brilha, subitamente, a lombada de um livro raro. Como que ofuscado, olho por uns momentos para outro lado e depois leio a primeira frase em que se fixam os meus olhos como um presságio homérico, e só depois deposito o livro entre outros belos achados numa caixa forrada com imagens santas que, por engano, alguém despejou na minha cave juntamente com os livros de preces. Depois começa a minha missa, o meu ritual, tenho não só que ler cada um desses livros, mas também colocá-los num dos pacotes, porque cada pacote que faço tem que ser embelezado, tenho que lhe dar o meu cunho pessoal, a minha assinatura”. A instalação de uma gigantesca prensa capaz de substituir vinte prensas como a de Hanta e o surgimento de dois jovens membros da brigada socialista de trabalho (bebedores de leite) remetem Hanta para um futuro repelente, transferido para a tipografia Melantich, onde iria empacotar apenas e só papel branco – ele que não podia viver sem a surpresa de a cada momento poder pescar, no papel repelente, um belo livro como prémio, então havia de ir empacotar papel branco, inumanamente imaculado? Hanta escolhe juntar-se aos seus livros e à sua velha prensa.
Este é um resumo possível do livro, mas não lhe faz inteira justiça. Por ele passam personagens mágicas, encantadas, que parecem flutuar acima do texto e da superfície do mundo. Mariazinha Borrada, personagem marcada pelas fezes, que ascende numa espiral de amores práticos (Mariazinha arranjou um carpinteiro que lhe fez toda a obra de carpintaria de uma vivenda, trocou-o por um canalizador, etc, etc.) até ao amor espiritual. O tio, agulheiro ferroviário reformado, a quem os amigos montam uma linha e um sistema de agulhas no jardim e a quem compram uma velha locomotiva. Duas ciganas que vendem papel ao patrão de Hanta e que trabalham para um cigano que todos os dias lhes tirava fotografias rodando o filme inexistente, enquanto as ciganas aplaudiam e rejubilavam. Há também todos as fugazes personagens a quem Hanta entrega livros que encontra (por exemplo o sacristão que se interessa por aviões). E o mesmo encantamento é dado à descrição aparentemente realista de cenas do quotidiano: um baile de aldeia, a fixação dos nomes dos escolhidos para as equipas de futebol para o fim-de-semana, uma estadia num hotel.
Se ainda não leram, quando tiverem um tempinho, leiam (com urgência), esta excelente narrativa.
Abraços