domingo, 28 de agosto de 2016

FRAGMENTOS



“FRAGMENTOS”

GEORGES STEINER

Steiner é um mestre. Numa entrevista concedida a Ramin Jahanbegloo afirma que “Gostaria de ser recordado (...) como um mestre de leitura, como alguém que passou a vida a ler com os outros.” E é isso mesmo que ele faz. Ensina-nos a ler e a pensar. E esse é talvez um dos maiores prazeres da vida.

Logo na segunda página deste imenso livrinho afirma que” A nossa própria existência é um acto de leitura contínua do mundo, um exercício em decifração, em interpretação no interior de uma câmara de eco, cujo volume de mensagens, de entradas semióticas, é incomensurável”.

Este livro é um exercício brilhante de reflexão num gesto de deliciosa fantasia literária.

É suposto tratar-se de um conjunto de reflexões sobre um pergaminho carbonizado e incompleto atribuído a Epicarno de Agra, moralista e orador do séc. II d.C., e encontrado nas ruínas da cidade romana de Herculano.

Epicarno de Agra é uma invenção de Steiner que utiliza este estratagema para falar sobre alguns grandes temas da cultura e do pensamento humano. A eloquência do silêncio, as virtudes da amizade em comparação com as do amor, a importância da educação e a raridade do talento, a realidade ontológica do mal e a omnipotência do dinheiro, os perigos da religião e a transcendência da música. E finalmente, a morte, a decadência da velhice e o elogio do suicídio e da eutanásia na escolha do momento de morrer.

Brilhante, motivador, fazendo a ponte entre filosofia, história e literatura, Steiner
oferece-nos um pequeno livro que exige tempo para “mastigar”, já que, com cada linha, cada parágrafo, cada tema abordado, inquieta-nos, interroga-nos, leva-nos a reflectir emocionadamente sobre grandes temas e questões que vão das mais vastas e antigas do pensamento humano às mais actuais.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

VER NO ESCURO


“VER NO ESCURO”

CLAUDIA R. SAMPAIO

Tenho aprendido a lutar contra o preconceito na minha leitura de poesia. Em boa parte devo-o ao trabalho que levei a cabo com o Pedro Quintas na organização da Antologia “POEMAS DA SAÚDE E DA DOENÇA – De Fernando Pessoa aos nossos dias”.

Ambos leitores fervorosos de poesia, com uma diferença de 28 anos de idade, apesar de uma larga disponibilidade ao desfrute da diferença, descobrimos que cada um de nós trazia consigo alguma forma de preconceito em parte geracional (e por isso mesmo também de discurso e estilístico) em relação a certos nomes de poetas.

A trabalhar um com o outro aprendemos muito a vencer preconceitos e a olhar de forma mais disponível para nomes que cada um tinha tendência a pôr de parte.

Foi o que me aconteceu também com a jovem Cláudia R. Sampaio.

Nas suas duas obras anteriores contavam-se dois livros, entre os quais um intitulado “A primeira urina da manhã”.

Este título irritou-me. Não gosto em poesia do excesso de mergulho num quotidiano limitado, por vezes rasca, que tem sido próprio de alguns poetas com cuja escrita francamente embirro (também tenho direito, quand même).

Só não deixei de lado este novo livro de Cláudia R. Sampaio porque foi publicado numa muito respeitável colecção de poesia dirigida por Pedro Mexia para a editora Tinta da China.

Folheei e percebi que se tratava de poesia mesmo. Da boa. De lei. Intensa e comovente. Trouxe-o para casa e li-o devagar e fiquei rendido à voz de Claudia R. Sampaio

Fui ler mais sobre a poeta e encontrei o que ela afirmou acerca do do tal objecto da minha embirração:

“O livro fala de coisas que me aconteceram numa fase da minha vida em que fui ao fundo e depois tive de renascer das cinzas, evoluir."

Resultado: vou à procura urgentemente da "Primeira urina da manhã", mea culpa e adiante.

A poesia deste "Ver no escuro" é intensa, é dura, é frágil, atravessa o escuro da vida à procura de um corpo, de uma casa, de uma cidade, da essência do amor.

Escrever assim rasga-nos. Talvez esta escrita seja a única forma de nos curarmos de muita dor. E eu pergunto-me: até que ponto é possível a autora continuar a manter-se inteira escrevendo desta forma? Não seria a única. Mas esta escrita exige habitar continuadamente numa dolorosa margem de si própria. Sei bem como a arte é uma forma de correr alguma espécie de maratona. Fico, por isso mesmo, muito ansioso pelo que possa estar para vir.

Quando for embora não deixarei
migalha de mim.
Levarei o cheiro a desorientada
melancolia e desastre
e não deixarei um cabelo que seja.
Levarei comigo as gatas e os livros,
a roupa deixo-a às minhas amigas,
o umbigo, à minha mãe.

Vou e não esqueço.

Partirei sem as orquídeas que
me assombram delicadeza
e sem os cactos que me superam
em estirpe.
Vou aberta como um eterno retorno
e na simplicidade de um bebé que
procura um sítio onde se sentar.

Aqui há a desactivação das almas à
nascença e a ovação aos tristes.
Há a exultação do silêncio profundo
e a altivez congratulada dos néscios.
Há o sangue cansado dos bichos
e a preparação para a fuga da terra.
Aqui há a terra sem terra e a saliência
do teu ombro morto.

Há orelhas frias que soluçam tarde
e uma cova a dizer adeus.

Por isso vou embora no sentido inverso
ao das árvores
numa descida clandestina à mulher que
morreu em ondas.
Vou embora e deixo o meu vinco que
não morre mesmo que me passem com
alcatrão fresco e me estiquem.

Deixo apenas a verdade dos meus
olhos quando pendurados na janela,
a sorrir mundos
deixo as abelhinhas doidas que ignoraram
o meu salto,
e o riso da desistência
porque ainda preciso de mim.

sábado, 20 de agosto de 2016

O AMOR EM LOBITO BAY




“O AMOR EM LOBITO BAY”

LÍDIA JORGE

Lídia Jorge é uma grande senhora da literatura portuguesa que escreve do alto de uma enorme elegância e de um rigor pouco comuns, sem que, no entanto, as suas narrativas se furtem ao lado mais duro e inquietante da humanidade.

Estes contos são atravessados por um sopro de estranheza e de inquietação. Subvertem mas também procuram encontrar um caminho de pacificação.

Surgem inofensivos, sem sobressaltos, sem anunciarem a dimensão que depois surge à medida que se vai caminhando na narração.

Serão talvez desiguais, embora sem nunca deixar a elegância e o rigor da escrita. Embora sejam contos há uma estratégia de escrita que os atravessa a todos, uma atitude permanente e sublinhada em relação à forma de olhar para o mundo e para a humanidade que os conduz a todos como num percurso que se pretende unificador.

Alguns emocionaram-me, entusiasmaram-me, fizeram-me pensar: “Boa, minha amiga! Acertaste no alvo com o melhor do teu talento!”

Nesse sentido, a “Imitação do êxodo” é um conto notável e impiedoso relativamente a uma certa vulgata pedagógica e bem intencionada mas que impõe boas intenções numa cegueira que não presta nenhuma atenção nem respeito pelo profundo olhar da criança.

O conto que dá o título ao livro “O amor em Lobito Bay”, depois de nos expor ao horror do ritual com que uma criança pretende tornar-se no melhor corredor do mundo e que é salva desse ritual por um secreto sentimento de bondade, de poesia e de solidariedade familiar .

“Overbooking” parte de uma extraordinária vitória por 9-2 num jogo de futebol. Mas torna-se terrível, assustador e, no entanto, revela-nos a necessidade de perdão que todos temos para os pequenos e grandes “crimes” de que alguns serão capazes em momentos únicos da sua vida.

Será sempre um prazer raro partilhar com Lídia Jorge a arte que a leva a percorrer os caminhos inquietantes e exaltantes da literatura.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

As cores da memória



    
A propósito da obra Mariola Landowska

Todo artista é um microscópio, um telescópio, uma máquina do tempo, um prestidigitador, um tomógrafo de almas. Todo artista, no delírio febril do processo criativo é, acima de tudo, um fabulador de estórias possíveis na sua impossibilidade, um narrador de estórias reais e potenciais. A verdadeira arte é a verosimilhança do inverosímil, é o recuperar da cor da memória dissipada que melhor se adequa ao exercício de relembrar. Mas desculpe-me o leitor por essas considerações iniciais algo genéricas. Certamente, fosse eu um artista, sentiria a arte de Mariola Landowska de forma distinta e seria capaz de exprimir mais claramente as motivações e as ambições mais profundas que caracterizam os artistas do nosso tempo. Mas quem escreve não é mais que um professor de física que tem como horizonte a expansão acelerada do universo e a matemática como seu guia. Ocorre-me o exemplo clássico de Giorgio Vasari, o artista que magistralmente descreveu-nos as vidas e as obras de Giotto, Brunelleschi, Donatello, Mantegna, Leonardo, Michelangelo, entre outros, e que demonstrou serem os artistas os mais capacitados para discursarem sobre a arte. Mas suponho que um físico que tem a imaginação como fiel instrumento de trabalho, terá alguma sensibilidade para escrever umas poucas linhas sobre o encantamento e o fascínio que suscita a obra de Mariola Landowska. Que assim o seja.

Ao contemplar as telas de Mariola Landowska somos impelidos a viagens inesperadas. Sentimo-nos indígenas banhando-se nas águas amazónicas da realidade e do mito. Ouvimos a orquestra selvática de símios e aves, o zumbido de insectos, o miar abundante de gatos multicoloridos, que elegantes  e melancólicos, executam Noturnos de Chopin. Ou então, mergulhamos na alma da Índia ou do Fado, enquanto pedalamos na bicicleta da infância da artista. E é muito ágil essa improvável polaca que abraça o universo e que o pinta com o optimismo da inocência infantil. Os meus olhos a acompanham até onde a minha imaginação pode ir, mas ela é demasiado curta e às tantas perco de vista a artista quando ela vira a esquina duma estrela distante e reaparece no cantar de um galo numa encosta de Alfama ou a molhar os pés na praia de Carcavelos. Porque a arte de Mariola Landowska conduz-nos à canícula dos trópicos, leva-nos a respirar a salsugem e os aromas fortes e cortantes, a sentir o fresco das montanhas e as águas gélidas do Mar Báltico. Cada tela de Mariola nos impele contingentemente para direções surpreendentes, mas inexoravelmente para o âmago dos temas em foco. Mariola Landowska tem o mundo como sua casa e as suas telas transpiram a multiplicidade tonal das suas experiências existenciais. E há na arte de Mariola Landowska a clareza estética que define inequivocamente a maturidade de um estilo. E jaz na essência dessa afirmação o delicioso paradoxo da antropofagia artística. Se pudéssemos encharcar uma esponja com solvente e passar numa tela de Mariola Landowska, e quando digo uma tela quero dizer qualquer tela de Mariola, e fizéssemos uma análise semântica-cromatógrafa-anímica encontraríamos fragmentos dum Chagall tropical, dum Lazar Segall centro-europeu, dum Portinari amazónico, duma Morisot onírica, e as cores de Macke, Kandinski e Gauguin. E sentiríamos o aroma de especiarias incorruptas e chás exóticos. E o sabor de raízes cozidas e de carnes de caça.

E a explicação do pretenso paradoxo é tão simples como o da mistura das cores: o verdadeiro artista é a encarnação intelectual e emocional de todos os artistas. O mesmo exercício, por exemplo, numa tela de Chagall revelaria uma Mariola Landowska embrionária ou em processo metamórfico. Mas para além da beleza pictórica e a estética do optimismo praticada por Mariola Landowaska há na sua arte um compromisso espontâneo com a humanidade nas suas múltiplas e variadas manifestações culturais. A arte de Mariola Landowska não é um exercício de expansão de um ego que procura justificar-se enquanto artista inserida na dimensão mesquinha duma sociedade de consumo e do seu mercado; muito pelo contrário, a arte de Mariola Landowska é fruto duma identidade madura e segura que desaparece ao capturar os seus sujeitos, mas que reaparece íntegra e indelével no resultado de cada tela. O conhecido dito segundo o qual a descrição duma imagem exige pelo menos mil palavras sugere que seria necessário um extenso e mágico texto para fazer justiça à arte de Mariola Landowska; contudo, sinto-me escusado de multiplicar linhas, pois julgo que o mais adequado é o exercício zen que sugere, para mais profundamente apreender a essência das coisas, uma desconstrução da lógica usual e o entendimento do “som” duma só mão a aplaudir. Noutro registo, mas na mesma linha, a poeta Natália Correia proclamava ao perorar um bem conhecido poema: “ó subalimentados do sonho! a poesia é para comer”. Penso que as telas de Mariola Landowska são a dieta ideal para carências como a anemia crónica de imaginação.

Porto, Julho 2012

Orfeu B.



quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Do Big Bang ao Homem


Do Big Bang ao Homem é uma coletânea de textos resultantes de um conjunto de palestras que tiveram lugar na Reitoria da Universidade do Porto de Novembro a Dezembro de 2013, no âmbito da Exposição Terra em Transformação. Neste livro são debatidos temas de uma vastíssima problemática: da origem do Universo à origem da vida e do homem, passando pelo aparecimento dos planetas, da Terra, das plantas e dos animais. Ao leitor é permi­tido vislumbrar a riqueza conceptual e metodológica de diversas disciplinas de investigação, mas acima de tudo, perceber as ideias centrais de cada tema e o esforço de articulação das distintas áreas do saber. Somos todos cidadãos do Universo, mas só através do entendimento dos aspetos centrais do conhecimento integral que temos do mundo é que podemos efetivamente usufruir desta cidadania.  

A coordenação e organização dos textos esteve ao encargo de Orfeu Bertolami e Helena Couto, e  contribuíram para o livro: António Amorim, Frederico Sodré Borges, Orfeu Bertolami, Helena Couto, Octávio Mateus, Mário Mendes, João Pais, João Pedro Cunha Ribeiro e Nuno C. Santos.




terça-feira, 2 de agosto de 2016

O Ponto da Ternura


Se

Se me dessem um animal de solidão
seria um flamingo.
Sua mancha rosada se vislumbraria de longe,
seus pés aparentemente hesitantes
traçariam um círculo ao meu redor
e seu pescoço fino acharia sempre 
o ínfimo espaço
entre mim e qualquer outro
e se fecharia, fiel, no meu pescoço.


Cobertura

… debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. 

Bernardo Soares/Fernando Pessoa, “O Livro do Desassossego”


Nesta hora escura
todas as crianças são iguais.
Nesta treva basta a palavra “crianças”
para que se encolha de medo.
A boca do caminhão se escancara, Salima
Matria procura tesouros na imundície,
já estará enterrado no monte de lixo
cobertura, a mão busca os cobertores
enrolados em sua candidez,
cobertores que nem tinham caído. 
Ahmed Zar’una não subirá mais
no brinquedo do grande blindado,
seu coração agita-se no peito magro
sob o alvo do fuzil
Assim, com os pulsos sobre a cabeça,
o amor está amarrado ao terror. 


O Ponto da Ternura

… at the hour when we are
trembling with tenderness
lips that would kiss
form prayers to broken stone

T.S. Eliot

Aqui é onde mora a ternura.
Ainda que o coração, em seu silêncio,
afunde pela cidade feito pedra -
sabe que este é o ponto de ternura.

Segura a minha mão neste mundo.
Vi uma mãe falando ódio a seu filho,
exterminado com palavras.
Vi um prédio ruir a pó,
devagar, piso por piso -
como precisamos de piedade,
como precisamos de alívio. 

O cair da noite numa nuca tão beijada
vai além da cura: para toda asfixia,
de toda garganta,só há um remédio.
Vê, simplesmente, é o ponto. 

Tal Nitzán


Há literaturas que são indissociáveis do contexto que lhes dá origem. Tal ligação é muito marcada nos escritores de origem judaica. De Kafka a Joseph Roth e Paul Celan na Europa central, passando por Saul Bellow, Philip Roth, Paul Auster e Moacyr Scliar nas Américas, para citar alguns exemplos, retratar o ambiente que os circunda de uma forma única e original não é só um exercício literário, mas pelo contrário, é a fonte primordial, ainda que muitas vezes críptica, que engendra e alimenta as suas fabulações e estilos. 

Esta ligação é ainda mais forte nos escritores israelitas contemporâneos. Das condições históricas que deram origem ao estado de Israel, ao incontornável conflito israelo-palestiniano, a literatura israelita é um campo aberto de experimentação que não pode deixar de reflectir sobre estas questões sem correr o risco de ser artificial e estéril. E neste contexto historicamente complexo e tenso, escritores da estirpe de Amos Oz e David Grossman demonstraram que não há neutralidade possível. O escritor deve estar necessariamente do lado da humanidade, do lado da solução e da mitigação imediata dos conflitos que hoje afligem a todos, israelitas e palestinianos. O escritor deve ir necessariamente para além da sua origem e do seu posicionamento político-ideológico, deve situar-se no terreno mais elevado duma ética que não pode admitir o sofrimento dos semelhantes, independentemente da sua origem, deve ser arauto de uma ética que coloca a humanidade acima de tudo. Esta posição é compartilhada e está fortemente reflectida na escrita da poeta israelita Tal Nitzán. 

A coletânea “O Ponto da Ternura” em versão bilingue, Hebraico-Português, publicada em 2013 em São Paulo (Lumme Editore, Brasil 2013) com tradução de Moacir Amancio, reune poemas escritos ao longo de cerca de década e reflectem a maturidade de uma escritora com uma voz muito própria. Mas como o dissemos acima, a originalidade de Tal Nitzán está indelevelmente marcada pelo contexto denso e viscoso de uma realidade que impõe a todos, e muito particularmente aos escritores, a defesa de causas, o examinar crítico das encruzilhadas da ética e da lógica dos posicionamentos automáticos. 

Se por um lado, a minha incapacidade de apreender a poesia de Tal Nitzán na sua versão hebraica original é um óbvio obstáculo, a universalidade da mensagem de Tal Nitzán é-me perfeitamente inteligível e conduz-me, sem reservas, a uma solidária empatia com as causas que defende. No livro “O Ponto da Ternura” a autora intercala a sua intimidade emocional e as suas inquietações com a discussão de questões que envolvem diretamente as implicações do conflito israelo-palestiniano. Inconformada com a violência de toda espécie, com qualquer acção repressiva e com a guerra, há na mensagem da poeta Tal Nitzán um clarão de esperança na forma pungente como expressa o seu amor por todas as crianças, israelitas e palestinianas, por todos os gatos, pelos flamingos e pela pureza das emoções. Ao ler Tal Nitzán somos confrontados com a certeza básica de que pertencemos a uma família alargada que deve necessariamente incluir aqueles que durante décadas foram retratados como sendo os inimigos.      
    
Etty Hillesum (1914-1943), escreveu em 1943 no seu diário, enquanto ia a caminho de um campo de extermínio, que era preciso ajudar Deus, então fraco e moribundo, a cumprir a sua tarefa. Não creio em Deus ou em deuses, acredito nas ideias. Mas penso que vivemos tempos onde até as ideias que potencialmente nos poderiam salvar estão exangues. Há que as resgatar das sombras e do cinismo, e as pintar com as tintas frescas da esperança. Há que reinventar as palavras e as religar segundo critérios de humanidade renovados. É significativo que uma poeta israelita tenha esse dom. Há muito, foram as trombetas, os cimbalos, as harpas e os tambores que secundaram os Salmos e que cantaram ideais que carregados pelos ventos do deserto chegaram até nós.   

Orfeu B.