quinta-feira, 25 de agosto de 2016

VER NO ESCURO


“VER NO ESCURO”

CLAUDIA R. SAMPAIO

Tenho aprendido a lutar contra o preconceito na minha leitura de poesia. Em boa parte devo-o ao trabalho que levei a cabo com o Pedro Quintas na organização da Antologia “POEMAS DA SAÚDE E DA DOENÇA – De Fernando Pessoa aos nossos dias”.

Ambos leitores fervorosos de poesia, com uma diferença de 28 anos de idade, apesar de uma larga disponibilidade ao desfrute da diferença, descobrimos que cada um de nós trazia consigo alguma forma de preconceito em parte geracional (e por isso mesmo também de discurso e estilístico) em relação a certos nomes de poetas.

A trabalhar um com o outro aprendemos muito a vencer preconceitos e a olhar de forma mais disponível para nomes que cada um tinha tendência a pôr de parte.

Foi o que me aconteceu também com a jovem Cláudia R. Sampaio.

Nas suas duas obras anteriores contavam-se dois livros, entre os quais um intitulado “A primeira urina da manhã”.

Este título irritou-me. Não gosto em poesia do excesso de mergulho num quotidiano limitado, por vezes rasca, que tem sido próprio de alguns poetas com cuja escrita francamente embirro (também tenho direito, quand même).

Só não deixei de lado este novo livro de Cláudia R. Sampaio porque foi publicado numa muito respeitável colecção de poesia dirigida por Pedro Mexia para a editora Tinta da China.

Folheei e percebi que se tratava de poesia mesmo. Da boa. De lei. Intensa e comovente. Trouxe-o para casa e li-o devagar e fiquei rendido à voz de Claudia R. Sampaio

Fui ler mais sobre a poeta e encontrei o que ela afirmou acerca do do tal objecto da minha embirração:

“O livro fala de coisas que me aconteceram numa fase da minha vida em que fui ao fundo e depois tive de renascer das cinzas, evoluir."

Resultado: vou à procura urgentemente da "Primeira urina da manhã", mea culpa e adiante.

A poesia deste "Ver no escuro" é intensa, é dura, é frágil, atravessa o escuro da vida à procura de um corpo, de uma casa, de uma cidade, da essência do amor.

Escrever assim rasga-nos. Talvez esta escrita seja a única forma de nos curarmos de muita dor. E eu pergunto-me: até que ponto é possível a autora continuar a manter-se inteira escrevendo desta forma? Não seria a única. Mas esta escrita exige habitar continuadamente numa dolorosa margem de si própria. Sei bem como a arte é uma forma de correr alguma espécie de maratona. Fico, por isso mesmo, muito ansioso pelo que possa estar para vir.

Quando for embora não deixarei
migalha de mim.
Levarei o cheiro a desorientada
melancolia e desastre
e não deixarei um cabelo que seja.
Levarei comigo as gatas e os livros,
a roupa deixo-a às minhas amigas,
o umbigo, à minha mãe.

Vou e não esqueço.

Partirei sem as orquídeas que
me assombram delicadeza
e sem os cactos que me superam
em estirpe.
Vou aberta como um eterno retorno
e na simplicidade de um bebé que
procura um sítio onde se sentar.

Aqui há a desactivação das almas à
nascença e a ovação aos tristes.
Há a exultação do silêncio profundo
e a altivez congratulada dos néscios.
Há o sangue cansado dos bichos
e a preparação para a fuga da terra.
Aqui há a terra sem terra e a saliência
do teu ombro morto.

Há orelhas frias que soluçam tarde
e uma cova a dizer adeus.

Por isso vou embora no sentido inverso
ao das árvores
numa descida clandestina à mulher que
morreu em ondas.
Vou embora e deixo o meu vinco que
não morre mesmo que me passem com
alcatrão fresco e me estiquem.

Deixo apenas a verdade dos meus
olhos quando pendurados na janela,
a sorrir mundos
deixo as abelhinhas doidas que ignoraram
o meu salto,
e o riso da desistência
porque ainda preciso de mim.

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