quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O apocalipse dos trabalhadores


A história de uma mulher-a-dias de Bragança que é abusada e explorada pelo patrão e pelo marido. Ambos não acreditam na existência desta mulher, dos seus desejos, das suas vontades. Para eles ela é apenas um objecto de uso. O patrão, um senhor culto, depois do seu suicídio, vai revelar algum amor pela personagem principal, algum respeito por esta mulher que descobre afinal que este é o amor da sua vida. É interessante o padrão desta personagem, um homem abastado, culto, mas obscuro e abusador. Para que serve a cultura, para que serve tudo, se não encontramos um ponto de encontro? Como Israel, uma sociedade tão culta, tão desenvolvida e apresentam-se fazer este massacre, esta barbárie. Que contradição esta. Os judeus sempre foram homens diplomatas, inteligentes, cultos, perseguidos, atacados e massacrados. Porque fazem isto agora, por estarem em posição de poder? 

Voltando ao livro, a Maria da Graça tem como única confidente, a sua amiga Quitéria, lutadora, esperançada na felicidade. Maria da graça sonha com a sua morte, com a sua chegada à porta do céu, um lugar confuso, cheia de vendedores e de gente, que se empurra, a querer entrar nas estreitas portas, mais parece uma feira. Que fantástica esta imagem das portas do céu.

Um ucraniano que faz um percurso de humanização, que tinha perdido na saída do seu país, fez-se querer que era uma máquina, para aligeirar o seu sofrimento de ter deixado uma mãe a cuidar de do pai profundamente doente. Um cão magrinho cheio de pulgas chamado Portugal entra no meio da história, talvez para nos fazer lembrar do que se trata, afinal, esta história. No fundo este “apocalipse dos trabalhadores” é um épico do nosso Portugal, desta nossa tragédia, das nossas crenças, das novas crenças. Um Portugal presente e frágil mas cheia de heróis, de anónimos heróis. No fim há um fundo de esperança. Maria da Graça consegue morrer de amor. Quitéria vai com Andriy, à Ucrânia, revelando totalmente o seu amor por Andriy. Esta nossa esperança de encontrarmos uma ponta de felicidade dentro desta caixa de cartão, contendo este produto muito frágil que é Portugal. 

Bom ano para todos.

"HORA AZUL" de ALONSO CUETO



Mais um dos autores publicados em português que mostram como é poderosa e variada a literatura sul-americana.

O início é enganador. Parece uma xaropada light sobre a vida da burguesia bem posta da capital do Peru. Estive quase-quase para o pôr de parte. Só não o fiz porque conheço a editora (Mercado das Letras)e acredito no seu critério de escolha editotial. Tinha que haver ali um gato escondido. Eu é que não via o rabo de fora. Mas rápido apareceu.

O romance é contado na primeira pessoa por Adrián, advogado de sucesso, com escritório de luxo em Lima, secretária, clientes de dinheiro, uma família irrepreensível, mulher social e atenta, filhas amorosas, missa ao domingo, carreira brilhante e estável.

O ritmo narrativo é sólido, contido, sem sobressaltos. A escrita muito segura. No entanto, e sem que o ritmo se altere, com a morte da mãe, Adrian vê-se subitamente confrontado com o passado do pai, militar com a vida passada na guerra bárbara contra o Sendero Luminoso, um grupo guerrilheiro de suposta inspiração maoísta com métodos de terror que exerceu uma actividade feroz durante os anos 80 e inícios da década de 90.

Na guerra suja entre exército e Sendero, o pai de Adrián torturava, matava, violava jovens camponesas mais ou menos suspeitas de dar apoio aos guerrilheiros e mandava matá-las depois. Um dia, no entanto, apaixonou-se por uma dessas raparigas que conseguiu fugir-lhe e de que não se conhece o rasto.

Adrián fica obsecado pela busca dessa jovem e mergulha no outro lado da cidade e do país. Percebe então que o mundo social em que se move vive à margem da miséria, da pobreza, da violência. Vai cada vez mais fundo ao passado, em busca da rapariga que seu pai amou, movendo-se numa vertigem crescente que nos confronta com os relatos da guerra terrível que marcou a vida daquele país durante muitos anos, em que os métodos bárbaros de violação e tortura eram comuns na época a muitos países da América do Sul.

Não se trata de um livro mais ou menos folclórico sobre relatos de uma guerra suja. É mais do que isso. É um livro muito consistente e inquietante sobre a procura das raízes, a conquista da memória por mais dolorosa que ela seja. E nesta procura da memória encontrei, a certa altura, um paralelo com a nossa guerra colonial cuja memória está por construir, sabendo nós, no entanto, que a abertura à luz dessa memória pode ser o abrir de uma perigosa caixa de Pandora.

domingo, 28 de dezembro de 2008

A fome

Li já há algum tempo um livro publicado na leva de edições de final de ano: "A fome" do norueguês Knut Hamsun, prémio nobel da literatura em 1920. A edição da Cavalo de Ferro inclui um bom prefácio do Paul Auster. Este é de facto um livro extraordinário!!! É um livro sobre quase nada, mas que sabe a muito. O protagonista é um jovem que decidiu viver de uma forma ascética, tentando escrever artigos para jornais. A maior parte são recusados o que o leva a uma situação de grande penúria. A fome instala-se e torna-se o cerne da sua vida. Assistimos aos monólogos interiores do protagonista relativamente à sua situação, os devaneios que cria, as suas quase alucinações e as tentativas que faz de escrever. Mas com fome não se escreve. E o livro é apenas isto. Mas é de uma beleza enorme. No resumo de Paul Auster "Um homem jovem chega a uma cidade. Não tem nome, casa ou trabalho; ele veio para a cidade para escrever. Ele escreve. Ou, mais precisamente, ele não escreve. Ele passa fome até estar quase morto; é uma obra desprovida de enredo, acção e - à excepção do narrador - personagens; O livro requer coragem e não muitos de nós estariam dispostos a arriscar tudo por nada. Mas é isso que acontece em Fome. A personagem de Hamsun alivia-se sistematicamente de qualquer crença em qualquer sistema, e no final, por meio da fome que se infligiu, alcança nada". Não há nada para manter o jovem em acção e movimento, mas mesmo assim ele continua sempre em movimento.
Em resumo, um livro cheio e grande sobre quase nada. Notei também no paralelismo 8também acentuado pelo Paul Auster) com esse conto extraordinário (e escrito mais tarde do que este romance) do Kafka que é "O artista da fome".
Umas boas entradas em 2009 com boas leituras e com os votos de que surjam surpresas literárias antigas e novas para todos nós.

sábado, 27 de dezembro de 2008

"AGÊNCIA Nº 1 DE MULHERES DETECTIVES"



Alexander McCall Smith, nascido na antiga Rodéria, é médico de Medicina Legal na Universidade de Edinburgo e especialista em bioétnica. Escreveu cerca de 60 romances nomeadamente os que fazem parte da séria "Agência nº 1 de Mulheres detectives".

Confesso que sou um fanático das aventuras da extraordinária de Mma Ramotswe, do Botswana, que resolve vender a pequena manada de vacas que o pai lhe deixa em testamento para abrir a 1ª Agência de Mulheres Dtectives daquele país.

Os casos que Mma Ramotswe resolve são os "crimes" possíveis num país como o Botswana. Uma delícia. Pequenos roubos, desavenças conjugais, mistérios do quotididiano que Mma Ramotswwe resolve com uma finura de espírito e um bom senso desarmantes.



Para além de Mma Ramotswe, as figuras secundárias não lhe ficam atrás: a sua secretária Mma Makutsi e o mecânico de automóveis Mr. J.L.B. Matekoni que se tornará marido da detective e ambos acabarão, quase contra-vontade, por adoptar duas crianças em que uma delas, a menina deficiente, revela um excepcional talento para a mecânica de automóveis.

É também enternecedor todos eles acharem que, com todas as suas limitações, vivem no melhor dos mundos e preservarem aquilo que acham ser a ética, a solidariedade e os justos valores colectivos do Botswana.

Mma Ramotswe e os seus amigos são bons, calorosos, defensores do bem, da moral, da bondade, da solidariedade,e da tradição que por vezes até se torna questionável.

Cada livro é um momento de raríssimo prazer na forma como traça um retrato de África cheio de ternura, ingenuidade e doçura, na forma como, ainda, denuncia a corrupção, o machismo, a aldrabice, o atraso auto-complacente.



Foram publicados 3 títulos. Mas há mais que estão por traduzir. E é uma pena. Na editora disseram-me que não têm tido vendas significativas. Por isso lanço um apelo: façam propaganda, digam aos vossos amigos e aos filhos (a partir dos 11/12 anos) para lerem as aventuras da Mma Ramotswe. Aumentem as vendas, façam com que a editora se sinta encorajada ou mesmo encurralada e tenha de continuar a publicar os livros de Allistair McCall Smith.

Quando tiver tempo para consolidar o meu inglês será para ler Shakespeare no original, e Marlowe, e William Blake, e Dickens,e Yeats, e T.S. Eliot, e Oscar Wilde, e Dylan Thomas, e... E também as aventuras de Mma Ramotswe porque os livros em que se contam as suas aventuras são um entretenimento que nos deixa de bem connosco e com a vida e essa também é uma das funções da literatura.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Gente das Nuvens

N'est-ce pas là ce que nous sommes venu chercher: le signe de l'origine ?

"Gens des Nuages"
Jemia e J.M.G. Le Clézio

A propósito do texto do mestre-amigo-cúmplice Albano Estrela sobre a obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, recentemente galardoado com o prémio Nobel de Literatura de 2008, arrisco umas breves linhas sobre um dos belos livros de viagem deste autor franco-mauriciano, desta feita escrito conjuntamente com a sua esposa, Jemia.

Viajar pelo Saara marroquino em busca de traços do processo migratório dos antepassados de Jemia é o objectivo declarado deste relato. Contudo, a envolvência da paisagem dá margem a reflexões transcendentes e universais. A dureza do ambiente e o seu silêncio imperturbável sugerem uma magia invisível, um absoluto irredutível que esculpidos em cada marca da paisagem balizam e fundem o fluxo histórico colectivo e individual. Só a leveza e o mistério dos nômadas do deserto, gente das nuvens, parece ser capaz de compreender verdadeiramente o que nos escapa, "o equilíbrio entre o sagrado e o profano, entre a palavra divina e a justiça humana. E o amor pela água e pelo espaço, o gosto do movimento, o culto da amizade e da generosidade. Apesar de nada possuirem para além dos seus rebanhos."

E não há economia de meios para descrever o poder transformador da viagem, "um progresso na direcção de uma nova dimensão. Pois, aqui em Saguia el Hamra, o passado não é o passado, ele mistura-se com o presente como uma imagem sobrepõe-se a outra. Como se sobre uma face se pudesse vislumbrar os traços que a engendraram, ou como se através das palavras de um mito pudesse surgir a verdade."

Mas exortam os autores que "o Saara não é só a beleza dos crepúsculos, da ondulação sensual das dunas, das caravanas de miragem. Aqui é um país onde o nível de vida é um dos mais baixos do mundo, onde a mortalidade infantil é a mais elevada (35%, contra menos que um por mil nos países industrializados). Onde a água dos poços é amarga; onde só a água da chuva, permite o deleite da água doce."

Mas é nesta paisagem que o presente sugere uma "via para a eternidade", onde "A dureza mineral ..., o desenho das nuvens, cada detalhe do horizonte são iscas visíveis para um outro vale onde reina o amor do santo pelo seu povo." Foi na intimidade aberta destas paragens que umas das grandes correntes filosóficas da história encontrou terreno fértil, uma escola do pensamento que unificou a lei do Profeta com a razão dos gregos, com a força bíblica, com a profundidade da meditação Vedanta, o sufismo de origem persa. Pois há no deserto uma "verdade sem forma".

Suponho que a leitura das belas páginas deste relato induz sobretudo sentimentos móveis, que dê asas à lei da atracção. Pois o deserto a muitos atrai (como outros são atraídos pelos mares, e outros pelas vastidões geladas). Mas a mim sugerem acima de tudo uma calma nostalgia. A da memória dos desertos por onde viajei e a do poema que lhes dediquei (O Poema do Deserto), já lá vão 20 anos.

Orfeu B.

CARTA INÉDITA DE SERPA PINTO







CARTA EXTRAORDINÁRIA AO SEU AMIGO J.VICENTE BARBOSA DO BOCAGE .
A CARTA É ESCRITA EM ANDAMENTO.AS CARAVANAS NÃO PARAVAM.HOMENS E ANIMAIS ESTAVAM PREPARADOS PARA CAMINHAR HORAS SEGUIDAS.AS PARAGENS NÃO PREVISTAS NO PLANO,NA GENERALIDADE ,ABORTAVAM COM EFEITOS DRAMÁTICOS AS EXPEDIÇÕES.O ESFORÇO É EXTRAORDINÁRIO.

D.AMÉLIA E SALAZAR




CARTA BEM INTERESSANTE

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

A SÍNDROME DE ULISSES



Neste ano tenho andado à volta dos autores sul-americanos da geração que sucede á dos 5 ou 6 "monstros" da literatura que são Neruda, Borges, García Marquez, Carlos Funtes, Octávio Paz e mais um ou dois.

Cabem aqui vários nomes, Sérgio Pitol, Sepúlveda, Bolaño, Laura Restrepo, David Toscana, Guillermo Fadanelli e vários outros, entre os quais o colombiano Santiago Gamboa.

"A síndrome de Ulisses", de Santiago gamboa, é um livro poderoso e envolvente sobre um tema que me é caro: o desenraizamento e as permanências culturais e comportamentais das emigrações.

A primeira das três partes que compõem a narrativa oferece-nos um magnífico cruzamento de histórias de várias personagens da emigração económica e a emigração ou exílio político em Paris, com as suas motivações, desesperos, obsessões, desejos, misérias e grandezas. Temos os sul-americanos, os árabes, um coreano, os africanos, os de leste.

A segunda parte tem alguns aspectos especialmente interessantes: a história de Nestor, o ex-guerrilheiro colombiano, jogador brilhante de xadrez, desaparecido numa história de recorte policiária; em simultâneo surge-nos o inesperado amante de Nestor, professor francês de filosofia, comunista e homossexual; a história de Jung, o coreano que que lava louça num restaurante e faz tudopara conseguir arrancar a mulher a um hospital psiquiátrico de Pyongyang e mandá-la vir para Paris mas que se suicida porque não consegue voltar a enfrentá-la; a do marroquino Salim que quer libertar-se da obsessão por um romance argentino mais ou menos obscuro descoberto na sua cicdade de Marrocos e que faz o doutoramentp para, através de uma rigorosa análise literária, conseguir exulsar de si a obsessão por aquele livro.

Segue-se uma espécie de descida ao delírio do sexo. Parece haver algum excesso de voyeurismo que, no entanto, quanto a mim, pode ser explicado porque o espaço do exílio é também o espaço da falta de raízes e da quebra de todas as regras em especial no sexo onde emigrante porventura encontra o úinico espaço de liberdade e de busca desmesurada de afecto e consolo.

Uma das caracteísticas deste romance é a das referências literárias constantes que parecem ser uma preocupação desta geração de escritores sul-americanos (a julgar por Bolaño). Cheiram por vezes a um certo novoriquismo cultural ou procura de uma clientela da elite “culturalesca", ou ainda a uma forma de fuga ao real (quer seja um real ficcional ou não) e a um trabalho fundo sobre a própria linguagem.

Como Bolaño, escritor chileno que é uma espécie de referência obrigatória para os jovens escritores latino-americanos, Santiago gamboa vai também pegar em personagens reais personagens reais (Goytisolo, Neruda, etc) para as misturar na ficção.

Com Gamboa percebemos bem a questão da perda doéspaço de pertença, do folclore associado aos dencontros e desencontros da emigração onde os homens e as mulheres ficam a viver num limbo mais ou menos agressivo onde é preciso desenrascarem-se e esperar que o tempo lhes traga o dia de sorte que às vezes não vem.

A terceira parte parece um pouco apressada. O autor precisa de acabar e desata a acabar deixando tudo em aberto como, se calhar, convém.

O fundamental é que tem um magnífico fôlego narrativo, desenha muito bem algumas das personagens e faz-nos sentir os locais, o ambiente, a temperatura, a terrível angústia do emigrante, esse animal que perdeu o seu território materno por vezes para sempre.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

LE CLÉZIO NOBEL DA GRANDE LITERATURA FRANCESA




J.-M. Le Clézio há muito que é considerado um dos nomes maiores da literatura francesa da segunda metade do século XX. Galardoado aos 23 anos com o prémio Renaudot, pelo seu livro de estreia, “Le Procèss-verbal”, terá de esperar 45 anos para que lhe seja atribuído outro grande prémio, o Nobel, em 2008 (note-se que, em 1980, a sua obra “Désert” tinha sido distinguida com o Prémio Paul-Morand, da Academia Francesa). O que é de estranhar em país tão pródigo em prémios literários, como é a França.
Francês das sete partidas, as dezenas de obras que publicou expressam muito da sua errância por terras e gentes várias, cadinho da mundivivência de que a sua obra é feita – o que lhe confere uma dimensão universal, que não retira um cunho pessoal a tudo quanto escreve: as personagens dos seus romances, das suas histórias, são a expressão das suas vivências de menino, de adolescente, de jovem adulto. Através delas e da sua evolução na teia da acção em que estão inseridas, entramos no seu universo, no que ele tem de mais íntimo, portanto, na pesquisa incessante de si mesmo. “Escrevo para tentar saber quem sou”, diz-nos em entrevista publicada na revista “Lire”, de Novembro último. E acrescenta: “Sou incapaz de falar de mim de outra forma que não seja a ficção”. Falar de si, sim, mas através de uma linguagem que aprisiona um mundo de emoções, de sentimentos, de desejos. O que é evidente em qualquer um dos seus livros traduzidos em português. De entre eles, não posso de deixar de referir “A Febre”, editado pela Ulisseia, não por ser uma das suas obras de maior relevo, mas por agrupar um conjunto de histórias, cujo tema foi tirado de uma experiência familiar, no dizer do autor. Histórias escritas nos primórdios da sua carreira literária, histórias relativamente curtas, histórias que me impressionaram pelo experimentalismo da escrita e pela exploração da “pequena loucura”, que vive dentro de cada um de nós.
Histórias que têm raízes no existencialismo francês, mais próximas de Camus do que de Sartre. Alguns dos temas centrais nas obras de estes autores são uma constante nos textos de Le Clézio: as obsessões; o pesadelo sem saída; a ruptura eminente; a inquietação verruminosa; a inutilidade do estar; a descida contínua para o nada.
Um autor “negro”, este Le Clézio dos primeiros tempos? Em parte, talvez. Mas só parcialmente, pois todas as nove histórias que constituem a obra tendem para um ponto de ruptura, que tanto poderá ser o início da descida sem remissão aos infernos, como um sinal de libertação.
Seja como for, algo é indiscutível: J.-M.Le Clézio é um autor com um poder de observação notável, que lhe permite alcandorar-se a um lugar cimeiro na descrição de situações que configuram a existência do homem em busca da sua identidade.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

UMA NOVA LITERATURA?


As formas literárias não são – nem nunca poderiam ser – coisa estanque. Evoluem com a sociedade e com os modos de comunicação que nela vão surgindo. Estas considerações – sábias e banais, como tudo o que é essencial – constituem a expressão do que senti quando li o livro de Luís Fernando Veríssimo, O Melhor das Comédias da Vida Privada (Edições D. Quixote). Luís Fernando Veríssimo, filho de um dos grandes romancistas brasileiros de meados do século XX, Erico Veríssimo, é alguém que cultiva um humor finíssimo, em que a ironia, quase sempre mordaz, é temperada por um toque de humanidade, a roçar a ternura. No livro a que me refiro, Veríssimo utiliza, sistematicamente, a forma dialogal. E fá-lo magistralmente, caracterizando situações e personagens, em retrato da classe média brasileira. São pequenos “sketches”, para serem lidos na rádio, na televisão. Trata-se, pois, de uma forma literária especialmente escrita para ter expressão oral, utilizando meios de comunicação indirecta, em que emissor e receptor não se encontram frente a frente. Ora, esta característica distingue-a de outras formas literárias de comunicação oral, como os “sketches” para serem ditos em espectáculos de variedades. Como o público receptor não se encontra presente, as suas reacções não são imediatamente percepcionadas pelo emissor, e esta característica, aparentemente de somenos, é essencial para a construção do texto, pois obriga-o a conter, em si próprio, uma força comunicacional específica, passível de transmitir a sua mensagem em diferentes situações, independentemente do emissor e do receptor. E quando essa mensagem se situa no plano do humor, mais difícil, ainda, será encontrar a justa medida. Daí, a minha admiração pelos diálogos construídos por Veríssimo. Os temas podem ser variados e múltiplos, mas a mestria é sempre a mesma. Mestria no modo de iniciar o texto, a “agarrar” o leitor; mestria no seu fecho, a dar sentido à história que se conta. Como exemplo, posso apontar o “Lixo” (pp. 82/5). São quatro páginas de um diálogo fabuloso, com utilização de frases curtas, só possíveis na linguagem coloquial de duas pessoas de um estrato social médio – um homem e uma mulher que se conhecem e se encontram na “área de serviço” dos seus prédios, com os respectivos sacos do lixo na mão, e que, assim, iniciam uma conversação (sobre o lixo de cada um...) que os irá conduzir – rapidamente, presume-se – a um relacionamento íntimo, ou seja, à união dos seus lixos... O ritmo do diálogo simboliza a rapidez da acção, que caracteriza o texto. Enfim, economia, eficiência, incisividade, erotismo, eis algumas das marcas mais evidentes deste modo de contar uma estória. Estória, estórias de pequenas e médias burguesias brasileiras. De burguesias e da vacuidade do seu viver quotidiano – expressão da falta de valores de uma sociedade urbana, que a todos impõe o seu toque de banalidade.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A paralizacao da creatividade

Escrevo desde Bruxelas, onde tenho estado nos ultimos dias. Peco desculpa pela falta de acentuacao, mas e um teclado frances aquele que estou a utilizar. Sempre que venho a Bruxelas faco uma peregrinacao por tres livrarias muito boas: Filigraine, Tropismes e a "very brithish", mas muito internacionalizada, Waterstones. Nesta ultima comprei o livro vencedor do Booker Prize e o livro que ganhou este ano o premio Pulitzer: o livro do escritor dominicano Junot Diaz "A maravilhosa vida breve de Oscar Wao". No domingo ao ler o El Pais, deparei me com um texto sobre sobre as longas e as vezes definitivas paragens dos escritores apos um exito. Descobri que Junot Diaz deixou passar onze anos ate voltar a escrever este livro! O seu anterior trabalho, uma antologia de contos, intitulada Drown, datada de 1996, converteu o na promessa literaria do seu pais. Numa entrevista ao El Pais, afirmou que esse periodo foi um verdadeiro inferno: "Nao sei como sobrevivi. Sou terrivelmente duro comigo mesmo, padeco da doenca do perfeccionismo". Sao recordados neste artigo autores que pura e simplesmente deixaram de escrever: o caso paradigmatico e o do J D Salinger que depois do "Catcher in the rye" afastou se da vida publica publicando apenas mais dois livros. Outro caso paradigmatico e o de Rimbaud que aos dezanove anos decidiu que ja tinha dito tudo o que tinha a dizer em poesia e converteu se, entre outras coisas, em traficante de armas. Porque estas renuncias temporarias ou definitivas? Estes casos tem algo em comum: depois de exitos muito grandes, os autores afastaram se da vida publica e da fama deixando de publicar. Noutros casos, a expectativa criada com um primeiro livro pode dar origem a um medo do fracasso. De qualquer forma reconheco paralelismos entre a vida de um escritor e a vida de um cientista (como e o meu caso e assim me defino, antes de professor universitario): e um trabalho solitario que, como se le no El Pais, pode gerar stress parecendo se muitas vezes a uma especie de tortura. Mas nada disto e capaz de quebrar, por si so, a vontade de um escritor, compositor ou cientista: esta e a sua vida e ama se o trabalho. Caros colegas, o que acham que pode estar mais por detras destas ausencias? Falta de ideias e uma razao que me vem a cabeca, mas so tenho experiencia de investigador.

Abraco da fria Bruxelas

domingo, 14 de dezembro de 2008

Para além do espírito dos lugares

“For last year’s words belong to last year’s language
And next year’s words wait another voice.”

“Little Gidding”
T.S. Eliot

Todo o “ismo” tem fronteiras afirmativas imprecisamente definidas. Separam-se os “ismos” entre si, muito mais pela negação do que repudiam e do que pretendem superar. Para além da fronteira há sempre uma “terra de ninguém”, minada pela dubiedade e pela identidade não completamente assumida de fórmulas já gastas ou por inventar. Aquém, há um baldio de ideias em estado embrionário, projectos algures especificados no respectivo manifesto de intenções/revoluções que ainda não têm cores próprias ou capacidade de mobilização.
No seu “ismo” de eleição (ainda que seja só o de Narciso), todo o autor vasculha por entre os baldios acima sugeridos, o protótipo do projecto seguinte. Inquieto, sôfrego procura vestígios para aquilo que, depois dum árduo esforço, será a redempção seguinte (e que parece ser sempre definitiva).
Não me envergonho da escolha algo banal que me serviu de bússola no meu projecto literário mais recentemente terminado, “O Espírito do Lugar”. A pretenção de capturar a essência dos lugares, das situações e os correspondentes estados de alma é o mais básico dos impulsos descritivos. Há contudo, uma sensação de oportunidade perdida por não o ter povoado com outros personagens identificáveis. Por não ter inventado outros actores para emprestar mais orgânica e respiração à trama do texto. O exercício assemelhasse-me agora ao da pintura duma natureza morta. Necessário, embora irremisivelmente incompleto, quando se tem a sensação que havia meios para temas mais abrangentes. Mas, ..., havia, há, haverá ? Suponho que não há como sabê-lo à partida. Imagino que este salto para o vazio é a parte mais inquietante do processo criativo, e também o que tem de mais excitante e aliciante. Penso que as obras de arte só são dignas do epíteto quando estão impregnadas com a ambição da transcendência, da superação.
E servem os “ismos” também para este fim. Balizam os esforços. Potenciam as ambições. São o contexto que apoia a linguagem para o ciclo que se encerra. Para o seguinte há que se criar um novo universo. Uma voz completamente renovada.


Orfeu B.

FINALMENTE AO DÉCIMO SÉTIMO...

Neste fim de semana tive de ir ao Porto de comboio e ocupei a viagem a ler cuidadosamente alguns jornais. De entre eles, destaco o suplemento de “O Público” intitulado “Ípsilon”. E, uma vez mais, gostei das recensões críticas a livros recentemente publicados. Independentemente de interesses editoriais que possam estar subjacentes à escolha das obras analisadas, considero que é meritório o esforço que o jornal faz de divulgar livros e autores. E recordei-me de um texto que escrevi, há alguns anos atrás, texto que passo a transcrever, pois estou em crer que ainda guarda alguma actualidade.

“Em ‘Le Monde’ de fins de Agosto de 2004 vem publicado um longo artigo sobre a ‘rentrée’ literária em França, que me deixou impressionado: prevê-se a saída de 661 novos romances, dos quais 440 franceses. Note-se que em 1994 eram ‘apenas’ 364... E dos 440 romances franceses, 121 são de autores que publicam, agora, a sua primeira obra. Enfim, um espanto para início de ano literário – apesar de tudo, números um tanto inferiores aos do ano anterior.
Como se poderá gerir esta massa enorme de obras, lançadas no mercado de uma só assentada? Quais os mecanismos de promoção seguidos pelos editores, pelos distribuidores, pelos autores? Ora, na opinião do jornalista (Alain Salles), só a conjugação de quatro factores poderá catapultar uma obra para o sucesso: apoio de uma grande editora; obtenção de um prémio literário; divulgação da obra nos meios de comunicação; permanência prolongada nas bancas das livrarias. É evidente que outros factores também poderão ajudar (e em muito) ao sucesso. Por exemplo, o autor (ou aquele que tem o nome na capa...) ser figura conhecida da televisão, do ‘jet set’, do futebol... E (por que não?) a obra ter algum valor literário e tratar de assunto de actualidade – factores que, estou em crer, de cada vez têm menos importância...
E, a corroborar o que dito foi, uma outra jornalista e crítica literária, Josyane Savigneau, fala-nos, em artigo do mesmo jornal, do caso de Alain Fleisher, romancista de excelência, que já publicou dezasseis obras, todas sempre preteridas pelos júris de prémios literários, que preferiram distinguir obras cuja notoriedade se extinguia no dia seguinte ao da atribuição do prémio. E Josyane Savigneau faz votos para que o último romance deste autor desconhecido, ‘La Hache et le Violon’, agora lançado, não soçobre no mar de indiferença em que se diluíram os seus dezasseis livros anteriores. E eu estou certo que sim, que, desta vez, a obra vai singrar, não fosse ela objecto de artigo de página inteira, no mais prestigiado dos jornais franceses...
A dificuldade de uma obra sair do anonimato conheço-a eu – e bem –, tanto como autor, como editor. Na verdade, o acesso à divulgação da obra não decorre do seu valor, mas de múltiplos factores, que nada têm a ver com o seu valor, pois os grupos, os ‘lobbies’, exercem um controlo dificilmente contornável. Mas nem sempre foi assim. Estou a recordar-me do que acontecia nos anos cinquenta, sessenta, em que havia críticos, que não só liam as obras, como procediam a recensões literárias de qualidade. Entre eles, há a destacar os nomes de João Gaspar Simões e Óscar Lopes. Mas outros também exerceram um magistério digno de menção, tanto em páginas literárias de jornais diários, como em revistas de cultura – Nuno Sampaio foi um deles. Todos, quase todos, esquecidos ou em vias de desaparecimento da memória do Portugal da Cultura.
Por vezes, leio algumas críticas – negativas – ao modo como João Gaspar Simões e Óscar Lopes exerceram a sua função de críticos literários. Ao primeiro, aponta-se o seu pendor impressionista, a ausência de um método ‘científico’ de análise de texto; ao segundo, Óscar Lopes, critica-se a utilização exclusiva de um determinado método – o materialismo dialéctico, presente em toda a sua obra. Admitamos que assim tivesse sido, mas que saudades, Deus meu, que saudades desses dois mestres e do magistério que exerceram durante dezenas de anos! Podemos discutir as ideologias que perfilhavam, podemos discordar dos critérios de análise literária que utilizavam, mas não poderemos – nunca – pôr em dúvida a sua independência, o seu labor, a sua competência, a sua vigilância. E quando for feita a história da crítica literária em Portugal, eles serão – tenho a certeza – nomes maiores a reter, a estudar. A servir de exemplo, espero.”

sábado, 13 de dezembro de 2008

SEM DEIXAR O 7 COMO MARCA PASSAREMOS A SER MAIS

Ler e escrever são coisas diferentes que exigem tempos diferentes, disposições diferentes, relações diferentes com o acto de ler.

Somos 7 à partida mas algumas das nossas participações têm sido escassas. Relapsas, mesmo. E daí? Não estamos aqui para sofrer mas para nos divertir. Ninguém tem de sentir-se obrigado a nada.

No entanto, esta coisa de fazer blogs tem armadilhas levadas da breca. Começamos a brincar. Depois sentimos que do lado de lá do éter alguém aparece para nos ler. Às vezes são silênciosos mas sentimos-lhes a presença. E criamos uma obrigação. Uma regularidade. Talvez uma exigênica perante nós próprios. E uma espécie de culpabilidade quando falhamos.

No mês de Novembro visitaram-nos cerca de 600 pessoas. Voltaram alguns. Leram-nos. Quer dizer, mesmo em silêncio oferecemos qualquer coisa a alguém. Eu, como sou teimoso, acredito que este espaço é um espaço talvez único, certamente límpido e sem nenhum objectivo que não seja a partilha da reflexão sobre as nossas queridas leituras.

Entretanto para manter a vivacidade e regularidade do bog pôs-se a hipótese de alargar o número de participantes. O nosso novo parceito será o Orfeu B., cientista, poeta, professor do IS Técnico, brasileiro.

Continuaremos a ser "7leitores" mesmo que passemos a ser 9 ou 10.

Benvindo Orfeu.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A ovelha negra e outras fábulas


Já aqui tinha falado do Bruce Holland Rogers como mestre do micro-conto. Li recentemente outra obra fantástica neste domínio do micro-conto. O autor, Augusto Monterroso dá-nos pequenas fatias servidas por um fino e negro humor. Como fábulas que se prezam estão recheadas de histórias do reino animal, mas há algumas excepções em que se concede o privilégio ao reino vegetal ou aos seres humanos. Eis um pequeno exemplo para vos aguçar o apetite:
Existiu no centro da selva, há muito tempo uma extravagante família de plantas carnívoras que, com o passar do tempo, tomaram consciência do seu estranho costume, principalmente devido aos constantes rumores que o bom Zéfiro lhes trazia de todos os cantos da cidade.

Sensíveis à crítica, pouco a pouco foram ganhando repugnância à carne, até que chegou o momento em que não só a repudiaram em sentido figurado, ou seja sexual, como por último se negaram a comê-la, a tal ponto enojadas que a sua visão lhes causava náuseas.

Então decidiram tornar-se vegetarianas.

A partir desse dia comem-se unicamente umas às outras e vivem tranquilas, esquecidas do seu passado infame.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Depois do escuro


Volto a falar de Murakami, apesar da minha resistência a não me impressionar pelos best seller (um preconceito meu). Mas o Murakami fascina-me, sou fã e sempre que vem um livro novo eu não resisto a comprar e a interromper qualquer leitura. Desta vez foi “After Dark – Os Passageiros da Noite”
No livro “Underground” - Este não é um romance mas um conjunto de entrevistas às vitimas e familiares das vítimas do atentado de Tóquio do Gás Sarin, no final são entrevistados também antigos membros da seita “Verdade suprema”. A cada personagem é contextualizada a sua história e a suas acções no dia do atentado. Compreendemos, com este livro, que o que aconteceu em Tóquio em 95 foi também fruto da forma como a sociedade Japonesa se organiza em função do trabalho e da grande competição existente. Muitos dos membros da seita eram pessoas muito inteligentes e que tinham saído das suas funções para se juntar a “Verdade Suprema” no desejo de procurarem um reverso.
Após a leitura de “Underground” podemos compreender melhor a poética de Murakami.
Neste último livro voltamos a encontrar personagens solitárias que tentam fugir ao seu passado, ou ao seu quotidiano. No encontro ocasional entre estas personagens, no diálogo entre elas, começamos a conhecer a sua história: Uma estudante de Chinês, uma gerente de um hotel de amor, um trompetista estudante de direito, uma prostituta chinesa, um técnico informático, etc... O livro é narrado como se fosse um filme, ou até um vídeo-jogo. Esta clonagem que Murakami faz na sua escrita, na sua narrativa em que por vezes o livro é também o filme, uma animação, um jogo de computador ou uma música faz-me seu fã. Depois ainda recorre ao absurdo, ao impossível, ao fantástico. Tudo isso de uma forma ligeira, acessível e fácil de entender. Este autor integrasse na cultura pop contemporânea, são também muitas as referencias que faz à música pop e jazz, à pintura (neste caso à arte de Edward Hopper) e à literatura (por vezes até a literatura popular japonesa).
Cada livro de Murakami é um quadro de Edward Hopper.