segunda-feira, 25 de abril de 2011

VIVA MÉXICO



Alexandra Lucas Coelho tem-se vindo a mostrar uma repórter notável. As suas reportagens sobre o Afeganistão e depois sobre o México são do melhor que o nosso jornalismo nos tem dado.

Li ocasionalmente algumas dessas reportagens quando publicadas no Público. Agora que estão publicadas em livro pude lê-las todas e ter delas uma visão de conjunto. E deliciei-me, emocionei-me, fiquei ansioso por conhecer este país fabuloso.

A autora leva-nos pela mão através da desmesura mexicana,das suas gentes, dos seus dramas e das suas paixões, da sua história trágica, convulsa, feroz, intensa. Aborda os mitos que são Frida Khalo e Diego Rivera, visita as suas casas, toca nos vestidos de Frida, observa as fotografias. Tudo caldeado pela recordação aqui e ali do que sobre o México e os seu mitos escreveram Octávio Paz, Le Clézio, Carlos Fuentes e vários outros.

Alexandra Lucas Coelho vai aos museus, às escavações arqueológicas, mete-se por becos, entra em livrarias, fala com um historiador ou com um velho sapateiro zapatista, com um editor, um padre, uma freira, e mais e mais.

Viaja de camioneta, de avião,de taxi e de metro, regista as grandes e as pequenas coisas, anota isto e aquilo à medida do seu deambular, usa as palavras como uma máquina fotográfica que apanha museus, escavações arqueológicas, paisagens, a dimensão delirante da Universidade da Cidade do México, as grandes praças e monumentos com as suas igrejas e vendedores e polícias, e tudo sem maneirismos para turista ver.

E apanha ainda o pequeno momento fugaz das personagens que estão a assistir a um jogo de futebol, as baratas que estão no lavatório do hotel, as mulheres que acabam de fazer a maquilhagem na viagem de metro, a ementa do restaurante, o domingo de fé e loucura na adoração à Virgem de Guadalupe, a tragédia do narcotráfico em Juarez

Esta escrita não julga, não moraliza, procura apenas desvendar, mostrar numa espécie de visão caleidoscópica onde as imagens, as reflexões, as notas se entrecruzam e nos fazem sentir a respiração desmedida e por vezes trágica deste país único.

A autora procura deixar de fora a sua emoção que aparece não pela sua mas pela acumulação de pontos de vista por vezes inesperados, por vezes violentamente contraditórios.

Sabemos que a forma de mostrar ou de não mostrar é sempre uma escolha. Essa escolha é a da pessoa que escreve. E a escolha de Alexandra é tornar a reportagem numa prima da ficção, isto é, faz da realidade uma espécie de romance que torna a leitura num prazer raro.

Resumindo e concluindo: quero ir ao México depressa, e ler e ouvir e beber o México, e a culpa é da Alexandra Lucas Coelho.

domingo, 24 de abril de 2011

LITERATURA E FEITIÇARIA



Mia Couto é um contador de histórias e um feiticeiro na oficina das palavras. Sabe comboiá-las. Sabe fazer com que se torçam e contorçam como artistas do grande circo da literatura.

É claro que sabemos que literaturas há muitas. Modernas e pós-modernas e outras que nem uma coisa nem outra. E são sempre pontes de palavras que vão do escritor para o peito de outras pessoas, mesmo aquelas que nunca o leram. Ou que vão do escritor para sítio nenhum , ou melhor, para um estranho deserto onde alguns leitores encontram uma trave ou um degrau da grande casa da sua desolação.

A literatura do Mia é uma ponte que vai longe no coração das pessoas e na respiração da terra.

Os poemas deste livro são exactamente o que são e não o que outras pessoas que andam com definições de poesia no bolso quereriam que eles fossem.

A poesia do Mia não é muito diferente dos seus contos e dos seus romances. É a voz de um homem que trabalha do lado da amabilidade, da humanidade, do grande fogo preso de quem se apaga perante as mãos, os olhos, as alegrias e o sofrimento dos seres humanos em seu redor, para, num acto de magia, transformar a escuridão em luz, e a luz no bailado das borboletas que são as suas palavras.

Muitas destes poemas são histórias pequeninas, retratos inesperados de gente vista por dentro, pequenas frases, quase aforismos. E sobretudo são declarações de amor pelo amor, pelos homens seus vizinhos, pela mulher, pela vida.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

MILAN KUNDERA, FIGURA MAIOR DA CULTURA EUROPEIA



De Milan Kundera, publicou a D. Quixote um conjunto de textos de cariz ensaístico, compilados numa obra que tem como título “ Um Encontro”. É uma obra em que a inteligência, o humanismo e a cultura do autor estão sobejamente demonstrados. Uma obra que se lê com prazer e se relê ainda com maior prazer. Por isso, estas linhas, a assinalar o seu aparecimento, em Portugal.
Um tanto ao acaso, destacarei o capítulo dedicado aos autores que, ao longo dos tempos, vão passando para a “lista negra” dos autores designados de “malditos” ( os esquecidos ou os que deixaram de estar na moda). Entre eles, Anatole France, considerado hoje como um autor menor, que nada diz às gerações actuais.O que sempre surpreendeu Kundera, pois guarda uma lembrança extremamente positiva de alguns textos seus, como “Les dieux ont soif” (há uma edição portuguesa, esgotada, creio). É exactamente essa obra que Kundera valoriza, no capítulo “As Listas Negras ou Homenagem a Anatole France”. O ensaísta checo tenta explicar essa descida aos infernos deste “autor maldito”:
“ O cortejo fúnebre que acompanhava Anatole France tinha vários quilómetros de comprimento. Depois tudo se alterou. Exaltados pela sua morte, quatro jovens poetas surrealistas escreveram um panfleto contra ele. (...)”De facto , mal o caixão tocou o fundo da cova, começou para ele a marcha para a lista negra”

De onde vêm as maldições como a que caiu sobre Anatole France?
“Dos salões. Em nenhuma parte do mundo desempenharam um papel tão importante como em França. Graças à tradição aristocrática que dura há séculos, depois graças a Paris, onde, num espaço exíguo, se amontoa e fabrica opiniões de toda a elite intelectual do país; não os propaga através de estudos críticos, de debates eruditos, mas de fórmulas surpreendentes, de jogos de palavras, de tolices estrondosas(...)
Anatole France, no seu romance “Os Deuses Têm Sede, faz-nos uma análise das forças políticas e sociais que se desenvolveram durante a Revolução Francesa, análise que nos diz mais do que a História nos tem apresentado. Mas o livro de Kundera não se limita à análise literária. Outros temas são abordados, sempre com o inconformismo e a argúcia que o caracterizam. Assim, por exemplo, estabelece uma diferença radical entre “As Duas Grandes Primaveras”, ou seja, entre a “primavera francesa”, a do Maio de 1968, e a “primavera checa”, ocorrida no mesmo ano, acontecimentos que os franceses dessa época consideraram idênticos. Kundera esclarece:
“O Maio de 68 foi uma explosão inesperada. A Primavera de Praga foi o culminar de um longo processo enraizado no choque do Terror estalinista dos primeiros anos que se seguiram a 1948.
O Maio de Paris , resultando em primeiro lugar da iniciativa dos jovens, estava impregnado do lirismo revolucionário. A Primavera de Praga inspirava-se no cepticismo pós- revolucionário dos adultos.
O Maio de Paris era uma contestação jovial da cultura europeia, considerada enfadonha, oficial, esclerosada. A Primavera de Praga era a exaltação desta mesma cultura durante muito tempo abafada pela ideotia ideológica, a defesa tanto do cristianismo como da descrença libertina e, obviamente, da arte moderna (digo bem: moderna, não pós-moderna).
O Maio de Paris exibia o seu internacionalismo. A Primavera de Praga pretendia voltar a conferir a uma pequena nação a sua originalidae e a sua independência”
Esta reflexão de Kundera é extremamente actual e corresponde a uma tendência que os diferentes povos têm de explicar o que acontece com outros, à luz do que ocorreu com eles. Situação semelhante tem acontecido entre nós, nos últimos tempos ao compararem-se os movimentos insurreccionais de massa, em curso nos países árabes do Norte de África, com o nosso 25 de Abril de 1974. Esta centração no que acontece entre nós para explicar o que se passa com os outros, é de um primarismo alarmante, pois revela um desconhecimento total do que é a História, a Política, a Sociologia dos diferentes povos e regiões.
E mais alarmante é ainda por ser um fenómeno que tem afectado grande parte do mundo ocidental, ao longo dos últimos séculos. Enfim, uma matriz psicossocial que nos formata e dificulta uma real mundividência.



Mas Kundera não é apenas um grande escritor ou um analista de apurada subtileza do fenómeno político. É também um estudioso das correntes musicais que atravessaram o século XX. Ao comparar a literatura com a música, diz-nos, no capítulo “ A Recusa Integral da Herança de Iannis Xenakis”:
“ Por mais que um Stravinsky rejeite a música como expressão de sentimentos, o simples ouvinte não sabe compreendê-la de outro modo. É a maldição da música, é o seu lado animal. Basta que um violinista toque três primeiras lentas notas de um largo para que um ouvinte sensível suspire: «Há que maravilha!». Nestas três primeiras notas que provocaram emoção, não há nada, nenhuma invenção, nenhuma criação, absolutamente nada: o mais ridículo «embuste sentimental». Mas ninguém está livre dessa percepção da música, deste suspiro ingénuo que suscita”.
A música ocidental baseia-se no som artificial de uma nota, de uma gama; é assim que se encontra no oposto da sonoridade objectiva do mundo. Está ligada , desde o seu aparecimento, por uma convenção de insuperável, à necessidade de exprimir uma subjectividade.”

Ora, esta “subjectividade” não tem necessariamente paralelo na literatura: James Joyce, “o profeta da insensibilidade”continuará sempre a ser um romancista. Xenakis, pelo contrário, ao tomar partido pela “sonoridade ojectiva”, cortou todos os laços com as tradições musicais, situando-se num plano diferente, que dificilmente poderemos considerar música. Embora esta concepção seja discutível, revela uma tomada de posição extremamente curiosa.
Creio que os exemplos que acabei de citar nos dão uma panorâmica da riqueza do pensamento desta grande figura da cultura europeia do século XX e XXI.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A DELICIOSA FRAUDE



Romain Gary, escritor francês nascido lituano, comete duas deliciosas fraudes com este romance.

A primeira é que assinou-o com o pseudónimo de Émile Ajar e, como não foi identificado, ganhou pela segunda vez o prémio Goncourt que só pode ser atiribuído uma única vez a cada escritor.

A segunda fraude, entre aspas se se quiser, é a de criar um pequeno narrador marroquino, Mohamed, que não tem a idade que julga que tem e vive em casa de uma senhora judia, ex-prostituta sobrevivente de Auschwitz que ganha dinheiro recebendo e cuidando de filhos de prostitutas.

As reflexões e aforismos de Mohamed são deliciosas porque o seu olhar sobre o mundo e as pessoas está isento dos lugares comuns e de uma certa moralidade com que normalmente se constrói o crescimento e a socialização de uma criança.

"No início não tinha uma mãe nem sabia que era preciso ter uma."

"Aquele sacana não era deste mundo. Já tinha 4 anos e ainda era feliz."

"- São os pediatras que se ocupam das crianças.

- Só quando são bebés. Depois são os psiquiatras."

"...o sono dos justoS... Acho que são os injustos que dormem melhor, porque se estão a borrifar, enquanto os justos não pregam olho e preocupam-se com tudo. Se não não seriam justos."

"Eu sabia que tinha toda uma vida á minha frente, mas não me ia pôr doente por causa disso."

"Eu acho que os judeus são pessoas como toda a gente mas não devemos ficar ressentidos com isso."

"... o que era importante era tocar muito tãtã para afastar a morte que já devia estar por aí e que tinha pavor aos tãtãs por razões pessoais."

Mohamed é uma espécie de menino da selva, se bem que a selva seja um bairro pobre de Paris onde abundam os africanos, os judeus e os árabes. E, no seu deambular pela vida e pelo bairro, talvez sem o saber, procura uma mãe para poder tratar dela. E no seu sonho chega a desejar uma mãe prostituta para que ele seja seu chulo e, assim, possa protegê-la...!

A história cresce como uma comédia negra que se vai adensando e nos leva a pensar no que é o amor, a doença, a morte, e onde a solidariedade, sem palavras grandiloquentes a embrulhá-la, é apenas a forma única de sobrevivência entre vizinhos de um prédio, de um bairro ou do mundo.


quarta-feira, 13 de abril de 2011

"Sei qual é a velocidade da luz mas não aprendemos qual é a da escuridão!"



Malboro Sarajevo

de

Miljenko Jergovic

Editora Cavalo de Ferro

Nos tempos que correm apesar de muita gente pensar dever recuperar o velho hábito de ter lápis e bloco de notas de despesas o preço dos livros jamais pode ser desculpa para não se ler, até porque existem bibliotecas.

Ultimamente tenho-me cruzado com livros de editoras desaparecidas ou esquecidas. Livros que não foram iluminados pela vertigem da moda. E se os livros alimentam uma indústria a leitura alimenta-nos a alma e essa não pode morrer de inanição por muito que seja o corpo a preocupação que colocamos em primeiro lugar.

Da Cavalo de Ferro tenho encontrado edições cuidadas e bonitas quase a preço de café em estação de serviço. O que significa que os livros têm sido muito baratos e o café demasiado caro. Não recordo o café mas dou por bem empregue 1 euro que custou o livro.

Autores desconhecidos. Lugares onde nunca fomos. Pessoas que nunca cruzámos iguais a outras que se cruzam connosco todos os dias povoam este livro de Miljenko Jergovic, um escritor de uma geração de autores publicados durante o tempo do cerco de Sarajevo. Não conhecia o autor mas recomendo o livro: Malboro Sarajevo.

Malboro Sarajevo, o cigarro que a Philip Morris adaptou ao gosto dos fumadores bósnios, surge numa espantosa conversa entre um bósnio e um americano no conto “”O Túmulo”.

“(…)Para alguns all over the world é de Bascarsija a Marijindvor, para outros é à volta do globo terrestre. E feliz, tal como infeliz, pode ser quer um quer outro. (…) Pergunta-me se tenho pena de, depois de ter dado volta ao mundo três vezes, acabar em Sarajevo sitiada, e eu digo-lhe que não acabei aqui, antes nasci aqui e graças a Deus não deixei a cabeça em nenhum outro lugar(…) A vida vale só se sabes que a tens senão a morte apanha-te desprevenido(…)"

Gosto de livros de contos. Por vezes ficamos ligados a eles por um ou outro conto e os restantes perdem-se nos recantos da memória, neste todos eles se complementam compondo um puzzle de lugares e pessoas ao mesmo tempo cruel e terno.

Na velha questão de valer a história ou o talento de a contar eu faço questão das duas, sabendo que o grande talento de contar torna grandes as pequenas histórias.

“Os saxofonistas não escrevem a História, tocam. As palavras não proferidas formam o silêncio na doçura do qual, depois da tagarelice e das guerras, para o bem e para o mal, os sobreviventes dormem placidamente.”

”(…)Não faz sentido impedir que o fogo devore aquilo que a indiferença dos Homens já devorou.(…)”

“ (…)No mundo, tal como está, existe uma regra fundamental, a mesma que Zuko Dzumhur formulou pensando na Bósnia, e que se reduz a duas malas sempre feitas. Nelas devem caber todos os teus bens e todas as tuas memórias. Tudo o que esteja fora disso já está perdido.(…)”

Penso na perda material das memórias. Como sobrevivem tantas pessoas à perda de tudo no meio de uma guerra? Podem voltar a ter coisas… Mas as memórias… Como imagino ser duro viver no meio de recordações sem qualquer enquadramento material, será como ter dores num braço amputado.

Há lugares que aparecem na nossa sala, acenam à nossa frente nas páginas dos jornais em dias de grande desgraça e depois desaparecem silenciosamente. As feridas ficam lá longe, cicatrizam, ficam cicatrizes que doem. A vida das pessoas continua com mágoas invisíveis que se arrastam em cidades sem o “glamour” de Paris ou o cosmopolitismo de Nova York mas onde os sonhos não são menos brilhantes.

“É estranho, está sol, mas mesmo assim nada seca. Estava agradavelmente a refrescar a cara e a pensar: Heraclito troçava apenas de si próprio, enquanto Zenão zombava com o mundo inteiro. Platão era o travesti que pretendia revestir a humanidade, a Sócrates tiveram de o matar para que não fizesse uma peça de teatro da sua própria morte.(…)”

“O mundo desaparece com as palavras não proferidas”

“Não é fácil livrar-nos de coisas supérfluas”

Mais do que os livros que ficam sob os holofotes prefiro os que são iluminados por velhos candeeiros em ruas esconsas. Os que nos falam da vida, de corpos que sagram, de árvores que dão maçãs com vida. Quando lemos viajamos, a viagem não se faz por sítios despovoados, aprendemos a conhecer as pessoas. Partimos, levamos quem mora dentro de nós e tudo o que lemos. Mesmo se perdermos aquelas duas malas que nos aconselha…

“Acaricia com ternura os teus livros, forasteiro, e lembra-te que são pó”

Livros assim merecem ser acariciados com ternura, lidos e pensados. Há vida para lá das manchetes que (já não) vendem jornais. Vidas que um dia serão pó, como todos seremos.

Seremos melhores pessoas… Amanhã.

domingo, 10 de abril de 2011

Cândido ou Um Sonho Tido Na Sicília


...

A verdade é que se fora embora: e só os factos contam, só os factos devem contar. Nós somos aquilo que fazemos. As intenções, especialmente se forem boas, e os remorsos, especialmente se forem justificados, cada um dentro de si pode jogá-los como quiser, até a desintegração, até a loucura. Mas um facto é um facto: não há contradições, não há ambiguidades, não contém o diferente e o contrário.
...

Um facto. Fazer perguntas, inquirir, investigar servia só para complicar dolorosamente o que fora simples e verdadeiro.

Cândido ou um sonho tido na Sicília


Acerca desse seu livro, o escritor siciliano Leonardo Sciascia (1921 - 1989) cita, numa nota final, Montesquieu, segundo o qual "uma obra original faz quase sempre nascer outras quinhentas ou seiscentas, servindo-se estas da primeira mais ou menos como os geómetras se servem das suas fórmulas". E segue, "Não sei se o Cândido serviu de fórmula a outros quinhentos ou seiscentos livros. Creio que não, infelizmente: pois certamente ter-nos-íamos aborrecido menos, com tanta literatura. Contudo, quer este meu conto seja o primeiro ou o seiscentésimo, foi dessa fórmula que tentei servir-me. Mas parece-me que não o consegui bem, e que este livro se assemelha aos outros meus. Aquele ritmo e leveza já não é possível encontrá-los: mesmo por mim, que creio que nunca aborreci o leitor. Se não o resultado que valha portanto a intenção: procurei ter ritmo, ser leve. Mas sério é o nosso tempo, bastante sério."

Tendo como inspiração a obra mais famosa da literatura sobre o optimismo, Sciacia cria um personagem de coração puro e alma límpida, Cândido Munafò. A sua honestidade, a sua incapacidade para mentir e de ser cúmplice da hipocrisia, levam a quase todos, mãe, pai, avó, a criada próxima, a hierarquia clerical, o secretário local do partido comunista, a considerá-lo um "monstro".

O equivalente do filósofo leibniziano, Pangloss, o optimista total que afirmava que o mundo era o melhor de todos e que mesmo o terremoto de Lisboa poderia ter sido muito pior, é na obra de Sciascia, Don António, um padre que troca a igreja católica pela igreja do partido comunista. Don António acreditava que fora do partido não havia salvação possível. Esta salvação, não estava contudo, à medida da razão de Cândido, para quem o comunismo "era uma facto da natureza" e não da ideologia.

Assim, evolui Cândido na direcção do iluminismo, na direcção da natureza e duma utopia algo anarquista, caminho que o conduz à pátria da razão e da esperança, Paris, pátria de Voltaire.

Uma obra actual, de grande destreza literária, e com interessantes traços auto-biográficos, pois em certa medida, a brilhante obra de Sciascia versa essencialmente sobre o sonho, a razão e sobre a Sicília.

Orfeu B.