Reler um texto clássico decorridos 35 anos dá-nos uma perspectiva, ainda que muito pessoal e limitada, do mistério da sua prevalência. Recordo-me também da alegada surpresa de Marx relativamente à capacidade que os textos de Sófocles, Shakespeare e outros têm de manter intacta a sua força dramática apesar de se terem dissipado os conflitos económicos e sociais em cujo contexto foram concebidos.
Para além do milagre da sua sobrevivência literária, Antígona de Sófocles é um texto misteriosamente contemporâneo. Para prová-lo sucedem-se edições, estudos e representações desta peça, provavelmente escrita em 442 a.C., e que nos relata como a pungente tragédia do parricida e incestuoso Édipo se estende à sua descendência.
A trama é bem conhecida:
Polinices e Etéocles, filhos varões de Édipo, morrem às portas de Tebas, um pela espada do outro. Polinices havia formado uma aliança com os guerreiros de Argos para derrubar a tirania do tio Creonte, irmão de Jocasta, mãe e esposa de Édipo. Em nome da defesa e coesão da polis, Creonte concede a Etéocles honras duma sepultura de estado, e ordena que Polinices permaneça insepulto, sem as devidas homenagens fúnebres.
Recai assim sobre a consciência das irmãs de Polinices, Antígona e Ismênia, o dilema de acatar a lei imposta por Creonte ou seguir a lei divina, não escrita, de que as mulheres da família (e não só, como se verá) honrem os seus mortos. Antígona escolhe seguir a lei divina e convida Ismênia a secundá-la no cumprimento dos rituais fúnebres. Ismênia, temendo a reacção de Creonte, tenta dissuadir a irmã e não toma parte na desobediência.
Sem temer as consequências, Antígona cobre o cadáver de Polinices com uma fina camada de poeira. A notícia de que o decreto de Creonte fora violado não tarda a espalhar-se e Antígona é descoberta. De modo a evitar um derramamento de sangue que poluiria a polis, Antígona é condenada a ser emparedada viva. Entrementes, o obstinado Creonte é advertido pelo vidente cego Tirésias que por atentar contra as leis divinas, a ira dos deuses recairá sobre a sua própria descendência. Ciente da decisão de Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, de morrer com a sua amada por não conseguir demover o pai e salvar Antígona, o velho Tirésias acaba por convencer Creonte da inevitável maldição dos deuses. Creonte decide então sepultar Polinices e dirige-se à gruta onde Antígona fora aprisionada para libertá-la. Mas ao chegar ali ouve um grito de dor e descobre Hêmon junto ao corpo de Antígona que se havia enforcado com o próprio cinto. Hêmon responsabiliza Creonte pela morte da amada e desfere-lhe um golpe de espada. Creonte esquiva-se do golpe, mas de seguida Hêmon crava a espada contra si mesmo. Creonte desolado toma o filho nos braços e leva-o para seu palácio. Mas, a notícia do triste desenlace é mais rápida, de modo que ao chegar, encontra Eurídice sua esposa, já sem vida, vítima também de um golpe de auto-mutilação. A rainha morre culpando o marido pela morte do filho. Ao rei amaldiçoado cabe a infelicidade de sobreviver à tragédia e viver sob o signo do desejo da própria morte.
Como nos faz saber a Professora Maria Helena da Rocha Pereira através das notas explicativas que acompanham o texto da edição da Fundação Calouste Gulbenkian, não há consenso entre os estudiosos relativamente ao verdadeiro tema da tragédia: Conflito entre o amor ideal da família, praticado por Antígona, e a lei do estado incarnada por Creonte, conforme Hegel?; Embate de vontades, de acto contra acto, ou de princípios civilizacionais distintos, segundo outros estudiosos?; Conflito entre a moralidade privada contra a do estado?; Defesa da fundamental liberdade e autonomia da vontade individual na sua relação com a polis?
Penso que estas interpretações são todas correctas, pelo menos segundo a hierarquia de valores de suas premissas. Contudo, esta hierarquia não é necessariamente a mesma da dos tempos de Sófocles, e suponho que nunca será possível sabermos ao certo qual o grau de proximidade entre valores éticos em períodos históricos distintos. Mas a universalidade da temática e a intemporalidade do conflito não nos deixa indiferentes. A leitura de Antígona comove-me hoje como me comoveu há 35 anos. Certamente, não pelas mesmas razões, o que me faz pensar que as diversas interpretações da tragédia sejam todas complementares.
Tal como muitos estudiosos, julgo que para além das figuras, uma parte essencial da trama é desempenhada pelo Coro. Vacilante e ambíguo na sua posição, o Coro apoia inicialmente o decreto de Creonte, mas muda de opinião depois da admoestação de Tirésias. Esta oscilação parece-me ser a chave, pois está implícita na muito explícita e bela “Ode ao Homem” que se inicia da seguinte forma:
“Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem.”
Uma inequívoca afirmação da superioridade do ser humano, e que prossegue com a enumeração de vários marcos de progresso, a agricultura, a domesticação dos animais etc, culminando com a ciência de viver em sociedade e com a do uso da palavra não corrompida, na sua forma mais pura: a da arte política. Mas parece-me haver nas entrelinhas desta homenagem à polis, uma mensagem. A ideia de que a polis transcende o poder político e que só é verdadeiramente superior ao incorporar a compaixão e a humanidade de forma integral. Só assim se compreende as razões pelas quais as leis da polis não podem estar acima das leis da compaixão e das leis não escritas. Só assim a polis é o maior dos prodígios.
Mas quanto ao drama das figuras, Sófocles parece não deixar dúvidas: recai sobre os que sobrevivem o maior sofrimento.
Orfeu B.
Para além do milagre da sua sobrevivência literária, Antígona de Sófocles é um texto misteriosamente contemporâneo. Para prová-lo sucedem-se edições, estudos e representações desta peça, provavelmente escrita em 442 a.C., e que nos relata como a pungente tragédia do parricida e incestuoso Édipo se estende à sua descendência.
A trama é bem conhecida:
Polinices e Etéocles, filhos varões de Édipo, morrem às portas de Tebas, um pela espada do outro. Polinices havia formado uma aliança com os guerreiros de Argos para derrubar a tirania do tio Creonte, irmão de Jocasta, mãe e esposa de Édipo. Em nome da defesa e coesão da polis, Creonte concede a Etéocles honras duma sepultura de estado, e ordena que Polinices permaneça insepulto, sem as devidas homenagens fúnebres.
Recai assim sobre a consciência das irmãs de Polinices, Antígona e Ismênia, o dilema de acatar a lei imposta por Creonte ou seguir a lei divina, não escrita, de que as mulheres da família (e não só, como se verá) honrem os seus mortos. Antígona escolhe seguir a lei divina e convida Ismênia a secundá-la no cumprimento dos rituais fúnebres. Ismênia, temendo a reacção de Creonte, tenta dissuadir a irmã e não toma parte na desobediência.
Sem temer as consequências, Antígona cobre o cadáver de Polinices com uma fina camada de poeira. A notícia de que o decreto de Creonte fora violado não tarda a espalhar-se e Antígona é descoberta. De modo a evitar um derramamento de sangue que poluiria a polis, Antígona é condenada a ser emparedada viva. Entrementes, o obstinado Creonte é advertido pelo vidente cego Tirésias que por atentar contra as leis divinas, a ira dos deuses recairá sobre a sua própria descendência. Ciente da decisão de Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, de morrer com a sua amada por não conseguir demover o pai e salvar Antígona, o velho Tirésias acaba por convencer Creonte da inevitável maldição dos deuses. Creonte decide então sepultar Polinices e dirige-se à gruta onde Antígona fora aprisionada para libertá-la. Mas ao chegar ali ouve um grito de dor e descobre Hêmon junto ao corpo de Antígona que se havia enforcado com o próprio cinto. Hêmon responsabiliza Creonte pela morte da amada e desfere-lhe um golpe de espada. Creonte esquiva-se do golpe, mas de seguida Hêmon crava a espada contra si mesmo. Creonte desolado toma o filho nos braços e leva-o para seu palácio. Mas, a notícia do triste desenlace é mais rápida, de modo que ao chegar, encontra Eurídice sua esposa, já sem vida, vítima também de um golpe de auto-mutilação. A rainha morre culpando o marido pela morte do filho. Ao rei amaldiçoado cabe a infelicidade de sobreviver à tragédia e viver sob o signo do desejo da própria morte.
Como nos faz saber a Professora Maria Helena da Rocha Pereira através das notas explicativas que acompanham o texto da edição da Fundação Calouste Gulbenkian, não há consenso entre os estudiosos relativamente ao verdadeiro tema da tragédia: Conflito entre o amor ideal da família, praticado por Antígona, e a lei do estado incarnada por Creonte, conforme Hegel?; Embate de vontades, de acto contra acto, ou de princípios civilizacionais distintos, segundo outros estudiosos?; Conflito entre a moralidade privada contra a do estado?; Defesa da fundamental liberdade e autonomia da vontade individual na sua relação com a polis?
Penso que estas interpretações são todas correctas, pelo menos segundo a hierarquia de valores de suas premissas. Contudo, esta hierarquia não é necessariamente a mesma da dos tempos de Sófocles, e suponho que nunca será possível sabermos ao certo qual o grau de proximidade entre valores éticos em períodos históricos distintos. Mas a universalidade da temática e a intemporalidade do conflito não nos deixa indiferentes. A leitura de Antígona comove-me hoje como me comoveu há 35 anos. Certamente, não pelas mesmas razões, o que me faz pensar que as diversas interpretações da tragédia sejam todas complementares.
Tal como muitos estudiosos, julgo que para além das figuras, uma parte essencial da trama é desempenhada pelo Coro. Vacilante e ambíguo na sua posição, o Coro apoia inicialmente o decreto de Creonte, mas muda de opinião depois da admoestação de Tirésias. Esta oscilação parece-me ser a chave, pois está implícita na muito explícita e bela “Ode ao Homem” que se inicia da seguinte forma:
“Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem.”
Uma inequívoca afirmação da superioridade do ser humano, e que prossegue com a enumeração de vários marcos de progresso, a agricultura, a domesticação dos animais etc, culminando com a ciência de viver em sociedade e com a do uso da palavra não corrompida, na sua forma mais pura: a da arte política. Mas parece-me haver nas entrelinhas desta homenagem à polis, uma mensagem. A ideia de que a polis transcende o poder político e que só é verdadeiramente superior ao incorporar a compaixão e a humanidade de forma integral. Só assim se compreende as razões pelas quais as leis da polis não podem estar acima das leis da compaixão e das leis não escritas. Só assim a polis é o maior dos prodígios.
Mas quanto ao drama das figuras, Sófocles parece não deixar dúvidas: recai sobre os que sobrevivem o maior sofrimento.
Orfeu B.