segunda-feira, 29 de julho de 2013

UM ROMANCE ABSOLUTAMENTE "CAGALHOFEIRO"



O meu muito querido amigo Raúl Calado inventou há uns 50 ou 60 anos a palavra "Cagalhofeiro". Digo bem, inventou, porque depois de procurar em vários dicionários, incluindo o magnífico Houaiss, não a encontrei. E o Raúl usava e usa "cagalhafeiro" para caracterizar alguma coisa particularmente engraçada, divertida e até, mais do que isso, qualquer coisa que se torna algo subversiva pelo próprio uso do humor.

Ao ler este romance, a palavra que me veio desde o início para o caracterizar foi: "Cagalhofeiro". "A demanda de D. Fuas de Bragatela" é um romance absolutamente cagalhofeiro!

Há anos que o queria ler. Mas esgotou-se e só foi reeditado recentemente.

Paulo Moreiras é um dos escritores descobertos e trazidos à luz do dia pelo excepcional trabalho editorial de Maria do Rosário Pereira (excepcional editora além de notável poeta)

Foi na colecção que dirigia na velha Temas e Debates que Maria do Rosário deu a conhecer ao público português escritores como José Luís Peixoto, João Tordo e este mesmo Paulo Moreiras.

Esquecemo-nos muitas vezes do trabalhos dos editores. Trabalho invisível, paciente, teimoso. Trabalho de paixão. maria do Rosário trabalha agora na Leya com a intenção justamente de descobrir e apoiar novos escritores de grande qualidade.

Já tinha lido um outro romance de Paulo Moreiras, "O oiro dos corcundas". Agarrei-me finalmente à demanda de D. Fuas Bragatela e com que prazer.

Trata-se de um romance pícaro, excessivo, transbordante, que relata as aventuras e desventuras deste D. Fuas, nascido da miséria de um Portugal em pleno medievo final, séc XIV, no reinado de D Afonso IV.

Fuas, promovido a D. Fuas pelas suas artes de espertalhote e videirinho. Saltapocinhas, filho de alfaiate, neto de Xamoa, uma bêbada amante de um frade gordo, vítima dos acasos e desventuras da vida, saltimbanco, aprendiz de barbeiro, soldado e cozinheiro, trotamundos em busca de uma côdea ou de uma quimera, moço de mil trabalhos, quase escravo, ladrão de estrada, fujão, capaz do pior e do melhor,tornado médico autodidacta pelo roubo do estojo de um cirurgião, capaz de separar dois gémeos ligados pelas costas ou deixar um nobre sem teres nem naveres esperando de rabo para o ar a cura por um tremendo clistér.

As suas avnturas são deliciosas e seguem-se num sobe e desce de sucessos tão contraditórios quanto divertidos e excessivos como uma narrativa deste tidpo exige.

O romance é uma sequência notável de pequenas e grandes aventuras, Paulo Moreiras é um homm que sabe preparar a sua banca de trabalho. É notável a investigação que subjaz ao romance. Investigação de história, de época, de mentalidades e, talvez acima de tudo, de vocabulário usado com a conta e medida para nos dar a cor da época sem cortar o normal correr da leitura.

Resumindo: um romance absolutamente cagalhofeiro.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

AQUILINO RIBEIRO - 5O ANOS DEPOIS




Os autores – os melhores, diga-se – fazem eco dentro de nós, deixam rasto. Alguns ressoam na nossa memória e acompanham-nos pela vida fora. No meu caso, Aquilino é um deles. Dizer que comecei a interessar-me por ele em virtude da aura política que lhe veio do processo movido pelo Estado Novo, quando da publicação de Quando os lobos uivam, talvez seja exagero. É sabido como uma perseguição da PIDE salazarista dava ânimo a qualquer livro, mas Aquilino não precisava disso. A minha sedução pela sua obra é anterior. Quando comecei a ganhar gosto pelos livros, Aquilino era então um dos maiores nomes da nossa literatura, se não mesmo o maior, e daí a obrigação de o ler, o dever de o apreciar e o alegre esforço para alcançar esse nível e, consequentemente, essa satisfação, esse puro prazer. Aquilino exigia (e exige) esforço; mas qual o grande autor (o grande amor) que o não exige?
Há quem o acuse de falta de profundidade psicológica, de uma trama pouco densa e estimulante, de falta de dramaticidade nos seus romances, e até de um formalismo já algo tardio, e, portanto, serôdio. Talvez seja verdade. Não esquecer, porém, outros da mesma época, de grande qualidade, como Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia, por exemplo, onde o que se manifesta é esse gosto da forma a traduzir uma realidade social e cultural muito forte e nítida, que se lhes impunha e que eles procuravam traduzir e recriar. É pois o tipo de argumento que, face à obra em causa, sempre me pareceu algo deslocado, difícil de integrar na realidade sistémica que, sobretudo no caso de Aquilino, o seu estilo impunha.
Porque ele não era fácil, hoje talvez ainda menos, mas o sabor da sua prosa valia (e vale) bem o trabalho de o ler, compensando-nos largamente de tudo. Não era de pressas. A sua ação pausada, as suas lentas e gongóricas descrições, os seus largos excursos eruditos ou evocativos, as suas sintaxes envolventes e de frases longas e, sobretudo, o seu léxico rico, vastíssimo, inesperado, inventivo, amiúde extravasando o melhor dicionário, entre o popular, o regionalista e o vernáculo, nunca esquecendo os clássicos, (traduzindo, vertendo) nem a latinidade, a sacralidade, a santanidade, e até a liturgia, com sua parafernália de ternos e expressões, numa mistura muito própria que a sua filigrana estilística única e inimitável exigia. Não era fácil, não. Mas deleitava.
Em Aquilino, como disse, o enredo, interessando talvez menos, não é, todavia o livro sem história à moda de alguns atuais, sobretudo da área do já antigo “novo romance”, ou do desconstrutivismo posterior. Não, o enredo existe e prende, mas é sempre submetido ao seu modo de contar, e este à exigência de uma sintaxe elaborada, frequentemente retorcida, ao seu vocabulário que não perde a oportunidade de pôr ao sol termos esquecidos, de endireitar outros, empenados pelo mau uso, de criar muitos, ali mesmo, para a necessidade do momento, e sempre sob a aba inspiradora de sabor oitocentista e setecentista, que as frases e as palavras evocam, e de uma ancestralidade que ressoa nas nossas reminiscências dir-se-ia que platónicas, se não fosse quase escandaloso dizê-lo hoje.
É pois uma escrita sempre subordinada ao classicismo da construção, à riqueza e originalidade do vocabulário, ao gosto de uma descrição que não permite uma prosa dinâmica, e menos ainda desestruturada e desconstruída que a literatura contemporânea nos veio propor. Aquilino Ribeiro é talvez o nosso último grande clássico. Mas, passados cinquenta anos sobre a sua morte, e depois de tanta experiência, de tantos experimentalismos, artísticos e outros, ainda bem que o foi, e valha-nos isso!


É pois um autor para ler devagar, que não se casa bem com a diluição atual duma certa identidade que foi tão nossa, nem com a desestruturação cultural a que se assiste, nem com muitas das regras gramaticais que a moderna literatura começou a praticar, ou a despraticar, nem com a aridez vocabular corrente, nem com a pesporrência da literatura televisiva dominante, nem com a incultura transformada em cultura, nem com o palavrório ininterrupto, embora construído com meia dúzia de palavras. Menos ainda com a moderna vertigem substitutiva dos estímulos, que tira o sabor à vida, e ainda menos com uma era de eletrónicas em que tudo desaparece no momento em que aparece, etc. etc. Nesta sentido Aquilino é hoje uma força conta a corrente, e, portanto, uma rocha a que nos podemos agarrar. Em suma, um autor com um valor educativo hoje altamente acrescentado.
É, por outro lado, a imagem dum Portugal que existiu, e de que pouco ou nada já resta: rural, pobre, política e economicamente injusto, mas ativo, habitado e animado, demograficamente vivo, humano e humilde, mas teso, finório e boçal, afável e velhaco, troca-tintas e honrado. Disso, desta mistura donde todos descendemos, Aquilino nos dá testemunhos através de tipos humanos inigualáveis, em inúmeras histórias e situações pitorescas, cruéis, hilariantes, traiçoeiras, amenas…
Mas o melhor de Aquilino está no gosto de descrever as paisagens beirãs, as aldeias, as festas, os trabalhos, as pessoas, os bichos; o amor na procura das raízes vocabulares e sintáticas, no trabalho da língua, de sentirmos o formão e a goiva da sua marcenaria fina afeiçoando uma madeira dura e macia, que deixa, depois de bem trabalhada, obra feita. Para durar. E perfeita. Aquilino Ribeiro é sobretudo um prosador, a gente sente-o a saborear o que escreve e a amar o que descreve e conta. E ao lê-lo, assim como mergulhamos numa portugalidade antiga que nos moldou os ossos e os sentimentos, para o melhor e o pior, e de que andamos esquecidos, ou a tentar fugir, cheios de prosápia, também usufruirmos de uma espécie de reorganização interior, uma reformulação de alma que todo o sentimento estético nos provoca e engrandece.
A grande literatura é essa forma incessante de nos reorganizarmos, de acrescentarmos ao que éramos uma outra nova e mais rica forma de ser, de sentir por nós dentro esse oxigénio que a funda enxada, cavando, fortalece, revigora e amacia. Ler Aquilino é mergulhar nesse Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, macio e cruel, atrasado e finório, que era o mundo que foi o dos nossos pais, avós e tetravós. Para os mais novos é um modo de ter notícia desse tempo perdido, de conhecer os sentimentos, as vozes, os olhares, os valores estéticos e morais de que era feito, e, ao mesmo tempo, ter a experiência de um País profundo, ancestral, resultante da acumulação de muitos sedimentos de gentes, hábitos, culturas, lugares, ocorrências, e que é, desta terra pobre e castigada, muito da sua melhor herança. Se todos os portugueses, hoje, pudessem ler, gostar e interpretar Aquilino Ribeiro, pelo que significaria de amor à Pátria, de conhecimento dela e de sentido crítico para os seus defeitos e qualidades, que grande, que incomparável mudança nas mentalidades não sofreríamos todos.


João Boavida

quarta-feira, 10 de julho de 2013

E SE DELIRÁSSEMOS UM BOCADINHO GRANDE?



Há anos, uma amiga emprestou-me um livro de Eduardo Mendoza, escritor catalão multiuacetado. Fiquei fã. Já aqui falei de um exccelente romance seu, "Rixa de Gatos", coisa séria e intensa passada no início da Guerra Civil Espanhola em Madrid.

Entrei nesta história absolutamente delirante, passada em Barcelona e com um vago recorde policial em que tudo é levado a um alto nível de disparate e comicidade invulgar.

Bem sei que sou facilzinho no que diz respeito a emoções, sejam de lágrimas ou de gargalhadas. Mas há muito tempo que não dava comigo a rir desalmadamente durante uma leitura

Basicamente Eduardo Mendoza retoma a figura de um ex-presidiário e ex-internado num manicómio, agora cabeleireiro de senhoras sem clientes que vai tentar salvar um amigo, Rómulo, El Guapo, criminoso particularmente desastrado, que entrou num plano diabólico de um terrorista internacional para raptar Ândela Merkel em Barcelona.

O nosso herói vai tentar evitar o rapto e para isso conta com a colaboração de Juli, homem-estátua africano albino, Pollo Morgan também homem-estátua que faz uma magnífica Rainha Leonor de Portugal embora com bigode e ainda Moski, russa estalinista que toca concertina nas ruas e no metro.

Mas ainda há mais: Quesito, uma miúda de 13 anos que só Magnuns e é capaz de arrombar qualquer porta; Cândida, a irmã do nosso herói, ex-prostituta que tem como medalha de honra ter batido uma segóvia ao bispo de Tudela; um swami, mestre de ioga e meditação transcendental, um restaurante chamado VENDE-SE CÃO e cento e desasseis chineses vestidos de tiroleses, de batman e do que mais calhou, intitulando-se COLÓNIA ALEMÃ DE BARCELONA cagindo em bloco sob comando do dono do Bazar chinés "LA BAMBA".

Se esta discrição não chegar para vos aguçar o apetite, meus amigos, resta-vos uma magnífica carreira como carpideiras profissionais!

quarta-feira, 3 de julho de 2013

e os hipopótamos cozeram nos seus tanques



OS BARES FECHAM ÀS TRÊS DA MANHÃ NAS NOITES DE SÁBADO e por isso cheguei a casa por volta das 3.45 depois de tomar o pequeno-almoço no Riker’s na esquina da Christopher com a Sétima Avenida. Atirei o News e o Mirror para cima do sofá, despi o meu casaco de crepom às riscas e larguei-o em cima deles. Ia direito para a cama.


Nesse momento, a campainha tocou. É uma campainha estridente que fura os ouvidos e por isso corri rapidamente para carregar no botão que abre a porta da rua. Depois tirei o casaco do sofá, pendurei-o numa cadeira para que ninguém pudesse sentar-se em cima dele e meti os jornais numa gaveta. Queria ter a certeza de os ter ali quando acordasse de manhã. A seguir atravessei a sala e abri a porta. Calculei o tempo precisamente para que não tivessem oportunidade e bater.

Entraram quatro pessoas. Agora vou dizer-vos por alto quem eram essas pessoas e que aspecto tinham, uma vez que esta história é quase toda acerca de duas delas.

William S. Burroughs & Jack Kerouac


Uma descrição dos acontecimentos que conduziram ao crime passional e que em certa medida foi a centelha original dos escritores Beats, William S. Burroughs (1914-1997), Jack Kerouac (1922-1969) e Allen Ginsberg (1926-1997). Escrito a meias por Burroughs e Kerouac em 1945, em capítulos quase alternados assinados por Will Dennison (Burroughs) e Mike Ryko (Kerouac), o manuscrito esteve perdido no espólio de Kerouac durante 60 anos e só foi publicado em 2008. Um livro que não sendo uma obra prima tem interesse do ponto vista histórico e sociológico. Um relato sobre os acontecimentos romanceados que antecederam um crime passional que teve lugar em Nova Iorque no final da II Grande Guerra e que envolveu dois homens, ambos amigos dos autores e de Ginsberg. Num estilo existencialista, podemos ler a descrição de vidas vazias, pontuadas pela indolência, pelo alcoolismo, pelo consumo de drogas e por relações hetero, homo e bissexuais complicadas, e claramente infelizes e frustradas. O crime passional é resultado da tensão e da ambiguidade destas relações. 

É interessante referir que este crime foi retratado no seu tempo com sensacionalismo e fez parte, durante alguns anos, da cultura urbana de Nova Iorque. Merece ser também mencionado que foi a reacção extremamente negativa dos professores e mentores de Ginsberg que o demoveram da intenção de escrever ele também o seu relato dos acontecimentos.  

Recordemos que este manuscrito antecede em muitos anos "Howl and Other Poems" (1956) de Ginsberg, "On the Road" (1957) de Kerouac e "Naked Lunch" (1959) de Burroughs, livros que são inquestionavelmente os mais marcantes e emblemáticos da Beat generation. Percebe-se com este "E os Hipopótamos Cozeram nos seus Tanques", que o romantismo em que estão envoltos os escritores desta geração é largamente exagerado. 

A obra, que em Portugal é editada pela Quetzal, conta também com um esclarecedor posfácio do editor nova-iorquino James Grauerholz. 

Orfeu B.     




O TEATRO DA LEI


Com a prática deste blog tenho descoberto a distância que vai da leitura à escrita. E também como a escrita nos ajuda a consolidar a leitura. Quando lemos com o propósito de vir a escrver, mesmo que seja só para consumo própio, somos obrigados a ir mais fundo que o simples entretenimento

Por isso este exercício se torna por vezes difícil de manter sobretudo quando o dia-a-dia é balburdento e o tempo escasseia

A leitura não a deixo. Mas quando quero parar para escrever, ao fim do dia, não me sobra a felicidade da preguiça tão importante para estruturar o escrito. Por isso se acumulam as leituras com que quero infectar os amigos e os leitores deste blog e escaseia o tempo para tornar esse desejo em palavra escrita.

Parece que agora o tempo chegou Tenho muitos livros lidos de que quero falar. Pequenos e grandes prazeres que quero partilhar. E começo por "Os dois irmãos" do meu amigo Germano de Almeida.

Por volta sw 1976, a seguir à ind, deixando Maria Joana, a jovem esposa, na aldeia. Ao longo do tempo, André vai-ze afastando

3 anos depois recebe uma carta do pai a anunciar-lhe que o irmão mais novo se envolveu com Maria Joana desonrando assim não só o marido como toda a família.

André tem uma ternura especial pelo irmão e regressa à aldeia para tentar encontrar alguma solução pacificadora. Mas toda a aldeia, começar pelo pai, lhe exige que mate o irmão.

21 dias depois de regressar, André mata o irmão e é levado a tribunal acusado de fratricídio.

A narrativa é conduzida com mão de mestre por Germano de Almeida, num balanço que vai do julgamento aos acontecimentos que o provocaram e confronta as várias versões e testemunhos com a verdade, ou a possível verdade, na busca da resposta à grande dúvida: até que ponto André terá sido apenas a mão de uma justiça ancestral que se recusa a conjugar-se com os critérios de uma justiça moderna. E se André terá porventura de ser condenado à luz da justiça oficial, tornar-se-á um herói perante a sua famúilia e a sua aldeia.

A história é baseado em factos verídicos e Germano de Almeida foi na realidade o agente do Ministério Público que fez a acusação ao fratricida.

O que é brilhante é ter conseguido construir uma história concentrada e multifacetada, com um ritmo que nos agarra pelos colarinhos e que mostra como se pode narrar histórias verídicos não do lado da estrita realidade jornalística mas do lado do puro talento talento e da arte literária.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

"Estamos sós com tudo aquilo que amamos" Novalis

Leituras de Verão... Respigando bibliotecas.


O Tempo Esquecido”

de Anita Brookner.
Difel


A boa escrita de Anita Brookner que prende e desconcerta. Como se, até na sombra de dentro de casa, confortavelmente sentados numa voltaire, com água fresca ao lado, nos assolasse o sufoco e o cansaço de percorrer ruas em abafadas e quentes tardes de Verão.