domingo, 31 de maio de 2009

"HISTÓRIAS DE AMOR" de JOSÉ CARDOSO PIRES




Bela escrita. Seca, dura, curta, eficaz. Segundo livro de José Cardoso Pires poribido pela censura depois de cortes inomináveis. Já aqui está presente o que fará a raiz de uma das mais belas aventuras da literatura em língua portuguesa, que viria a ter os momentos maiores em livros como “O delfim” ou “Alexandra Alpha.”

É óbvia a influência de uma certa literatura americana, sobretudo dos melhores escritores de short stories. A visualidade a dever muito ao cinema, a contenção a dar espaço ao leitor para completar a cena e desenvencilhar-se das ambiguidades cuidadosamente deixadas a pairar.

Curioso como a escrita nos situa nos anos 50 e na forma de respirar e falar desse tempo. Particularmente nos diálogos, nos gestos, nos movimentos, talvez até no discorrer do tempo da acção. Lembro-me desta forma de falar dos homens, das mulheres dos amantes. Já não a minha. Mas a que eu via/ouvia aos mais velhos e depois no cinema português da época.

São estes recantos da escrita que fazem da literatura um instrumento notável para estudarmos os anos idos e as suas pequenas histórias que são as que realmente constroem a grande História.

Curioso ainda ver o que preocupava os homens da censura nesta edição que mostra os cortes impostos pelo lápis azul. São a prova de que este país era, mais do que um estado policial, um mundo de pobreza humana, mediocridade e pequenez moral e estética.

Por fim, é muito curioso e muito próprio de Cardoso Pires a asa que, de repente, baixa sobre a dureza da posa e lhe abre uma inesperada dimensão poética, conferindo a alguns dos seus contos uma grandeza única.

Histórias de Vida e A Vida das Histórias


Não sei se recordam um programa na RDP Antena 1 onde o Miguel Guilherme apresentava um conjunto de histórias escritas por ouvintes. Penso que o programa se chamava Histórias de Vida. As edições eterógemeas resolveram editar algumas das histórias de vida num livro que se chama "A Vida das Histórias" com ilustração de Gémeo Luís. As pequenas histórias são muito interessantes, atractivas e bem escritas (pelo menos amarram o leitor ao livro). Nas 28 histórias apenas uma que não li com entusiasmo. As outras deixaram-me sempre, alternadamente, com um sorriso nos lábios ou uma lágrima no olho. Acho que é isso que importa, os livros fazerem-nos viver. Sei que muitos dos leitores deste blogue, são profundos leitores, sei também que se podem aborrecer com os meus posts que são um pouco aligeirados. Mas a única coisa que me resta a minha honestidade e ela obriga-me dizer que fiquei encantado com este livro de escritores amadores. Ainda por cima é ilustrada pelo alguém que tanto admiro. Gémeo Luís amplia toda a afectividade que estes escritores revelam.

sábado, 30 de maio de 2009

ANTÓNIO BOTTO, O ESTETA PERFEITO


A senhora que trabalha em nossa casa resolve, de vez em quando, parar com os seus afazeres habituais e dedicar-se à “arrumação” dos meus livros. Segundo dois critérios, consoante as situações: se os livros estiverem postos ao alto na prateleira, passarão imediatamente a ficar “arrumados” pelas suas alturas; se os livros estiverem simplesmente empilhados, continuarão a ficar numa pilha, mas segundo as suas espessuras.
Por mais que lhe peça, que lhe ordene, pouco ou nada consigo: “Custa-me tanto ver as coisas todas desarrumadas…” Ultimamente, já nada digo, até porque aquelas “arrumações” trazem, por vezes, surpresas agradáveis: obras esquecidas, sepultadas no meio de tantas outras, acabam por voltar a ver a luz do dia, a exigir que eu as leia, que lhes dê uma nova existência.
Foi o que aconteceu esta semana: inesperadamente, encontrei, no cimo de um monte de livros, uma obra de Fernando Pessoa, Aviso por Causa da Moral (Hiena Editora), que contém um ensaio que ficou célebre na história da literatura portuguesa: “António Botto e o Ideal Estético em Portugal”. Como tinha outros textos para ler, deixei o Pessoa e o Botto para leitura posterior e desci para o andar de baixo. Mas, mal acabara de chegar ao piso inferior, deparei com outra estante com sinais evidentes de “arrumação” recente. A curiosidade fez-me parar, espreitar o que ali haveria de “novo”. À frente de todos, um livro de José Régio, António Botto e o Amor! Como a minha empregada não é versada na coisa literária e como não acredito no acaso, só me restava uma alternativa: sujeitar-me ao que os deuses estavam a exigir de mim. Voltei ao andar de cima, peguei no livro do Pessoa, juntei-lhe o livro do Régio e fui para a sala, a folheá-los, a tentar perceber por onde tinham andado naqueles anos todos. Mistério maior, o da obra do Régio: era uma edição de 1937, publicada pela Livraria Progredior, do Porto (casa há muito desaparecida). Na primeira folha, o meu nome e uma data: Setembro de 1949, o mês em que fiz 16 anos. E ressurgiu-me o passado e as circunstâncias que me levaram à aquisição do livro: naquelas férias, eu tinha lido As Canções de António Botto (edição da Livraria Bertrand) e tinha ficado maravilhado (como se pode ficar aos 16 anos!) com a sua poesia.
E, como não podemos fugir ao que os deuses nos determinam, tenho, desde esse momento, lido e relido As Canções, o ensaio de José Régio, As Páginas de Doutrina Estética de Fernando Pessoa (Editorial Inquérito). Lido, sim, e revivido as emoções que a poesia de António Botto sempre me havia suscitado.
As Canções de António Botto é uma obra ímpar na literatura portuguesa, na qual se agrupam (em versão definitiva) os diversos livros que o autor foi publicando nas primeiras décadas do século XX.
A obra inicia-se com um texto de Fernando Pessoa, de que transcrevo uma parte:

A noção de beleza masculina, é de todos os elementos do ideal estético, aquele que mais pode servir de arma contra a opressão do nosso ambiente; daí servir-se António Botto dela com uma constância e uma persistência que há não só que compreender, mas que louvar. António Botto é um esteta grego nascido num exílio longínquo. Ama a Pátria pérfida com a devoção violenta de quem não poderá voltar a ela.

Pessoa é o primeiro a chamar a atenção para a poesia de António Botto, ao publicar, em 1922, o artigo já referido. Por sua vez, José Régio, na obra citada (1937), organiza os textos que lhe havia dedicado, nos quais escreve:

António Botto é acima de tudo um voluptuoso e um intelectual. O seu intelectualismo é tanto mais real, tanto mais fundo, quanto se revela verdadeiramente individualizado; e quanto se desenvolveu, não, como em tantos outros, ao contacto dos livros, mas ao contacto da vida.

Se cito estes dois autores, Pessoa e Régio, e respectivas datas dos seus ensaios críticos, pretendo fundamentalmente duas coisas: mostrar a importância que António Botto teve na nossa poesia na primeira metade do século XX; chamar a atenção para a novidade radical da sua poesia, motivo de escândalo para a sociedade do seu tempo, como se pode comprovar com o panfleto que estudantes de Lisboa fizeram circular, em 1923, pedindo a proibição e a apreensão dos seus livros. Vejamos alguns exemplos dessa “imoralidade” que tanta mossa fez ao “provincianismo mental português”:

Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
- És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.

Este é um dos textos do primeiro livro de As Canções (“Adolescente”), em que António Botto expressa, em toda a sua plenitude, o amor pelo “senhor dos meus olhos”. Vejamos outro poema do mesmo livro:

Anda, vem…, porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha, – rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos…
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!

Esta paixão, este desejo de “Adolescente” vai-se alterando ao longo do tempo, como se poderá constatar pelo livro Dandysmo, de que transcrevemos um poema:

Na última carta
Chamavas-me decadente;
E eu achei graça,
Fez-me rir
A tua carta

Quiseste insultar-me,
E afinal,
Conseguiste ser gentil.

Os homens
- Ou os povos;
Saturados
De tudo compreenderem,
Decaem
Quando preferem
Ao gosto austero de criar,
O estéril
E fino deleite
De contemplar o que está feito.

Esta evolução acentua-se ao longo dos livros que compõem As Canções, para assumir uma forma muito própria – a perda, a saudade – no último livro, Toda a Vida, de que é exemplo este poema:

É tamanho o meu medo de perder-te
Que penso que te perco a cada passo.
- Se te perdesse, em verdade,
Iria perguntar
Ao mistério da saudade:
E agora, o que é que eu faço?!

Talvez me respondesse: Espera, qualquer dia
Há-de voltar se o seu amor não mente;
- Mas quando a gente gosta não confia
Nem se humilha a esperar e a ser ausente

E, no último poema desse livro, a despedida, a saudade (sempre a saudade), a morte e, no final, um toque de ironia, a admirável ironia que atravessa muita da sua poesia.

Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?

O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: “Não volto a procurar-te”.
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.

Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
- Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer:
- Ficarmos alheiados ou suspensos, -
Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...

Não leias êstes versos. Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira

António Botto, considerado no seu tempo, como um “poeta maldito”, assume, hoje, um lugar cimeiro na história da poesia portuguesa: um dos seus maiores líricos e, no dizer de Fernando Pessoa, o seu único esteta.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

"MANHÃ SUBMERSA", UMA RELEITURA




Muitos foram os escritores que, ao longo do século XX, foram considerados estrelas de primeira grandeza, destinadas a brilhar até ao fim dos tempos. Mas quantos, quais, ficarão na história da literatura portuguesa? Poucos, de certeza. E entre esses poucos não poderá deixar de estar o Vergílio Ferreira. Obras corno "Alegria Breve", "Aparição" ou "Manhã Submersa" dificilmente poderão ser afectadas pela erosão do tempo. E por várias razões: pela perfeição da escrita, pela força dos temas que lhes conferem estrutura, pela universalidade dos sentimentos, das emoções das personagens. E, talvez acima de tudo, pela dramaticidade das histórias que nos contam.
Estas considerações decorrem da releitura que acabo de fazer da "Manhã Submersa". Li a obra pela primeira vez há cerca de cinquenta anos. Reli-a há uns trinta, para, agora, voltar a lê-la. Sempre com prazer, sempre com espanto. Fundamentalmente pelo modo corno Vergílio Ferreira caracteriza situações, personagens, ambientes sociais - sentidos, sofridos no corpo e na alma de um menino pobre de uma aldeia beirã, que é enviado para o seminário, mercê do auxílio que lhe presta a senhora rica - viúva e beata - da aldeia, que quer fazer dele um ministro de Deus. A acção decorre nos três cenários distintos em que o jovem se move: o seminário; a pobreza da casa da sua família; a casa da família rica que o protege. Sempre com referências aos ambientes naturais em que se inserem. Mas, para além destes elementos de ordem objectiva, existe um outro, de natureza subjectiva, que estrutura e dá sentido à história: a vida interior do jovem seminarista - as suas emoções, os seus sentimentos, a teia de intimidades, de cumplicidades em que se vai envolvendo. Este é, em última instância, o verdadeiro cenário em que tudo acontece. E é essa dimensão que confere à obra um lugar muito especial na literatura portuguesa que tem a infância, a juventude, como tema. Não só na nossa literatura, como na literatura europeia do século XX. Ora, foi exactamente esse aspecto que foi ganhando relevo ao longo da releitura que acabo de fazer. Na verdade, eu, como professor que sou, sempre dera primazia à caracterização das pessoas e das situações da instituição educativa em que o jovem se inseria. Ou seja, sempre valorizara o aspecto objectivo em detrimento do subjectivo. E tinha boas razões para tal: a "Manhã Submersa" constitui um testemunho da maior importância para a História da Educação em Portugal. O ambiente, o dia-a-dia dos alunos naquele seminário do Portugal profundo dos anos vinte, é algo que nenhum professor (e nenhum cidadão) pode esquecer, pois representa uma parte importante da nossa história contemporânea: foi nessas instituições de ensino que se forjou a mentalidade de muitos dos que detiveram o poder na nossa sociedade. A violência, a arbitrariedade, os métodos de ensino e os que tinham como finalidade moldar o carácter dos jovens são magistralmente descritos por Vergílio Ferreira. Atente-se, por exemplo, na descrição das aulas de latim, assentes na competição (a mais feroz das competições) entre os dois "partidos" em que se dividiam os alunos. Verdadeiras guerras do saber (e do estar), fomentadas pela instituição escolar, nas quais se podem detectar todos os elementos constitutivos da escola e do ensino tradicional: predomínio do saber sobre o ser; valorização da memória em detrimento do raciocínio; hierarquização e disciplinarização nas relações professor-aluno, aluno-aluno; formalização do acto educativo; e, acima de tudo, competição. Competição terrível, em que os mais fortes têm todos os direitos, inclusivamente o de passar por cima do cadáver dos vencidos.
Enfim, algo de longínquo, sepultado nas cinzas da nossa história recente? Talvez sim, talvez não. Em última instância, compete a cada um de nós determinar onde se situa: no passado, onde se passa esta história, ou no tempo presente, em que se vive, sente e pensa de um modo “diferente”? Às vezes, talvez nos dois, em simultâneo...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Beethoven era 1/16 Negro



"The past is valid only in relation to whether the present recognises it"

"Beethoven was One-Sixteenth Black"
Nadine Gordimer

Beethoven era 1/16 Negro é, segundo entendo, a mais recente colectânea de contos da escritora sul-africana, Nadine Gordimer, Prémio Nobel da Literatura de 1991. A qualidade excepcional dos contos dessa colectânea é bastante homogénea e tem como denominador comum a exploração narrativa do reflexo que os desenvovimentos históricos têm na história pessoal dos personagens e de seus antepassados. Esta interacção entre a história colectiva e a história individual é particularmente pungente num país que atravessa profundas transformações e que procura encontrar uma nova identitidade nacional num mundo onde esta marca distinta dos povos está a ser continuamente erodida pelos mecanismos da globalização e da uniformização cultural. Num país onde a atribuição de uma putativa ascendência negra para Beethoven é a fórmula encontrada pelo locutor branco da rádio para justificar a emissão das obras do compositor, em particular, os Quarteto de Cordas, no. 13, op. 130 e no. 16, opus 135. Reflexos de uma recém forjada ideologia baseada no antagonismo automático ao passado:

"Antes havia negros que queriam ser brancos.
Agora há brancos que querem ser negros.
É o mesmo segredo."


E no contexto desta complexa dinâmica, Nadine Gordimer, explora os grandes eixos existencias ao tratar de temas como os da raça, identidade, memória, amor e sexualidade, demonstrando, por vezes de forma extremamente subtil, que nunca estamos libertos do passado. E a realçar a profundidade da análise há uma escrita de grande elegância, na qual as palavras sucedem-se umas às outras com uma precisão matemática, e cujo resultado é uma mosaico particularmente rico de vivências e, acima de tudo, profundamente humano e comovente. Pois há de tudo nesta colectânea: as paradoxos intelectuais de um sonho que envolve Susan Sontag e outros artistas a conversar num restaurante chinês; um escritor, esteticamente próximo de Proust e Kafka, às voltas com um insecto (Gregor) real-imaginário no ecrã da sua máquina de escrever eléctrica; o complexo processo de adaptação por que passam os que vêm de Europa para a África do Sul contemporânea; a história das habilidades linguísticas de um papagaio que durante décadas reproduzia as disputas e conversas amorosas dos clientes em um restaurante; e por fim, três hipóteses para um epílogo envolvendo os sentidos da visão, da audição e do olfato.

Uma última reflexão. Pessoalmente, não posso evitar a associação de Nadine Gordimer com outro escritor sul-africano que eu muito aprecio e admiro, John Coetzee, Prémio Nobel de Literatura de 2003. Têm em comum a elegância, a precisão e a economia de seus estilos. Ambos exploram temas que invarialmente têm como foco as contradicções, a violência e as profundas transformações do seu país natal. Mas há, a meu ver, pelo menos uma diferença fundamental: Coetzee apresenta-nos uma visão da realidade marcadamente masculina, em perfeita complementaridade com a ultra subtil perspicácia feminina de Gordimer.


Orfeu B.


sábado, 16 de maio de 2009

JORGE DE SENA NO CENTRO DA POLÉMICA LITERÁRIA



De Jorge de Sena, uma das figuras mais emblemáticas das letras portuguesas, na segunda metade do século XX, acaba de ser publicado um livro, “Sobre Teoria e Prática Literária” (edição da Caixotim), que compila muitos dos seus textos sobre estas matérias. Textos geralmente de pequena dimensão, quase todos inéditos. Os temas abordados são múltiplos, guardando, quase todos, uma actualidade impressionante. A acutilância e a limpidez da linguagem, a frontalidade das posições assumidas e a originalidade de perspectivas são razões suplementares para lermos, e relermos, esta obra.
De entre os textos que a constituem, quero destacar os seguintes:

Acerca de diversas formas de escrita, em que são analisados diversos aspectos e problemas que se põem ao crítico literário.
Sobre traduções, breve notas, matéria em que Jorge de Sena é especialista. Notas breves, sim, mas a reflectirem as suas preocupações sobre as peculiaridades, o valor e o papel social das traduções. E, claro, as dificuldades com que se confronta o tradutor – por exemplo, será possível traduzir uma obra se não se conhece a cultura do país em que foi escrita?
Traduções de versos, onde se continuam a discutir problemas postos no texto anterior, concretizando-os, aplicando-os ao campo da Poesia. Quais os critérios a utilizar, qual o método científico a seguir? E conclui com uma questão pertinente: “(…) se o poeta que traduz é levado a ver a mais [“do que lá está”], quando o espírito crítico o não detém, o não-poeta vê sempre menos e não há ciência crítica que o salve.”
Modernismo e modernismo. Texto datado (1962), que interroga as diversas acepções do conceito. Além de ter um valor histórico importante (como eram colocadas a s questões estéticas naquela época, com o marxismo em pano de fundo), mostra como os verdadeiros problemas da arte atravessam os tempos.
Forma, conteúdo e tradução. Texto de 1974, em que se verifica uma evolução em relação a textos anteriores, dos anos cinquenta. Evolução no sentido de um aprofundamento de ideias já expressas: “(…) a tradução tem por fito recriar noutra língua uma dicção que se realizou numa outra. Se quisermos simplificar: o binómio forma-conteúdo que aparecer nessa obra é constituído por um binómio equivalente na língua para que se traduz (…) Assim, a tradução é uma arte que requer uma substancial dose de ciência, não apenas de artifícios poéticos, mas de linguística e de cultura histórico-literária. Grande tradução será aquela em que não se desintegrou aquela unidade estrutural que no texto havia. Tal como grande crítica é a que, ao analisar e comentar um texto literário, não esquece todos os aspectos em que ele se realiza.” Melhor e mais simples ninguém podia dizer!

Através dos textos que citei (textos referidos pela ordem cronológica da sua escrita), pretendo apenas chamar a atenção para a riqueza desta obra de Jorge de Sena, expressão do seu pensamento e intervenção na cultura da época. Obra plena de inteligência de um dos escritores mais lúcidos, cultos e criativos das últimas gerações.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

CRÍTICO OU CURADOR?




Os critérios pelos quais a crítica analisa a obra literária têm mudado ao longo dos últimos anos. Segundo o escritor argentino Oliverio Coelho (em número recente da “Babélia”, suplemento cultural de “El País”), uma obra já não é valorizada por si própria. A qualidade literária, o estilo, a dinâmica interna do texto já não são as categorias principais para a sua apreciação – e consequente valorização. Procuram-se, sim, outros “marcadores” que garantam a sua modernidade. Modernidade que se poderá expressar tanto pela sua “linguagem mediática”, como pela utilização de textos híbridos. Se assim acontecer, a obra e o autor serão alcandorados a uma categoria altamente valorizada, a de “nova geração”.
Estamos, pois, perante um fenómeno de mediatização da obra literária, analisada segundo critérios que lhe são extrínsecos, ficando o crítico relegado para um papel de curador de obras literárias, em tudo semelhante ao do curador de obras de arte. E, como curador que é, tem como função “cuidar” da circulação pública da obra – e tudo o que é essencial ao texto ficará irremediavelmente oculto…

sábado, 9 de maio de 2009

A Sul da Fronteira, A Oeste do Sol


O que fica a sul da Fronteira? Em criança, Hajime não sabia, apenas a ouvir esta música de Nat King Cole, em casa da sua amiga Shimamoto, tinha uma sensação de grande prazer que lhe ficou marcado na memória para o resto da vida. Mais tarde Haijime, narrador da sua história, experimenta essa sensação de deserto na sua vida, pela ausência de Shimamoto, percebe o que fica a sul da fronteira, um deserto, um vazio. Uma espécie de "histeria siberiana" que acontece com os camponeses na Sibéria que de repente deixam tudo e caminham rumo a uma terra que fica a Oeste do Sol até morrerem de fome ou de sede.  Ele também vai secar por completo atrás de uma aparição. Uns bons anos depois das tardes a ouvir Nat King Cole, Hajime está casado com a filha dum empreiteiro que o ajudou a abrir os seus dois bares de Jazz, é agora um empresário individualista, que esqueceu quase por completo os anos de estudante idealista. No entanto algo o vai sugar por completo a sua vida, a sua alma, a aparição de Shimamoto trás a vivência desse grande amor, dessa paixão perdida. Hajime vive uma temporada de paixão e que termina com o desaparecimento dela, o leitor fica sem saber se Shimamoto existiu apenas na cabeça de Hajime. Este acontecimento vai provocar em hajime essa morte, ele fica sem vontade, sem desejo de nada, um homem sem expressão, sem vida. 
Novamente em Murakami, encontramos o homem sozinho na imensa cidade, numa história de amor improvável ou impossível. Quase autobiográfico, este romance está cheio de beleza e sensualidade. Mas o que me faz gostar mais da escrita de Murakami é este caminhar para um precipício onde a realidade se mistura com o sonho. 
"Sentado à mesa da cozinha, segui com os olhos a nuvem que flutuava sobre o cemitério. A nuvem não se tinha mexido um milímetro. Estava parada, come se estivesse pregada no céu. "São horas de acordar as minhas filhas", pensei. Já nasceu o dia, elas têm que se levantar. Elas precisam deste novo dia de uma maneira bem mais intensa do que eu. Devo aproximar-me do quarto delas, puxar as cobertas para trás, pousar a minha mão sobre os seus corpinhos quentes e suaves, e anunciar-lhes que começou um novo dia. Tenho de o fazer, quanto antes. Foi isso que pensei, mas por qualquer razão, não consegui levantar-me da cadeira onde estava sentado, à mesa da cozinha. Finquei os cotovelos na mesa e escondi o rosto nas mãos. 
No interior daquela escuridão, pensei na chuva que caía sobre o mar. chovia em segredo no vasto oceano, sem que ninguém soubesse disso. A chuva fustigava em silêncio a superfície das águas e nem sequer os peixes se tinham dado conta.
Até que alguém se aproximou de mim e pousou suavemente a mão sobre o meu ombro, os meus pensamentos pertenceram ao mar."

sábado, 2 de maio de 2009

AS PEQUENAS GRANDES HISTÓRIAS


Se todas as formas e todos os géneros literários têm dificuldades e características específicas, nenhum sobreleva em dificuldade o que acontece com as pequenas histórias. Histórias em que cada palavra, cada ritmo de frase, é aquele e só aquele. Histórias que têm um pé na oralidade e outro na escrita. Histórias que, para atingirem o que o autor pretende, têm de funcionar plenamente numa primeira leitura. Embora este género tenha tido cultores desde sempre, atingiu, na segunda metade do século XX, inícios do XXI (em parte, por influência da Internet), uma expressão nunca antes alcançada. De todas, ou de quase todas as partes, chegam-nos continuamente notícias de novos autores, de novas formas, de novos conteúdos.
Assim, e por exemplo, a argentina Ana Maria Shua publicou, este ano, uma obra, “Cazadores de letras” (Páginas de Espuma, Madrid), na qual se apresenta um panorama completo dos seus “microrrelatos” ou minificções”, que, espero, venha a ser publicado em Portugal.
Tudo isto vem a propósito da obra de Manuel Rogério Gonçalves, “Um Senhor com Poderes Estranhos e Diversas Virtudes – 100 Textos de 100 Palavras” (Editorial 100), que, em 2008, fez a sua estreia neste género literário. Obra extremamente interessante, a reflectir a cultura e a vivência do autor. Escrita numa linguagem elaborada, plena de subtileza e de humor (por vezes, de ironia), abrangendo situações e temas diversos. Embora um dos preceitos clássicos deste género se cumpra, ou seja, a acutilância de cada uma das histórias torna-se evidente logo numa primeira leitura, os diversos sentidos que elas encerram só surgem em leituras posteriores.
A variedade dos temas tratados e os diversos estilos de escrita utilizados talvez permitissem uma organização dos textos por grandes temáticas. Mas se o autor não o fez, não cumpre a mim fazê-lo… No entanto, não resisto à tentação de dar alguns exemplos que ilustram o que estou a dizer.
Assim, o texto “O que fazer de uma história exemplar?” é um exemplo da ironia com que o autor aborda muitos assuntos. Texto que começa por uma história que vai dar origem a outra:

“Naquela manhã em que os paroquianos se juntaram na igreja para rogar ao Altíssimo que lhes mandasse chuva, foram invectivados do púlpito: - Gente de pouca fé! Vêm pedir chuva e não trazem guarda-chuva.”

Depois desse começo, o autor continua:

“Algumas das histórias, aqui compiladas, não as inventei eu de todo. Ainda assim, para além de as formatar ao tamanho que me propus, esforços não poupo para torná-las minhas. Vou falar de uma senhora, ali ao lado, no jardim do Marquês, que nunca desiste de me oferecer panos de louça. Lembrar-me-ei de dizer-lhe o sítio, que eu conheço, onde irá vender guarda-chuvas num dia de verão”

Ou a história de um “impenitente solteirão” (“Quem tarda se guarda”), que, “para cortar nas despesas”, parte sozinho para viagem de núpcias.

“O impenitente solteirão, com os anos pesando, irá perguntar à senhora que lhe presta cuidados se ela o aceita por legítimo esposo. Tudo será da maneira mais simples, sem flores, sem música ou brindes. Ela irá de branco ou da cor que quiser. Ele mandará limpar a seco o fato de domingo. Ela irá pagar a promessa que fez de não morrer solteira. Ele assistirá a uma missa por alma dos Pais. Tão felizes vão, ela dizer que sim e ele também o que ficará nos papeis. E, depois, para cortar nas despesas, ele partirá, sozinho, em viagem de núpcias”.

Outras histórias expressam as reflexões do autor sobre a criação artística. É o caso do texto “Terminado definitivamente definitivamente inacabado”, com uma referência à criação divina:

Há um momento em que termina (definitivamente) o gesto do criador, quando o pintor põe de lado o pincel, o escritor pousa a caneta. O objecto terminado (finalmente) de criar, e que se dizia, até então, por acabar, vai tornar-se, definitivamente (para sempre) inacabado. Porque a obra criada, separada do seu criador, fica disponível para nova vida num diálogo incessante com quem apareça disposto a visitá-la. Toda a obra de arte, enquanto vai vivendo esse diálogo, lembra e vincula o criador. Como teria passado isso pela mente de um deus, a vinculação desse deus aos objectos da sua Criação?”

Quase a terminar o livro, Manuel Rogério Gonçalves dá-nos um texto (“De um jogo infantil, a Vida”), em que o Sonho e a Poesia (que subjazem a todos os escritos) são assumidos de forma clara e precisa:

“Talvez por outras palavras recitado, de um jogo infantil – Minha Mãe, dá licença? – Sim, minha filha: dois passos à frente. – Minha Mãe, dá licença? – Dou, minha filha: um passo para trás – aprendi que a Vida não é o trajecto linear, noutro tempo sonhado. Dor suportável pela certeza de que nunca serão vãos os passos em frente – a certeza mesma de nada deter um fio de água desde que da nascente se soltou. Embora com um coração estremecido de criança que gostaria de ganhar sempre e tem pena, aqui vou maravilhado de a Vida, mais e mais, se tornar um caudal imparável”.

Esta foi a “leitura” da obra que acabo de “reler”. Outros leitores terão certamente outras leituras. Mas sejam elas quais forem, algumas das histórias que integram o livro de Manuel Rogério Gonçalves não poderão deixar de fazer parte de uma antologia de autores portugueses que cultivam este género literário. Que seja para breve essa antologia!