sábado, 29 de novembro de 2014

HAVERÁ MÚSICA E LIVROS



Primeiro livro de Romand Gary, que tem como cenário as florestas Lituanas em 1942 durante os duríssimos anos de resistência ao nazismo.

Gary, ele próprio, fugiu de França onde vivia com a mão para Inglaterra onde se juntou às tropas gaulista e se tornou num heroico piloto de aviação durante a 2ª Guerra.

O personagem central do livro é o jovem Janeck que vive na floresta com os partisans. O pai, o médico Tardowski morre como um heróis sem que o filho o saiba.

Janeck torna-se um homem e encontra o amor ao longo do livro e dos anos de luta na floresta contra os nazis. Torna-se ele próprio um partisan, colabora nas várias tarefas da resistência, apoio assaltos, ajuda os companheiros mais velhos na vida e na hora de morrerem. E tem uma paixão: a música. E pode-se dizer que as passagens em que ele encontra uma rapariga pianista, num caso, um menino judeu violinista, noutro caso, são momentos de rara beleza e emoção.

A música representa udo aquilo a que Janeck aspira, o contrário absoluto da opressão, da barbárie, da desumanidade. A música é para ele um diálogo transcendente com o que há de mais humano (ou mais divino) nos homens.


Por vezes o livro parece ficar por uma idealização da resistência, dos valores humanos que persistiuram na luta contra a barbárie nazi. Mas Gary foge rapidamente a essa idealização através da construção de um tapete de pequenas histórias que se cruzam, sucedem, sobrepõem-se com momentos de horror ou de ternura, fugindo a essa idealização do que possa ser a humanidade, a dos próprios partisans que não são heróis impolutos mas homens que se debatem com o nazismo e com as suas próprias contradições.

O título vem da ideia subjacente a todo o livro de que na resistência se adquirem e constroem os valores que irão ser os da construção de uma nova Europa livre, culta, democrática, em que todos acreditaram e que, com o correr dos tempos, nos escapou por entre os dedos das mãos.

Uma outra sequência de narrativas cruza o romance. São os contos que o estudante Dobranski vai escrevendo com a alegria e a paixão de quem faz da palavra uma arma também ela de resistência.

O jovem escritor afirma a dado passo que “Não há arte desesperada. O desespero é apenas falta de talento.”

As suas histórias são estranhas, raiam o absurdo e acendem uma faúlha de esperança e delírio, como é o caso do conto que anuncia a vitória na batalha de Leninegrado em que os cadáveres de soldados alemães conversam enquanto são levados pelas águas do Volga, sob o olhar de dois corvos russos saídos de um poema de Pushkin que os observam e se preparam para os devorar.

No final, quando a guerra está nos últimos dias Dobranski é atingido e enquanto vê a sua vida esvair-se ouve Janeck que lhe fala do tempo que está para vir com o fim da guerra e do nazismo.

“Havera música e livros, pão para todos e calor fraterno. Não haverá mais guerras, não haverá mais ódio.”

Sabemos como esta esperança alimentou muitos homens e continua a alimentar muitos outros apesar de estarmos a viver de novo um tempo de desespero em que teremos de lutar de novo e de outra maneira por tudo o que os partisans sonharam um dia.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O FEITIÇO DA ÍNDIA E O FIM DO IMPÉRIO




escrita de Miguel Real atinge neste livro um momento de grande qualidade e equilíbrio na ligação entre o trabalho do escritor, a investigação histórica necessária a um romance que atravessa vários séculos, a reflexão do filósofo sobre a identidade portuguesa na relação com os outros povos e sobre o conceito de Império Português e o seu fim que neste caso se torna territorial e humano na semente que põe um termo à presença portuguesa na Índia.

O autor conta-nos a história de 3 homens, José Martins que no fim do séc. XV é o primeiro português a desembarcar na Índia.

Depois virá Augusto Martiins., mestre de metalurgia que no início dos anos 50 do séc. XX emigra para a Índia.

Finalmente outro José Martins, filho de Augusto que vai à procura do pai em 1975.

Os três deixam-se enfeitiçar pela Índia e trocam nos dois primeiros casos as suas Rosas de Lisboa por Rhemas da Índia.

O ultimo apaixona-se por Sumitha, sua meia irmã e torna-se pai de Arun com quem acaba o sangue português na Índia.

Através destas três histórias conta-se a história do fascínio dos portugueses pela Índia, pelos seus hábitos e costumes, pela sua natureza excessiva e envolvente, pela sua sensualidade livre do mal e do. pecado cristãos. Fala-se, enfim, dessa “perdição”, dessa entrega ao fascínio do outro, que subjaz ao Império Português, já que é de homens e das suas paixões que se fazem os Impérios.

Nos três momentos desta história assistimos primeiro ao início do Império, à conquista e ao domínio feroz dos primeiros governantes, Vasco da Gama, Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque. E ainda ao extermínio dos árabes e aos primeiros sinais de entendimento entre portugueses e hindus.

O autor mostra-nos ainda a distância entre os que partem do pequeno Portugal e lutam e sofrem lá longe e os que governam na Côrte de Lisboa sem visão nem projecto e que apenas aspiram ao lucro fácil e imediato. Sempre foi assim e, ao que parece, continua.

No segundo momento, o autor mostra-nos a pequenez do domínio lusitano em tempos de Salazar, a perda do território da Índia Portuguesa, a manutenção de uma classe de burocratas luso-indianos onde a cultura do Império se resume a um exercício balofo e pomposo de rotinas caídas em desuso e que, de alguma forma, vão sendo tranquilamente suportadas ou toleradas pela nova Índia.

Num terceiro momento é a queda do Império, o fim dessa união carnal, sensual, estética, espiritual entre duas culturas tão distantes mas aparentemente tão afeitas uma à outra, através da morte de Arun e do fim do sangue português na Índia.

A escrita de Miguel Real funciona como uma espécie de máquina fotográfica que dispara permanentemente e nos vai dando páginas sucessivas de pormenores que se entrelaçam para compor um vasto retrato da realidade (a Índia ou Lisboa) que nos chega através de cheiros, cores, sabores, temperaturas, materiais, frutos, animais, doenças, pústulas, luzes, águas que nos colocam no interior desses espaços com uma raríssima intensidade.

Mas Miguel Real é um homem da filosofia e não apenas um narrador realista de cidades, casas, rituais, corpos entrelaçados. Todas essas descrições lhe servem para ir construindo de forma ficcional um olhar estruturado sobre aquilo a que se chama ou chamou o Império Português, a sua decadência e o seu final.

Eu diria que este é livro denso, uma manta de histórias apaixonantes, em que a principal personagem somos todos nós, ou melhor, é Portugal, um herói multifacetado, ora pícaro, ora heróico e corajoso, ora feroz e bárbaro, ora sensual e deslumbrado, um Portugal à procura do seu novo lugar no mundo.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

INDÍCIOS DE OURO

INDÍCIOS DE OIRO
“Indícios de Oiro” é o título do último livro de poesia de Mário de Sá-Carneiro, publicado em 1937, pela revista Presença. O poeta, no entanto, havia-se suicidado, em Paris, em 1916, com vinte e seis anos incompletos. O conceito “indícios” já tinha sido utilizado por Mário de Sá-Carneiro em poemas anteriores, como “Quasi”, de que se transcreve a estrofe inicial: QUASI Um pouco mais de sol – eu era brasa Um pouco mais de azul – eu era além Para atingir, faltou-me um golpe d’asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Mas são exactamente os indícios desse “além” que se repercutem no “aquém” (a que estamos confinados), que se constituem em o verdadeiro Oiro da sua expressão poética – o que o autor não reconhece enquanto tal. Mário de Sá-Carneiro considera que não consegue atingir o “além”, mas que no “aquém” não pode permanecer. Daí, as tentativas de suicídio, a presença da morte nos últimos poemas, para mim, os mais belos. E o que acontece na Poesia, também ocorre noutras Artes, como a Música. Estou a pensar numa novela de Julio Cortázar (1914-1984), publicada na sua obra “As Armas Secretas”, edição da Cavalo de Ferro, em 2014. Nessa novela (é mais uma novela do que um conto), Cortázar dá notícia dos últimos tempos de vida de um músico norte-americano de Jazz, Charlie Parker. O texto, que tem como título “O Perseguidor”, é uma história romanceada dos últimos meses de Charlie Parker, a quem ele chama de Johnny Parker, o músico de Jazz, que, através do seu saxofone, persegue uma sonoridade muito pessoal, dificilmente vislumbrada, que lhe foge. Sonoridade talvez alcançada numa peça musical, “Amorous”, gravada sem a sua autorização. Se Mário de Sá-Carneiro vivia mergulhado em absinto, Parker era um consumidor inveterado de drogas duras. Quando morre, com quarenta e tal anos, tem o aspecto de um homem de mais de setenta anos. Cortázar diz-nos que tendo sido perguntado a Parker o que via, o que sentia, quando tocava peças como o “Amorous”, ele fala da Morte que o acompanha nesses momentos, em que tudo está perto, mas não se atinge. Que nunca se alcançará: “Campos cheios de urnas, Bruno. Montes de urnas invisíveis, enterradas num campo imenso”. E, mais adiante: “Não é uma questão de mais ou menos música, é outra coisa... por exemplo, é a diferença entre Bee [a filha] estar morta e estar viva. O que toco é Bee morta, sabes, enquanto o que quero, o que quero...” Como acontece com Mário de Sá-Carneiro, também esta situação se passa em Paris. Também estes “indícios”, afinal, sejam o Oiro mais fino que se possa alcançar no campo da Música de Jazz.

domingo, 9 de novembro de 2014

"Dijiste: "Iré a otra ciudad, iré a otro mar./Otra ciudad ha de hallarse mejor que ésta./Todo esfuerzo mío es una condena escrita;/y está mi corazón - como un cadáver - sepultado./(...)" Kavafis

A Lámpara de Aladino” 
de Luís Sepúlveda 
Porto Editora

Nesta época absolutamente desumana e falsamente embrulhada em humanidade que vamos atravessar podemos oferecer muito ou pouco. Sendo que o muito ou pouco que damos reside numa riqueza de palavras que não podemos ter sem o contributo da leitura. Digo leitura e não livros por ser mais lato, ainda que muitos de nós tenhamos coladas a nós as páginas do papel como a pele ao corpo.

Se podemos viver sem livros? Claro que sim. Mas seríamos muito mais pobres, solitários e infelizes. Ainda que possamos ser isso tudo no meio deles.
Quando recomendamos um livro fazemo-lo, por vezes, pelo que ela nos deu independentemente do contributo que deu à grande Literatura.

Gostar de um autor pode levar-nos à tentação de ler tudo dele e esgotar a surpresa ou de o relegar durante muito tempo para leituras futuras enquanto partimos à descoberta de novos. Na busca de equilíbrio cruzei-me com “A Lámpada de Aladino” de Luís Sepúlveda
Neste caso vale a pena o regresso porque reconhecemos a escrita, a atmosfera e a surpresa está lá. E trago-o aqui porque ainda não o consegui arrumar. 

Um livro de contos que é um livro de viagens. Quando estamos em casa para sair por aí e quando andamos por aí para ter um lugar de regresso. Para ser andarilho sem ficar perdido é preciso ter dentro de nós a casa e o ser. E para ser sedentário quanto baste é preciso viver nos livros a vida que nos falta.

Luís Sepúlveda conta-nos como surgiu o “Velho que lia romances do amor” e ficamos com a sensação de que cada conto dele nasce assim. E sentimos esse privilégio de, ao ler, nos parecer estarmos lá a olhar por cima do ombro, o momento inspirador da história, a história ela mesma. Ficção e realidade abraçadas. Que nisto de viajar, ou deambular pelo mundo, há quem volte o mesmo, desperdiçando a viagem e há quem pare num lugar para o apreender para o respirar, nunca desperdiçando a história do desconhecido/a solitário/a.

Nos solitários hotéis por onde Sepúlveda nos leva não nos sentimos esmagados pela desolação que encerram porque ele sempre nos coloca na rota do encontro, da confidência de mistérios da vida. Não há histórias de princípio e fim apenas farripas de vidas, de pequenas felicidades e mistérios, encontro/desencontro… Aparecem mulheres e é sempre com ternura que elas emergem das páginas. Sepúlveda dá-nos a sua visão da mulher. Não que haja uma escrita masculina mas há indiscutivelmente o olhar, o sentir do homem no olhar e ternura que usa para nos contar das mulheres. 

Tenho dificuldade em destacar apenas uma, todas têm uma unidade neste périplo pelo mundo. Vida repetida. Mas um faz-me pensar no livro do Gabriel Garcia Marques “Amor em tempo de Cólera”. nos poemas de Neruda, ou de kavafis. Gosto de sentir que os caminhos fazem sentido por algo que havemos de encontrar algures, mesmo que muitos anos depois.

Um pequeno livro viajante que toca com mãos e alma a realidade que encontra. 
Um bom presente...