domingo, 19 de janeiro de 2014

Qual é a palavra?



loucura
loucura para que
para que
qual é a palavra -
loucura disto -
de tudo isto -
loucura de tudo isto -
adquirida -
loucura dado tudo isto -
vendo
loucura vendo tudo isto -
isto -
qual é a palavra -
isto isto -
isto isto aqui -
tudo isto isto aqui -
loucura dado tudo isto -
vendo -
loucura vendo tudo isto isto aqui -
para que -
qual é a palavra -
ver -
mirada fugaz -
parece ver fugazmente -
precisa parecer que vê fugazmente -
loucura pela necessidade de parecer ver fugazmente -
qual -
qual é a palavra -
e onde -
loucura pela necessidade de parecer ver fugazmente o que onde -
onde -
qual é a palavra -
ali -
lá -
para além do lá longe -
longínquo -
longínquo para além do longe -
enfraquecido, vago -
enfraquecido, vago ao longe para além do lá qual -
qual -
qual é a palavra -
vendo tudo isto -
tudo isto isto -
tudo isto isto aqui -
loucura para ver qual -
mirada fugaz -
parecer ver fugazmente -
necessidade de parecer ver -
enfraquecido, vago ao longe para além do lá qual -
loucura pela necessidade parecer ver fugazmente -
qual -
qual é a palavra -

qual é a palavra

What is the word, Samuel Beckett

(Tradução de Orfeu B)


Há dias, ou ontem, ou antes, pouco ou muito, eu esperei por Godot por cerca de duas horas no Teatro Nacional São João (TNSJ) do Porto. Eu sabia que ele não viria, mas lá estive e fiquei para recordar-me da revelação que a leitura de Beckett me tem sido ao longo da vida.

Horas de espera, menos de dois meses depois de ter ido, também ao TNSJ, ver a enterrada viva, declarar que os dias são felizes. E vale a pena dizer que o monte que serviu de toca/campa para Molly era poroso e de cortiça. E é natural esperarmos pelo fim do jogo. Pela conclusão da trilogia. Ou simplesmente pelo fim, pois tudo em Beckett é sobre o fim. Embora não se trata de um estilo, ou de um modismo do seu tempo (1906-1989); não, em Beckett a acção e os movimentos forçados dos personagens decorrem das leis da inércia, das leis da psicologia, das normas metafísicas da alma humana na sua mais absoluta solidão. E os factos colam-se às palavras pelas afinidades da essência e da existência. As palavras, que segundo Beckett, são as únicas entidades que rompem o silêncio. E estas sucedem-se arrastadas pela inviabilidade do discurso (eu nunca uso o termo absurdo por considera-lo insuficiente, demasiado indistinto) e pela arbitrariedade dos acontecimentos na estrutura geral do cosmos. As palavras emulam a fluidez do tempo, e simultâneamente, materializam a impenetrabilidade dos significados, admitindo-se que faz sentido atribuir significado às coisas. Mas suponho que Beckett não acreditava em significados. Suponho que Beckett tinha crenças baseadas em movimentos e palavras. No sentido colectivo que as palavras têm ou podem adquirir se forem repetidas ao ponto de criarem condicionamentos emocionais. 

Para Beckett os territórios são brancos, e o público tem que os vislumbrar nos olhos dos seus personagens. São angústias de autor e de espectador a reflectirem-se infinitamente, de olhos para olhos, como se fossem um fogo frio que impregna a todos, mas que, por mero acaso, poupa uns quantos do verdadeiro exercício de entender: "Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem".    

E enquanto esperamos, há a deplorável vileza do amo que acaba cego, a submissão abjecta do escravo, que inunda os ouvintes com pensamentos conexos pela ausência de nexo. Pensamentos que inspiram Estragon e Vladimir a perguntarem-se: "Pensar? E isto já nos aconteceu?" 

Mas tudo em Beckett é um ancore do fim. E claro há o fim do último poema, What Is The Word (Qual É A Palavra) :

folly -
folly for to -
for to -
what is the word -
folly from this -
all this -
folly from all this -
given -
folly given all this -
seeing -
folly seeing all this -
this -
what is the word -


O fim que é um início para quem compreende qual é a palavra, ou o que é a palavra. Um início que marca o verdadeiro fim. O único fim possível.

Orfeu B.
   


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