domingo, 21 de agosto de 2011

“Não devo falar de flores/em tempos favoráveis/à dor das oliveiras" Licínia Quitério





“Poemas do Tempo Breve”

Licínia Quitério

Edição de autor

Nestes tempos temos livros, blogues e redes sociais e risco do tempo ser excessivamente tomado. Mas, como em tudo, o mal e o bem não residem nas coisas mas em nós, no bom ou mau uso que delas fazemos.

Há uma inegável panóplia de possibilidades no mundo on-line. A cargo de cada um o uso assertivo e comedido, para multiplicar os caminhos mas não dividir, irremediavelmente, o tempo. E sim, podemos pôr este mundo ao serviço dos livros, da sua divulgação, da distribuição, da comunicação com os leitores. Aliás, este blogue (7Leitores) também se inscreve nessa intenção. O mundo cresce, a edição multiplica-se e o que nos resta para orientação e escolha é uma proximidade feita de detalhes e afectos.

Há tempos trouxe aqui um livro de Poesia do Henrique Manuel Bento Fialho, uma limitada edição de autor distribuída apenas por envio postal (recentemente sobre ele escreveu Pedro Mexia, no Expresso/Actual/9/7/2011). Este “Poemas do Tempo Breve” segue o mesmo exemplo de distribuição. Assim devia ser a poesia: apenas palavras atiradas ao vento para quem as souber apanhar… Mas é preciso salvaguardar o lado humano dos poetas que têm o hábito de ser mortais e não viver só de luar.

Foi um acaso que me levou a descobrir esta senhora, o seu blogue e depois o livro. Sigam por aqui e saberão do que falo: http://sitiopoema.blogspot.com/

A vida vai-nos dando passado. Um dia olhamos e reparamos que esse tempo é infinita e irremediavelmente maior que o futuro. Devemos cuidar de ter o melhor e mais intenso passado pois cada dia que vivemos é um dia perdido, apenas ganho no que dele restar de memória.

O livro abre com palavras da escritora Cristina Carvalho e do poeta Joaquim Pessoa. Não são prefácios, no sentido comum do termo, nem cedência de simpatia, apenas palavras de quem partilha a respiração da poesia que Licínia Quitério escreve. “Poesia sem tempo e para todo o tempo”, “de procura de novos caminhos”, diz Joaquim Pessoa saindo-se muito bem da difícil tarefa de falar, poeticamente, desta poesia “desassossegada” e, no entanto, portadora de paz, cheia de alma mas, também, de corpo presente.

Lícínia Quitério também ao seu jeito se apresenta. Começa: “Tenho setenta anos”… O tempo de vida é algo que não se recusa. O que sabemos, em certa idade é diferente do que sabemos em outra. O que fazemos, a partir de um certo momento da vida, com os sentimentos, com as palavras, ousando fazê-lo e não desistindo, não deixando que a vida se perca, não é sinónimo de juventude mas de sabedoria.

“Quem quiser saber de mim há-de saber ler os meus poemas. Se deles gostar, bem poderá ser que de mim goste” diz Lícínia.

E na verdade fiquei a gostar desta senhora. Do modo delicado e genuíno como se partilha na poesia que se impõe “como luz e caminho”, assumindo que é preciso saber esperá-la mas também trabalhá-la, desveladamente. E o resultado, por muito trabalho que tenha dado, tem naturalidade e leveza sem ter ausente a profundidade das mágoas que encerra, a inquietação da presença dos outros como existência ou promessa de existirem algures.

NÃO DEVO FALAR

“Não devo falar de flores/em tempos favoráveis/à dor das oliveiras (…)//Direi então devagarinho/do desenho das dálias/na memória dos canteiros/da palpitação das asas/da borboleta em fuga/do silvo dos comboios/rasando as oliveiras//”

Sente-se uma correspondência discreta e forte entre o escrito e a essência de quem escreve. Gostei imenso de a ler. Pela sabedoria e serenidade que emana da sua poesia, sem, no entanto, perder frescura e alguma inocência que o anúncio do início, “tenho 70 anos”, nos pode fazer estranhar neste tempo em que as pessoas se libertam da Vida demasiado cedo.

POR VEZES

“Por vezes tudo se confunde. As minhas mãos/são sol dentro das tuas e há cintilações nos campos/do Outono onde se guardam nuvens e esmeraldas./(…)/Por vezes sou o Verão a suportar a casa./Por vezes sou a casa e acolho a sombra./Por vezes tudo se confunde e sou a sombra./Por vezes//”.

A Poesia que canta o amor mesmo no meio da solidão, à luz ténue de uma longínqua, quiçá impossível, esperança.

ESTOU SÓ

“Estou só. Semicerro os olhos e vejo-te no longe,
a acenar. A tua mão é a corrente a que me prendo
por vontade, a demorar o tempo de partir.
Hei-de saber, amor, se nome tem esta batida
do meu coração dentro do teu. Vem para o pé
de mim. Senta-te no sofá que guarda a forma
do teu corpo intenso, com cheiro ao veludo das manhãs.
Fala-me mesmo que as palavras nada digam
a não ser o que sempre dissemos e continuaremos
a dizer até ao fim dos dias. Preciso da tua voz
no meu ouvido para saber o canto das marés.
Não tenhas pressa. Amanhã sairemos à rua
e seremos a febre de todas as lutas e abraçaremos
os amigos que não envelheceram, que não adormeceram
nos tapetes de flores. E nós, que nos amamos
para além do nevoeiro, há muito a encobrir a nossa rua,
beijar-nos-emos no meio da multidão, e o sol virá.
Seremos árvores até que delas fique não mais
do que um recorte em águas vivas onde repousa o céu.”

Poesia que embrulha delicadamente a mágoa das partidas, o que fica para trás. O que levamos é sempre o que vimos e sentimos, mais nada. Não vivemos por delegação. Bom e mau tudo passa por nós, pela alma e pelo corpo. São nossas as memórias, são nossas as cicatrizes e a dor cíclica que o tempo traz ao dobrar das datas.

A Poesia é o que fica do indizível.

AMEI O VERÃO

“Amei o verão e as sombras ofertantes
de grutas e desvãos e amáveis
copas aos tórridos amantes.
Imensa a praia onde me deitei
e mais ninguém pisou como eu pisei.
Eram então os dias em que o corpo
se vestia de carmim e açafrão
para receber o desenho dos pássaros
na frescura da lâmina da tarde
e a minha escrita era líquida e nua
a deixar-se tomar por peixes verdes
que um poeta andarilho me oferecera.

Foi claro e breve o tempo da inocência.
A praia essa continua imensa.”

Todos os dias o blogue da Licinia é visitável. http://sitiopoema.blogspot.com/

Como diz nunca se sabe quando os poemas nos visitam. Como nunca sabemos quando os sentimentos batem à porta ou quando entram, não costumam pedir licença, ou quando partem, também sem aviso prévio. A vida continua seja ou não feita de dias felizes, feita das memórias que nos acompanham tornando-nos, simultaneamente, mais densos e mais leves.

“em tempos favoráveis/à dor das oliveiras” a Poesia é o que resta a preencher as mãos, a amparar a alma, a guiar a esperança. Não estou certa de que todos os poetas sempre acreditem mas sei que escrevendo nos ofertam a nós, leitores, o dom de não deixar de acreditar na incessante busca da felicidade.

Sem comentários: