sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Homem e o Animal



"Enganamo-nos completamente sobre a natureza das grandes experiências totalitárias do século XX se nelas vemos apenas uma persecução das últimas grandes tarefas dos Estados-nação oitocentistas: o nacionalismo e o imperialismo. O que está em causa é agora bem diferente e mais extremo, dado que se trata de assumir como tarefa a própria existência factícia dos povos, ou seja, em última análise, a sua vida nua. Deste ponto de vista, os totalitarismo do século XX constituem verdadeiramente a outra face da ideia  hegelo-kojeviana do fim da história: o homem alcançou finalmente o seu télos histórico e nada resta, a uma humanidade de novo tornada animal, que a despolitização das sociedades humanas através do alastramento incondicional da oikonomia, ou a sanção da própria vida biológica como tarefa política (ou melhor, impolítica) suprema.

É provável que o tempo em que vivemos não tenha escapado a essa aporia. Será que não vemos, à nossa volta e mesmo entre nós, homens e povos sem essência e já sem identidade - entregues , por assim dizer, à sua inessencialidade e intolerância - procurar por todo o lado e às cegas, a custo de grosseiras falsificações, uma herança e uma tarefa, uma herança como tarefa? Mesmo a pura e simples deposição de todas as tarefas históricas (reduzidas a simples funções de política interna e internacional), em nome do triunfo da economia, assume hoje frequentemente uma ênfase na qual a própria vida natural e o seu bem-estar parecem apresentar-se como a última tarefa histórica da humanidade - admitindo que faça sentido falar aqui de uma "tarefa".

As potências históricas tradicionais - poesia, religião filosofia - que … mantinham desperto o destino histórico-político dos povos, foram há muito tempo transformados em espectáculos culturais e experiências privadas e perderam toda a eficácia histórica. Perante este eclipse, a única tarefa que parece ainda conservar alguma seriedade é o tomar a cargo e a "gestão integral" da vida biológica, isto é, da própria animalidade do homem. Genoma, economia global, ideologia humanitária são as três faces deste processo em que a humanidade pós-histórica parece assumir a sua própria fisiologia como último e impolítico mandato.

Se a humanidade que tomou em mãos o mandato de gestão integral da própria animalidade é ainda humana, no sentido da máquina antropológica que, decidindo a cada vez acerca do homem e do animal, produzia a humanitas, não é fácil dizer; nem é claro se o bem-estar de uma vida que já não se sabe reconhecer como humana ou animal pode ser dado como satisfatório … A humanização integral do animal coincide com uma animalização integral do homem."     

Giorgio Agamben


A observação duma gravura na Bíblia hebraica do século XIII que se encontra na Biblioteca Ambrosiana em Milão, lança, Giorgio Agamben, um dos mais influentes e originais filósofos do nosso tempo, numa fascinante reflexão sobre a condição humana, a sua separação do mundo animal e sobre o limite crítico do que define o humano. 

A gravura representa três imagens: a visão de Ezequiel; os três animais das origens (o pássaro Ziz, o boi Behemot e o grande peixe Leviatã); o banquete dos justos ainda em vida quando da vinda do Messias. E nesse último fragmento, à sombra de árvores paradisíacas, os justos de cabeça coroada sentam-se a uma mesa ricamente posta. Nada mais canónico: os justos que ao longo de suas vidas observaram as prescrições da Torá se banquetearão com as carnes de Leviatã e de Bohemot. Há porém um detalhe desconcertante: sob as coroas, os justos têm cabeças inequivocamente animais, de águia, de boi, leão, asno e pantera. E dois instrumentistas, um dos quais claramente símio. 

A interpretação talmúdica sugere que no reino messiânico também o mundo animal será transfigurado. É uma interpretação possível, embora não seja de todo a única plausível. Ou era a intenção do artista sugerir que no último dia o próprio homem se reconciliaria com a sua natureza animal? 

A discussão de Agamben é abrangente e profunda e brinda-nos com uma série extremamente original de interpretações da gravura bíblica e de questões relacionadas. O leque de questões é variado: Bataille e um certo gosto pelo grostesco; o sentido da história de Hegel; a escatologia segundo os filósofos medievais; a definição da vida de Aristóteles, e a separação do homem do reino animal; a taxinomia de Lineu (cuja versão original enumerava as sereias junto das focas e que tinha grande dificuldade de situar o homem); a evolução biológica; a máquina antropológica; a origem da linguagem e a demarcação do estatuto especial do homem; Uexkuell e a percepção animal; Heidegger e as suas difusas definições; Benjamin e Ticiano; e uma reflexão final sobre o nosso tempo pós-político. 

Uma leitura refrescante e estimulante.         


Orfeu B.




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