quinta-feira, 16 de julho de 2009

O mel do leão




Apesar de ser o livro mais publicado de sempre, e supostamente o mais lido, a Bíblia é muito possivelmente uma das mais misteriosas reuniões de textos. A origem dos vários livros que a compõe, a sua laboriosa reunião, a ética e lógica subjacentes compreendem uma elaborada explicação histórica, e pressupõem um conjunto extraordinário de circunstâncias para garantir a continuidade do exercício de elaboração, compilação e reunião.
Naturalmente, o facto de serem algumas de suas partes instrumentos fundadores de três das mais representativas religiões da Humanidade, não permitiu durante muitos séculos, que os vários aspectos deste fundamental livro fossem objecto de estudo. A impermeabilidade da fé, não exige maiores questionamentos. A palavra de deus existe simplesmente e não requer explicações. Mas para além do carácter fundador, há objectivos histórico-políticos muito bem definidos. Visa a Torá hebráica, ou o Velho Testamento, garantir a coesão e a continuidade do povo de Israel através da sua adesão a um código ético explícito com deliberações negativas e positivas. O Novo Testamento, tem como objectivo difundir os ensinamentos do rebelde Jesus tornado deus na terra, estendendo e universalisando o código ético do Velho Testamento, procurando desta forma elevar o nível ético da Humanidade. As implicações histórico-políticas desta expansão são bem conhecidas.
É bem sabido que o património intelectual do Judaísmo compreende também exegeses e discussões rabínicas de episódios da Torá, da lei e da ética, reunidos no Talmud ou Gemara. Porém, estas discussões tendem a aguçar ainda mais o extraordinário da narrativa e o seu mistério. Por sua vez, o Novo Testamento é composto por uma selecção "politicamente correcta" de relatos da vida de Jesus de Nazaré, sendo assim um texto mais depurado. Mas não podemos esquecer que para muitos, a modernidade teve início no século XVII quando Spinoza, defende a necessidade de uma leitura exclusivamente secular da Bíblia. Educado no seio da ortodoxia judáica, que acaba por renegá-lo em 1656, Spinoza distancia-se das correntes espirituais do seu tempo ao defender que Judaísmo e Cristianismo deveriam ser reestruturados através da crítica racional e dum programa de reforma fundado na leitura crítica da Bíblia. É este espírito que motiva o livro de David Grossman sobre o mito de Sansão.
Sansão, o israelita que matou com as próprias mãos um leão e que, cerca de um ano depois, tirou o mel das abelhas que se instalaram na carcaça do leão morto para regalar os seus pais, é sem sombra de dúvida, digno de dissecação literária, histórica e psicoanalítica.
Enviado por Deus, para libertar os Israelitas da opressão dos Filistinos, um povo guerreiro que vivia a oeste de Israel, às margens do Grande Mar e que adorava o ídolo Dagon, uma criatura com corpo de homem e cabeça de peixe, Sansão exemplifica a derrocada de um homem que apesar da sua força física sobrenatural, nunca foi capaz de conciliar a sua vida adulta com a tarefa divina que lhe havia sido incumbida. Como Samuel, que acabou por liderar os Israelitas e impor a derrota aos Filistinos, Sansão foi declarado pelo anjo mensageiro de Deus, um nazarita, um homem consagrado a Deus, um "que tem um juramento" e, dada essa condição, a sua mãe foi explicitamente exortada: estão vetados a Sansão o vinho e as bebidas fortes, e o seu cabelo não deve jamais ser cortado.
Paradoxalmente, o Sansão adulto procurou deliberadamente a convivência com os Filistinos, que pela lógica das circunstâncias nunca ser-lhe-iam fiéis. Assim, responde com o brutal assassinato de 30 homens em Ashkelon por ter a sua esposa filistina revelado o segredo de um enigma por ele proposto aos Filistinos. Posteriormente, arrependido procura uma reconciliação com a sua esposa, mas quando esta não é mais possível, Sansão responde uma vez mais de forma brutal e desproporcional. A vingança demonstra que a Sansão não faltava engenho: captura 300 raposas atando-as duas a duas pela cauda, amarrando-lhes uma tocha; finalmente, após incandescer as tochas liberta os pares de raposas nas vinhas, oliveiras e campos de grãos dos Filistinos. Mas faltava-lhe claramente uma bússola moral para travar de forma madura e sensata a sua incapacidade de gerir as frustrações.
Dalila, é a última das suas mulheres filistinas. Uma mulher dividida entre a paixão por um homem infantilizado e a lealdade para com o seu povo. Este último sentimento acaba por prevalecer, também por força da necessidade que tinha Sansão de ver-se traído para poder então vingar-se usando a sua força sobre-humana. Desta vez contudo, o jogo dos amantes vai mais longe, pois Sansão acaba por revelar o segredo do seu poder físico: os caracóis do seu cabelo até então nunca cortado. Dalila corta-os enquanto Sansão dorme, e os Filistinos aprisionam-lhe e acabam por cegá-lo.
A captura do gigante trouxe júbilo aos Filistinos, que se juntam aos milhares para festejar a queda do formidável inimigo. Finalmente, é imposta a Sansão a humilhação de dançar para os senhores Filistinos. Mas Sansão aproveita a oportunidade e pede para ser conduzido para junto dos pilares e aí clamar a Deus para que lhe restitua a força. Tendo sido ouvida a sua prece, acaba por destruir o templo de Dagon desestabilizando o seu pilar principal. Um acto final desesperado que lhe custa a vida e a dos senhores Filistinos.
O mito de Sansão ilustra, a vários níveis, a inadequação da força puramente física e revela a inutilidade duma vida desprovida da percepção do seu verdadeiro propósito. O heroísmo vazio de Sansão só podia redundar em actos desesperados e despropositados. Só através da ética é que a liberdade pode ser verdadeiramente conquistada.

Orfeu B.

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