segunda-feira, 17 de outubro de 2011

The Anglo Portuguese News



Arcádia

Notícia de uma Família Anglo-Portuguesa

Ana Vicente

Editora Gótica


O primeiro livro de Ana Vicente que me chegou às mãos era para crianças, chamava-se “O H Perdeu a Perna” e tinha ilustrações de Madalena Matoso. Talvez por associação à Madalena e pela frescura da história imaginei a Ana uma jovem moça. Algumas trocas de mails depois, desfeito o equívoco, descobri-a dona de uma já longa vida e rica de múltiplas actividades. Uns tempos depois foi publicado este: “Arcádia - Notícia de uma Família Anglo-Portuguesa”, estávamos em 2006. Hoje, ainda não nos conhecemos pessoalmente, ela já editou mais livros para crianças e a Gótica, que editou este, já não existe. Recentemente chegou-me o convite para o lançamento de um outro, na minha lista de leituras futuras: “Memórias e Outras Histórias”, uma edição Temas e Debates/Círculo de Leitores. E eu voltei a Arcádia de cuja leitura guardo excelente memória.

A história, a das vidas de Luiz de Oliveira Marques e Susan Lowndes, pais de Ana vicente, leva-nos numa longa viagem no tempo entre Portugal e Inglaterra atravessando a vida da família durante cerca de oito décadas.

A escrita, resultante de uma detalhada pesquisa de correspondência e testemunhos de pessoas que privaram com o casal, decorre num tom muito suave. Ana Vicente conduz-nos, sem se interpor mas também sem ser asséptica ou destituída de sentimento, num registo de memórias que é, aliás, uma tradição quer do lado inglês, quer do lado português desta família.

Susan e Luís conheceram-se no Hotel Inglaterra, no Estoril, quando Susan passava férias em Portugal. A mãe dela tinha ficado em Inglaterra a terminar mais um livro. Marie Belloc Lowndes era autora de policiais. Um dos seus livros, “The Lodge”, foi várias vezes adaptado para cinema, uma das quais por Alfred Hitchcock, ainda no tempo do cinema mudo.

Luiz tinha vivido doze anos em Inglaterra, primeiro como estudante e depois trabalhando no Banco Nacional Ultramarino. Começara a trabalhar quando o seu pai sofre a crise da queda do escudo, em 1921, após ter gasto mais de duzentos contos na construção de um palacete de habitação, escritório, armazém e rendimento na Calçada de Santos, e deixa de lhe poder enviar a regular a mensalidade.

Quando se conheceram, corria o ano de 1938 e Luiz Marques era director do APN (The Anglo Portuguese News), o primeiro número do jornal, saído a 20 de Fevereiro de 1937, custava 1 escudo (o Diário de Notícias era vendido por 50 centavos). O APN, jornal quinzenal, foi uma importante referência para toda a comunidade inglesa em Portugal.

Susan e Luiz namoraram por carta criando aí espaço para a emoção e hesitações sobre as mudanças que seriam necessárias para uma vida em comum. E por carta combinaram os preparativos do casamento que aconteceu em Londres, quatro meses depois do primeiro encontro.

Escreve Luiz: “Minha querida, dei um passo momentoso. Aluguei uma casa. Trata-se definitivamente de andar ideal e por isso achei que não devia perder esta oportunidade. É o primeiro andar de um prédio muito antiquado (…)A renda é de 545 escudos, pouco mais de 4 libras o que eu acho barato (…)” Este primeiro andar de um prédio na Rua José Fontana, nº12 virá a ser a casa da família.

Susan escreve no comboio a caminho de casa de uns amigos: “Gostei imenso das fotografias, em particular de ti em bebé. Espero que o nosso seja parecido. Os Pinney querem emprestar-nos a casa para a lua de mel. Acho que vais gostar. Fica no condado de Dorset, a a cerca de seis milhas de Bridport, onde podemos ir ao cinema(…)”

Susan dizia de si: “nasci e cresci londrina numa família muito dedicada às letras . Vivíamos no bairro de Westminster, ali à sombra da abadia , ao nº 9, Barton Street. Era como uma aldeia no coração de Londres.“ O seu pai propôs-lhe estudar em Oxford o que ela recusou, lamentado mais tarde tal recusa. “Eu pertenci à última geração de raparigas que não estavam preparadas nem tal lhes era pedido, para ter uma carreira profissional autónoma.” No entanto foi uma mulher independente e activa, estranhava que as mulheres da família do marido fossem apenas mães e esposas, e trabalhou, ao lado do marido, na redacção do APN. O jornalismo foi a principal actividade do casal.

Apesar de Susan nunca ter aprendido a falar ou a escrever português correctamente, as suas conversas intelectuais decorriam sempre em inglês, isso nunca a impediu de se relacionar. Era uma mulher que convocava muita simpatia e sempre disponível para ajudar e intervir civicamente. Um traço que, por certo, influenciou a filha.

Acompanhamos as notícias do rebentar da Segunda Guerra. É muito interessante o relato dos comentários e preocupações de quem está em Lisboa, dos refugiados e dos seus familiares durante os bombardeamentos de Londres e de todas as complicações da guerra.

São inúmeros e deliciosos, ao longo do livro, os registos de cumplicidades, detalhes do quotidiano revelando planos, custos, dificuldades da vida. Alguma contenção e austeridade apesar da posição social correspondente às famílias de ambos.

No Verão de 1940, no mesmo ano em os Duques de Windsor passam por Lisboa, Luís Marques comparece na conferência de imprensa, como jornalista, alugam, por 15 libras, durante dois meses e meio, uma casa em S. Pedro de Sintra, com um grande alpendre, jardim e, o que era raro, esgotos. Quando o gato, Titus, morre Susan recebe uma carta de pêsames pelo passamento do bichano.

No Verão de 1947 Susan e uma amiga, Ann Bridge, dão a volta a Portugal num automóvel. Duas mulheres a viajar sozinhas não era comum na época. Desse périplo resultou um livro que foi, originalmente, publicado em 1949 e diversas vezes reeditado. “The Selective Traveller in Portugal”. Nunca houve referência a esse livro na imprensa portuguesa ou interesse de alguma editora e só recentemente foi publicado no nosso país, numa edição da Quidnovi: “Duas Inglesas em Portugal”, um excelente e rigoroso roteiro da época, de locais e de mentalidades, e ainda actual em alguns lugares.

Passamos pelos anos 50 quando toda a roupa de menina ou senhora era confeccionada por medida depois de aturadas provas, pelos momentos de nascimento dos filhos, viagens e relatos de pessoas e acontecimentos que vão passando pelas suas vidas.

Nem Susan nem Luiz escreviam diários mas organizavam a sua vida em agendas onde anotavam todos os seus inúmeros compromissos sociais. Tiveram uma vida social muito preenchida. Eram ambos crentes e praticantes. Susan escrevia em cada agenda, em cada ano: “Sou Católica. Em caso de acidente é favor mandar vir um sacerdote.”

Luís é conceituado como tradutor “capaz de traduzir poemas de Chaucer para português medieval fazendo-o rimar”. Um dia tendo uma dúvida numa tradução telefona a um amigo, Director da Biblioteca Britânica, que promete fazer uma pesquisa e telefonar depois. Passado algum tempo Luiz Marques recebe um telefonema da Embaixada Britânica colocando-lhe uma questão e exclama desesperado: “mas sou eu que tenho essa dúvida!”

Luís, faleceu a 1 de Outubro de 1976. Muitas cartas chegaram testemunhando a perda de uma excelente pessoa. Susan escreveu: “o nosso casamento foi muito forte e durou quase 40 anos”

Susan continuou a coordenar a edição do APN, com ajuda da sua secretária Maria Luísa Ferreira. Fizeram-se várias exposições sobre o jornal, considerado uma fonte para a história da comunidade inglesa durante segunda Guerra Mundial. O jornal foi comprado por Nigel Bartley, em 1979 e só chegou ao fim em 2002.
Susan morreu a 3 de Fevereiro de 1993. Um artigo de Francisco Hipólito Raposo intitulado: "Goodbye, Mrs. Lowndes" enaltece a sua vida, sensibilidade, interesses e humor.

Um livro de leitura, indubitavelmente, útil e muito agradável atravessando a história desta família, vivendo na sua “Arcádia”: essa região da Grécia Antiga onde os habitantes viviam um contentamento inocente.
No meio dos problemas da vida e do quotidiano a invejável ventura de uma relação de mútuo afecto, respeito e atenção ao próximo.

1 comentário:

APS disse...

Gostei muito de ler a passagem pela vida de pessoas que conheci durante alguns anos, era eu ainda um jovem.
O APN era Editado e distribuído pelo "JORNAL DO COMÉRCIO", onde eu trabalhei durante 15 anos.
Recordo com saudade o Senhor Luís Marques, D. Susan e a D. Maria Luísa Ferreira, que em 1966 me ajudou a traduzir os meus papeis para entregar na Embaixada da África do Sul.
Parabéns e Obrigado Ana Vicente!