domingo, 22 de janeiro de 2012

A Gruta dos Sonhos Perdidos


A génese da cultura humana é dos mais fascinantes enigmas. Os traços marcantes que nos distinguem enquanto espécie única no nosso planeta (e até prova em contrário, em todo o cosmos, ainda que o presente autor acredite que o Universo está repleto de vida - ver O Livro das Escolhas Cósmicas e Cosmological Thinking: cultural heritage and challenge) passam necessariamente pela nossa capacidade de desenvolver tecnologia e dar origem a factos culturais e históricos, multiplicando nesse processo a habilidade individual de interagir com o mundo e assegurar a sobrevivência de pequenos grupos de indivíduos que isolados e sem conhecimento não teriam qualquer hipótese de enfrentar os desafios do mundo circundante. O desenvolvimento da inteligência, da linguagem, e da tecnologia são os traços mais salientes dessa inexorável evolução que permite a alguns entre nós de salvar vidas, conceber projectos de engenharia, idealizar sinfonias, escrever poemas épicos, demonstrar teoremas matemáticos e elaborar modelos cosmológicos. Mas por mais camadas que o desenvolvimento material das sociedades acrescentem, parece que o conjunto das habilidades que são características da nossa espécie surpreendentemente já existiam e num elevado grau de sofisticação, há pelo menos várias dezenas de milhares de anos como algumas descobertas arqueológicas parecem tão claramente indicar. Mas há naturalmente um enorme fosso a separar as motivações que dão hoje origem à criação cultural e artística e as que existiram no passado. As pinturas da gruta de Chauvet recentemente descobertas suscitam questões de princípio e reacendem a discussão que teve lugar anteriormente acerca das pinturas de Lascaux, das representações dos "sonhos" dos aborígenes australianos entre outras, sobre a origem, a finalidade e o contexto antropológico dessas magníficas representações artísticas.

Situada numa escarpa abrupta nas margens do rio Ardeche, um tributário do Rhône, no sul de França, a gruta de Chauvet foi descoberta em 18 de Dezembro de 1994 pelos espeleologitas Jean-Marie Chauvet, Eliette Brunel Deschamps e Christian Hillaire. Ao anoitecer desse dia os exploradores ainda tiveram a percepção da importância da descoberta e puderam, ainda que brevemente, vislumbrar esse museu paleolítico que esteve fechado, devido a sucessivos deslizamentos de terra, durante algumas dezenas de milhares de anos.

Os estudos multidisciplinares dos vários aspectos dessa gruta continuam e foram catalogadas mais de 300 pinturas com cerca de 32 mil anos, as mais antigas jamais encontradas, e quase todas num impressionante estado de conservação.

O fascínio que essas questões me suscitam são irresistíveis, pelo que eu me desculpo aos leitores habituais dos 7 leitores, pois estas compelem-me a escrever hoje não sobre um livro, mas sobre um filme. O filme do encenador Werner Herzog, que se encontra actualmente em exibição, e cujo título essa entrada toma de empréstimo, apresenta-nos por meio de imagens tridimensionais a desconcertante beleza das pinturas da gruta de Chauvet representando animais (cavalos, bisões, leões, rinocerontes, ursos, um mocho, uma águia, etc) e de pelo menos uma figura humana, uma "Vénus" que está sendo abraçada por um bisão antropoformizado. Estas imagens surpreendem os especialistas pela sua tématica dominada por animais ferozes, em oposição à temática mais comum das representações paleolitícas que são dominadas pelos animais de caça, e naturalmente, pela sua refinada técnica de sombreado e perspectiva.

Se por um lado, parece haver unanimidade entre os especialistas relativamente ao contexto arqueológico da gruta de Cheuvet e da sua ligação à cultura Aurignaciana, cultura arqueológica do Paleolítico Superior, localizada na Europa e no Sudoeste da Ásia entre 34000 e 23000 anos, eu suponho que a questões concernentes às motivações e o significado específico dessas representações está e continuará no campo da especulação e da conjectura. Pessoalmente, o que mais me impressiona nessas representações é a compulsão criativa e analítica que lhes está subjacente, e o facto desta parecer não diferir essencialmente da que nos compele hoje a procurar formas extraordinárias e transcendentes de expressão. Parece também que essas manifestações vão muito para além dos aspectos ligados à sobrevivência da espécie a curto prazo, e que são como que exercícios de competências que serão fundamentais numa escala temporal muito mais alargada.

Naturalmente, a última palavra sobre o significado dessas impressionantes manifestações artísticas será dada pelos especialistas, mas essas sugerem-me acima de tudo que a sede de conhecimento é uma característica inata da nossa espécie e que a inocência do estado original de ignorância não é mais que o estágio inicial e que a sua manutenção é fundamentalmente contra-natura. Neste sentido, a punição que supostamente todos merecemos por conta do "pecado original" como descrito na Torá, na lenda da descida de Orfeu ao inferno para contrariar a morte e trazer de volta Eurídice, na parábola do fogo roubado aos deuses por Prometeu, e noutros mitos, visam reprimir o impulso criativo, um dos mais fundamentais da natureza humana e, em última instância, da própria evolução biológica. Parece-me assim, justo concluir que esses esforços mitológicos que visavam manter a humanidade num estado de inocente ignorância primordial estavam fadados ao fracasso por serem completamente contra a corrente da história, pois para a nossa espécie, o acto de criar é tão básico como o de respirar.

Orfeu B.


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