segunda-feira, 9 de abril de 2012

"Deves ter sentido o teu espírito desamparado do teu corpo como uma casa arruinada. (...) solidão maior, porque um corpo é a nossa última companhia." Vergílio Ferreira. in "Em Nome da Terra"



“Como Carne Em Pedra Quente”
Ana Sofia Fonseca
Clube do Autor


O livro veio parar às minhas mãos por um acaso, aberto na página 22. Comecei a ler, a ler, e foi lido como se tricotasse para entreter o tempo e de repente me visse incapaz de parar o movimento das mãos hipnotizadas pelo ruído das agulhas. E regressei depois do final ao princípio. 

É o primeiro romance da jornalista Ana Sofia Fonseca e constrói-se à volta da narrativa de uma mulher sentenciada de morte. O médico dispara à queima-roupa e deixa-nos divididos entre o imenso peso da sentença de morte e a indignação pela insensibilidade que nos coloca na realidade familiar de muitos homens e mulheres "assassinados" com o corte brutal da esperança. Em passo rápido como se acompanhássemos uma maratona ficamos contaminados com o cansaço mas não desistimos. Algures queremos chegar à meta. Laura, é uma mulher sobrevivente de um cancro, amputada de um peito, a morrer de SIDA, que vai gravando para a sua filha uma herança de memórias e nesse registo leva-nos ao seu passado, às memórias dos seus antepassados. No limite das suas forças, uma mulher doente, bem e mal-amada, perseguindo vários fios da sua história.

Ana Sofia Fonseca tem talento para nos fazer reagir às palavras, pode-se gostar ou não, mas não ser indiferente. Não há palavras de consolo quando não há esperança.
E, seguimos o ajuste da memória, a preocupação pela filha, a incapacidade de comunicar com quem ainda ama, na dúvida de ser ainda amada.
  
O livro é atravessado por muitas leituras dobradas. Algures nas entrelinhas encontro Mia Couto, embora não nomeado, e o citado “Em nome da Terra” de Vergílio Ferreira a fazer sentido na solidão, no peso da morte, na crueza de toda a escravatura fisiológica e escatológica dum corpo.

O quotidiano segue sem voos, em passos certos e crus. E, de quando em quando, no regresso ao passado chegam alguns ecos de realismo mágico a prometer-nos uma história maior. Há livros, primeiros livros que cumprem tudo e nos deixam a interrogação se depois o segundo chegará ao mesmo patamar. Este, pelo contrário, abre diversas linhas narrativas que hão-de por certo cumprir-se em romances futuros.

Assim prometem os mortos guardados dentro dos vivos.
“ Como carne em pedra quente” é a chave de um passado.

Não há redenção. Fechado o livro, respiramos de alívio. Podemos sair para a rua em busca do sol, libertos das sombras. Ficamos com farripas de memórias, a professora Lurdinhas, um anel de ouro branco com duas pérolas como muitos relembram numa mão a acenar em muitas infâncias, uma avó analfabeta e sábia. “Os mortos não voltam” embora não partam enquanto vivem dentro dos vivos. Lisboa, África. Lutos vários. Guerras atravessadas, de Espanha a África. Olhos de lua e lágrima de rio. Teão, o vizinho do primeiro esquerdo. Um disco de um tango mil vezes repetido. ,Uma Maria Valente de bordel,  tecedora do paraíso de um viúvo avô, que sentencia:
“Senhora Puta rende mais que senhora de Fátima” (…) “Sem a devoção dos homens, ambas não são nada." 
Há uma memória geracional aqui aflorada, de fugida e com insistência. Puerilidades de infância, sonhos de mulher, desejos não atendidos. Fica a sensação de que mais haverá a dizer dessa memória de África. Um ajuste de contas ainda a cumprir-se.  Restos de memórias felizes. Promessas de futuro. Presente.
                                                                                                                 
 A morte só acontece quando não há peitos de vivos para guardar os mortos. A morte de Laura dolorosa de dupla maneira na carne e na ausência dos seus amores. Laura a morrer no esforço de um gesto belo e heróico e altruísta de devolver um sentido à espera de dois corações. A vida pode separar os que se amam mas a morte não. 

A beleza de algumas palavras e a crueza dura de outras cruzam-se como lantejoulas brilhantes entrelaçadas num tricô de linha áspera e baça. A história toca-nos ora como serapilheira sobre carne queimada ora como brisa e água fresca.
Não quero desvendar nada, leiam. 
Deixem-se levar. 

Por um tango de Gardel… “sus ojos se cerraram”

“burlándose el destino me robó su amor”

“Sem ti…”
“Eu também…”
“Como Carne em Pedra Quente”


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