domingo, 6 de janeiro de 2013

Incidente em Vichy



BAYARD - O senhor julga que podemos ser eternamente nós próprios numa sociedade como esta? Quantos milhões de pessoas andam esfomeadas e umas tantas vivem como reis? Quando todas as raças são escravos para o abastecimento do mercado? Como é que poderemos ser nós próprios num mundo como este? Eu trabalho dez horas por dia para ganhar meia dúzia de francos por dia; vejo por aí alguns que nunca  dobraram as costas, e esses aí são donos do planeta … Como é que o meu espírito há-de estar onde estiver o meu corpo? Só seu eu for um macaco.

VON BERG - Então, onde é que se encontra o seu espírito?

BAYARD - No futuro. No dia em que a classe operária dominar o mundo. Nisso é que eu tenho esperança … Não será agora com a personalidade de outrem.

VON BERG (muito admirado e com a melhor das intenções) - Mas não lhe parece …? Desculpe. A maior parte dos nazistas, não pertencem eles à classe operária?

BAYARD Sim, naturalmente. Com bastante propaganda, é possível confundir toda a gente.

VON BERG - Bem vejo. (Breve pausa) Mas, nesse caso, como é que se pode ter uma tal confiança neles?

BAYARD _ Em que é que p senhor tem confiança? Na aristocracia?

VON BERG - Muito pouca. Mas em alguns aristocratas, sim. E também em determinadas pessoas, gente do povo, simplesmente.

Incidente em Vichy



"Incidente em Vichy" (1965) é considerada por muitos críticos uma obra menor de Arthur Miller (1915-2005), autor genial das peças "Morte de um Caixeiro Viajante" (1949) e "As bruxas de Salem" (1953). Porém, parece-nos difícil concordar com esta avaliação tendo em vista o escopo e a amplitude de questões abordadas neste rico texto. Uma peça onde Miller abandona o ambiente ideológico e político da sociedade americana que ele conhece tão profundamente para reflectir sobre a opressão, agora sob a forma da brutalidade demencial do nazismo.

A circunstância de um grupo de homens ter sido trazida à força para  apresentar provas de suas identidades, da veracidade de seus papeis de identificação, da dimensão de seus narizes e de serem ou não circuncidados, cria uma situação excepcional onde são confrontadas as convicções, as idiossincrasias, os temores e as esperanças de homens de distinta extracção e condição: um pequeno comerciante, um jovem, dois trabalhadores, um dos quais comunista, um cigano, um médico, um aristocrata austríaco, um actor e um velho judeu que não pronuncia qualquer palavra, pois a sua condição de culpado já está estabelecida a priori e a sua sorte já está selada. 

Outro aspecto que me parece extremamente interessante nesta obra é o paralelismo e, em certa medida, o diálogo com o existencialismo, e muito particularmente, com a obra teatral de Jean Paul Sartre (1905-1980). Identifico na peça de Miller respostas corajosas e originais a algumas das questões suscitas por Sartre, em inúmeras de suas obras, "As mãos sujas" (1948), "A engrenagem" (1948), "Os sequestrados de Altona" (1959), entre outras. Questões puramente existenciais, questões de posicionamento do indivíduo no turbilhão dum momento histórico particularmente destrutivo e de grande clivagem ideológica, e sobretudo, questões de consistência entre o discurso e a praxe.  

Mas se para Sartre a exposição teatral tem ainda uma fundamental componente clássica, no sentido arquétipo e analítico, Miller procura uma solução que empreste ao enredo um paradigma moral e um desenlace quinta-essenciamente teatral. O improvável auto-sacrifício de um dos personagens em prol duma causa que não é a sua, representa o reconhecimento de que toda uma classe social, a aristocracia, tinha atingido o limite de sua validade histórica, porém, a afirmação moral engrandece o valor da resistência individual.      

Orfeu B.


1 comentário:

Lino Amorim disse...

Esta peça é muito mais do que, esta passagem entre Bayard e Von Berg!...