quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A MENTIRA COMO OBRA DE ARTE

Releio “O Mentiroso” de Henry James, agora em edição portuguesa da Sistema Solar, de 2012. Henry James, escritor norte-americano naturalizado cidadão britânico, é um grande autor de língua inglesa, de finais do século XIX, inícios de XX. Romancista célebre, recorde-se, por exemplo, “Retrato de uma Senhora”, autor teatral e novelista. Ora, “O Mentiroso” é uma das novelas mais bem conseguidas, não só pelo tema, como pelo modo como é abordado. O mentiroso compulsivo, que tão finamente caracteriza do ponto de vista psicológico, ter-lhe-ia sido sugerido por um cavalheiro durante um jantar em que ambos participaram: mentiroso que contava as histórias mais extravagantes com uma mestria que, num primeiro momento, conferia a essas histórias um aspecto de veracidade. Assim é a personagem criada pelo autor. Veracidade sempre confirmada pela mulher do mentiroso (coronel Capadose, de seu nome), visivelmente encantada com o que o marido contava. Personagem de que todos se afastavam, conhecedores que eram da sua fama de mentiroso compulsivo. Caso idêntico conheci eu: um colega de profissão, que inventava as mais variadas histórias, que tinham um pouco de verdade e muito de fantasia. Quase um género de literatura oral, a fazer jus à sua necessidade de transformar o real em algo de diferente, de melhor quase sempre. O que, à semelhança do que acontece na novela de James, fez com que uma mulher bonita, inteligente, crítica, vivesse apaixonada por ele. Mas, o texto de Henry James tem uma outra vertente, que o enriquece e lhe confere uma trama dramática: a personagem principal não é o coronel mentiroso, nem o autor-narrador, mas, sim, Lyon, um pintor britânico famoso, que se prontifica a fazer o retrato do mentiroso, onde espera poder captar, na postura do corpo, no gesto, no rosto, no olhar, a essência da mentira que dentro dele habita. Ainda a obra não estava concluída, quando o mentiroso e a mulher (que conhecia bem o pintor, desde os tempos de juventude), aproveitando uma ausência do pintor, penetram no seu estúdio para verem o estado de adiantamento do retrato. O pintor, chegado nesse momento, ouve gritos do casal, enquanto contemplam o quadro, gritaria que culmina em choro convulsivo da mulher, a que se segue o diálogo que se transcreve: - Mas o que é isso, querida, mas que diabo é isso? – perguntou [o mentiroso]. Lyon ouviu a resposta: - É cruel… Oh! É demasiado cruel! - Maldito… maldito… maldito! – repetia o coronel. - Está lá tudo… está lá tudo! – prosseguia Mrs Capadose [a esposa]. - Diabos o levem! Está lá tudo… como? - Tudo o que não devia estar… tudo o que ele viu… É horrível de mais! - Tudo o que ele viu? Ora! Não serei uma pessoa com bom aspecto? Um pouco mais bonito ele ainda me tornou. De repente Mrs Capadose voltou a pôr-se de pé e deitou àquela traição pintada outro olhar feroz. - Bonito? Hediondo, hediondo! Isto não… nunca, nunca! - Não, o quê? O céu me valha! – disse o coronel quase a gritar. Lyon pôde ver-lhe o rosto vermelho, desnorteado. - O que ele fez de ti… aquilo que tu sabes! Ele sabe… ele viu. Todos ficarão a saber… todos ficarão a vê-lo. Imagina uma coisa destas na Academia! Sempre escondido, Lyon, o pintor, vê o casal sair pela porta das traseiras, para ver voltar o marido, e, com um objecto cortante, fazer o quadro em pedaços. A parte final do texto é um prodígio hilariante de humor, que o aproxima de uma paródia teatral. Em suma, “O Mentiroso” de Henry James é um texto de grande beleza formal, com uma estrutura que tem muito de uma peça de teatro, e em que avultam uma finíssima análise psicológica e um sentido de humor que confere, a muitas das situações descritas, uma comicidade que só os grandes escritores conseguem atingir.

Sem comentários: