domingo, 22 de dezembro de 2013

Leviatã



Nunca na sua vida deixara Progrody. Nesta pequena cidade não havia nenhum rio, nem sequer um lago, rodeavam-na apenas pântanos, e ouvia-se na verdade, debaixo da superfície verde, o gorgolejar da água, sem que, no entanto, esta fosse visível. Nissen Piczenik imaginava que havia uma secreta relação entre as águas escondidas dos pântanos e as poderosas águas dos grandes mares - e que também no fundo dos pântanos poderia haver corais.   

Joseph Roth

Na novela Leviatã, o escritor, jornalista e ensaísta judeu austríaco Joseph Roth (1894-1939), conta-nos a história de um renomado comerciante de corais, Nissen Piczenik, um judeu devoto e profundamente honesto. Escrita em 1934, no exílio francês, e publicada postumamente em 1940, Roth descreve com a linguagem enganosamente simples de uma parábola infantil, a vida e a actividade comercial de Piczenik na pequena cidade de Progrody, situada no limite do império Austro-Húngaro. A convivência quotidiana com os corais, a essência e motivo último de sua existência, conduzem Piczenik à suposição mágica e simplória de que os corais cresciam nas profundezas do mar sob a protecção do poderoso monstro Leviatã. Mas a pacata e sonhadora existência de Piczenik é corrompida pelo aparecimento de um diabólico concorrente, Jenö Lakatos, que introduz naquela região rural o comércio de corais falsos. A prática comercial da falsificação eiva a existência de Piczenik, dado que é induzido pelo concorrente a vender corais falsos, cedendo assim à ganância que mina irreversivelmente as relações de confiança que cultivara ao longo de toda uma vida com os seus clientes e funcionários. Acaba por fim, por vender os seus  bens e abandonar a mulher indo para a cidade porto de  Odessa, arrebatado pela obsessão de encontrar no fundo do mar Leviatã, o protector dos seus corais.        

Mas a narrativa de Roth, para além do seu estilo muito próprio, é evocativa de circunstâncias de desagregação, um vincado traço da sua biografia. Roth testemunhou o desmoronamento irreversível do império Austro-Húngaro e dos seus valores após a primeira grande guerra, viu o desaparecimento das peculiares condições culturais da sua região natal, a Roménia austro-húngara, hoje Polónia e Ucrânia, região onde segundo o poeta judeu Paul Celan (1920-1970) também dali oriundo, viviam pessoas e livros. Sofreu profundamente com a desarticulação mental de sua esposa em 1928, que passou a viver em sanatórios e foi finalmente assassinada pelos nazistas. Por fim, Joseph Roth acabou ele mesmo por sucumbir à melancolia e ao álcool em Paris, onde se refugiou depois da subida de Hitler ao poder em 1933. Na verdade, Roth viveu em seis países com os pertences de duas malas, sempre como um homem cosmopolita, mas cujas raízes foram sistematicamente destruídas pela História. A forte impressão emocional que estes acontecimentos marcantes da História europeia deixaram nos espíritos é retratada com verve e espírito na sua bem conhecida obra, Hotel Savoy, de 1924. Joseph Roth faleceu, tal como Anton Chekhov, que ele tanto admirava, aos 44 anos.

Orfeu B.
   


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