domingo, 13 de julho de 2014

O Passeio e outras Histórias

 Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me completamente alheio. As ideias ficam sempre muito longe de mim e por isso sou um bom cidadão, já que um bom cidadão não pensa muito. Um bom cidadão come o que tem a comer e isso basta!

Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor do que ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tenho tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem. Não esforço especialmente a cabeça, já que deixo isso às outras pessoas. Matar a cabeça a pensar não é o meu forte, pois quem pensa muito padece de dores de cabeça e a dor de cabeça é inteiramente supérflua. 

O Passeio e Outras Histórias


Os textos do escritor suíço de língua alemã, Robert Walser (1878 – 1956), são frequentemente referidos como sendo uma transição entre os do poeta romântico alemão Heinrich von Kleist (1777 – 1811) e os de Frans Kafka (1883 – 1924), escritor quinta essencial da literatura do século XX. Claramente, há entre estes autores denominadores comuns, porém eu prefiro pensa-los como ilhas no mar revolto das possibilidades criativas da ficção. No seu tempo, Walser era muito apreciado e entre os declarados admiradores estavam Stefan Zweig, Robert Musil, Hermann Hesse, Walter Benjamin e Franz Kafka. 
   
Em “O Passeio e Outras Histórias” o leitor pode apreciar com nitidez o estilo irónico, e sobretudo auto-irónico, de um autor que não se enquadrava nos cânones necessariamente pequeno-burgueses da posição de um escritor no seu tempo e nos padrões de gosto e estilo que esta posição sócio-económica e cultural subentendia. São também perceptíveis os danos causados na personalidade do autor a sua condição de perene solitário e excluído. O resultado é uma escrita fluída, necessariamente exaltada, e cheia de humores e de contida revolta.   

Ao lermos, por exemplo, o longo conto, O Passeio, salta à vista a felicidade que este caminhar desinteressado e libertador injecta no autor e como este não poupa esforços para que o leitor possa compartilhar estes momentos de surpreendente leveza e elação. Contudo, há nas entrelinhas, indeléveis traços de angústia, exasperação e duma solidão profunda. Não surpreende que tenha vivido o autor, as duas últimas décadas e meia da sua vida, num hospital de doentes mentais de Herisau a este da Suíça, alienado do mundo e dos seus semelhantes, e que só os passeios propiciavam algum alívio para a sua atormentada alma.  

A sua solitária morte num campo congelado pela neve no dia de Natal de 1956, parece ser a conclusão dolorosamente lógica de uma existência precária e solitária, e completamente dedicada à escrita e aos passeios. Walser deixou-nos poemas, novelas e uma infinidade diversificada e original de contos.  

Orfeu B.



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