domingo, 22 de março de 2015
AINDA “O VISITANTE DA NOITE” DE B. TRAVEN
A Maria Teresa, minha mulher, que tinha lido a obra de B. Traven (“O Visitante da Noite”), chamou-me a atenção para um conto deste livro, intitulado “Linha de Montagem” que, em sua opinião, era dos contos mais conseguidos, mais representativos do sentir, do pensar dos índios de Chiapas, região onde B. Traven viveu. Texto que não tinha sido mencionado na minha crónica que havia publicado sobre o livro.
Evidentemente que este reparo crítico me levou a reler o conto e, como era de prever, a dar razão à Maria Teresa. De facto, trata-se de uma pequena obra prima, na qual se caracteriza a alma, a argúcia de um habitante da região. Um pobre camponês índio que, nas horas que não tinha trabalho no campo, se dedicava à confecção de pequenos cestos, para vender no mercado da cidade mais próxima. Cestos de palha, nos quais inseria fibras de cores variadas, que representavam animais e outros seres, segundo a sua fantasia no momento da confecção desses objectos, para vender nos dias de mercado.
“No mercado, pagava uma taxa de vinte centavos para poder vender os cestos. Cada um deles exigia-lhe vinte a trinta horas de trabalho, sem contar com o tempo gasto a colher as fibras, a prepará-las, a tingi-las – e vendia-os a cinquenta centavos, o correspondente a quatro cents americanos”.
E as coisas iam-se mantendo assim até que apareceu um turista norte-americano, o senhor Winthrop, que se encantou com os cestinhos. Regressado à sua cidade, vendeu os cestos que trouxera a uma confeitaria, que lhe encomendou uma remessa de dez mil dos ditos cestos, para acondicionar os chocolates que fabricava. O que ele considerou ser o negócio da sua vida.
De volta à aldeia índia, o senhor Winthrop apresentou uma proposta ao autor daquelas pequenas obras primas, o que o não deixou nada entusiasmado, pois, considerou o camponês índio, que, nem ao longo da sua vida, conseguiria fazer uma quantidade tão avultada de “canastitas”. Ao que o norte-americano argumentou que podia ensinar aos outros agricultores a sua arte, o que os levaria a ganhar muito mais do que auferiam com os seus campos. Contrariado, o artista índio pede-lhe uma noite para pensar no assunto e apresentar-lhe uma contraproposta de preços e prazos. O que, de facto, aconteceu, com surpresa do norte-americano, pois quanto mais cestos fizesse, mais caros seriam. E explicou que com o abandono progressivo dos campos mais cara se tornaria a vida quotidiana, pois seriam obrigados a comprar os produtos alimentares, que deixariam de poder cultivar.
Por consequência, os cestos teriam de ser muito mais caros, para as pessoas poderem sobreviver. Enfim, uma lógica imbatível, que ultrapassava a compreensão do senhor Winthrop, o homem da civilização das linhas de montagem.
E o nosso artista índio dá o assunto por encerrado quando diz ao senhor Winthrop:
“Aliás, há mais uma coisa que talvez não saiba, señor: bem vê, estas canastitas, tenho de as fazer à minha maneira, metendo nelas a minha canção e entrançando pedacinhos da minha alma. Se tivesse de fazer todas as que o senhor quer, deixaria de poder pôr a minha alma e as minhas canções em cada uma, seriam todas iguais umas às outras, e isso ir-me-ia matando aos poucos. Cada um dos meus cestos tem de ser uma canção, que ouço de manhã quando o sol nasce, quando as aves despertam e as borboletas vêm pousar neles. Porque as borboletas gostam dos meus cestos e das suas cores bonitas, e é por isso que vêm pousar neles, e é observando-as que imagino novas canastitas. E com isto, señor jefecito, desculpar-me-á, mas tenho de voltar ao trabalho. Já perdi muito tempo, embora seja para mim um prazer e uma grande honra ouvir um caballero do seu gabarito. Mas depois de amanhã é dia de mercado na cidade, preciso de ter cestos para vender. Obrigado pela sua visita, señor, e adiós”.
Moral da história: a Maria Teresa tinha razão. A alma de um índio habita na obra de arte que ele produz. E não será assim com todo o verdadeiro artista?
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