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Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os autores como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa máscara que é de comédia, ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os ohos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. Ah, estar só é terrível. E difícil: a própria solidão do espírito inventa a memória da fraternidade corpórea, relembra a presença dos outros, o seu olhar que nos fita e que nos espera do lado de lá da provação. Por isso me ocorre muitas vezes que para um homem saber que voz última lhe fala, deveria ao menos ver-se flagrantemente à hora de uma morte abandonada, numa ilha deserta e perdida. Pascal: On moura seul.
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Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens - toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro. Por isso nós conhecemos, fora dos que nos oprime ou deseja oprimir, uma certa tolerância fatigada ou fraterna. Irmãos de uma só comunidade, esta que se limita no nascer, no morrer, na angústia de uma redenção qualquer, é bom que nos reconheçamos, sob o mesmo império de uma mesma lei - é bom que um olhar de concórdia nos dê o que puder de reconforto e de encorajamento.
Vergílio Ferreira
Carta ao Futuro (1958) é um texto do romancista e ensaísta Vergílio Ferreira (1916-1996), nome maior da prosa ficcional portuguesa do século XX. Com um claro pendor metafísico e existencialista, a escrita de Vergílio Ferreira, com indeléveis raízes queirosianas, é particularmente tocante no seu cariz memorialista. O autor deixou-nos uma vasta obra, das quais destaco as que conheço e considero marcantes: "Para Sempre" (1983), “Uma Esplanada sobre o Mar" (1986). Vergílio Ferreira foi recipiente do Prémio Camões em 1992.
Carta ao Futuro é uma longa carta-ensaio destinada a um amigo imaginário, para ser lida amanhã, daqui a séculos ou a milénios. Vergílio Ferreira procura nessas linhas aferir se os temas existenciais que nos afligem desde sempre são ainda sentidos ou se já estarão superados. As questões em foco envolvem: o papel da arte e das emoções estéticas, a morte do indivíduo e a sua opacidade, a morte de Deus, a solidão final, a comunicação e a empatia, a unidade do ser, as verdades - que segundo o autor são necessariamente existenciais, o absoluto da arte e a sua sagração.
Vergílio Ferreira identifica os seus temas essenciais colocando-os no contexto do encontro do ser consigo próprio e da re-criação dos pilares do mundo, substituindo a ilusão da procura de Deus e de algo superior, pelo sentido da comunidade humana adquirido através do entendimento profundo da dádiva da vida, do fazer e do criar, através do sentimento estético associado à arte.
Nesta carta à humanidade, Vergílio Ferreira apresenta a sua crença de que, ao longo dos tempos, a arte é a forma mais fundamental de evitar que as angústias existenciais fragmentem a essência da humanidade. Uma carta para ser lida inúmeras vezes amanhã, daqui a séculos ou milénios, sempre.
Orfeu B.
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