segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Meu nome é vermelho

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Procurar imitar o mundo através da pintura parece-me desonroso. Eu ressinto-me disto. Mas há um inegável fascínio nas pinturas que eles produzem com os novos métodos. Eles representam o que os olhos vêem como os olhos as vêem. De facto, eles pintam os que os olhos vêem, enquanto que nós pintamos o que nós olhamos. Ao contemplar os seus trabalhos, percebemos que a única forma de imortalizar uma face é através do estilo dos ocidentais. E não são só os habitantes de Veneza que já foram convencidos por esta noção, mas todos os alfaiates, talhantes, soldados, párocos e merceeiros de todo o Ocidente. Eles têm os seus retratos representados desta forma. Um breve olhar nestes retratos e também nós quereríamos nos ver retratados desta forma, pois queremos acreditar que somos diferentes de todos os outros, um único e particular ser humano. Retratar pessoas, não como a mente as percebe, mas elas são realmente vistas pela vista desarmada, é a possibilidade que o novo método nos permite. Chegará um tempo onde todos pintarão como eles o fazem. Quando a pintura for mencionada, o mundo pensará necessariamente na pintura dos ocidentais.         
Qualquer um que pense que um artista assemelha-se à pintura que ele pinta, não me compreende e aos meus mestres artistas. O que nos expõe não é tema que nos foi encomendado, mas as sensibilidades implícitas que nós imprimimos ao tema. A luz que parece radiar do interior da pintura, uma palpável dúvida ou rancor que se nota na composição das figuras, cavalos e árvores, o desejo e a tristeza que emana de um cipreste quando este atinge os céus, a resignação sincera e a paciência que imprimimos quando ilustramos os ladrilhos de parede com um fervor que convida à cegueira … Sim, estes são os nossos traços escondidos, não aqueles cavalos idênticos todos em linha. Quando um artista representa a fúria e a velocidade de um cavalo, ele não pinta a sua fúria e a sua velocidade; ao procurar pintar um cavalo perfeito, ele revela o seu amor pela riqueza do mundo e do seu criador, exibindo todas as cores da paixão pela vida - apenas isto, nada mais.        
Fosse este livro completo e enviado, os artistas de Veneza o ridicularizariam e o seu escárnio chegaria ao Doge de Veneza. Eles dar-se-iam conta que os Otomanos haviam deixado de ser Otomanos e não mais nos temeriam. Quão maravilhoso seria se nós pudéssemos persistir no caminho dos antigos mestres! Porém ninguém quer seguir este caminho, nem Sua Excelência O Nosso Sultão, nem o Senhor Negro - que está melancólico por não ter um retrato da sua Shekure. Neste caso, nós nos resignaremos a copiar, como macacos, século após século, os Europeus. Orgulhosamente nós assinaremos os nossos nomes na nossa arte de imitação. Os antigos mestres de Herat procuraram pintar o mundo segundo os olhos de Deus, e para ocultar a sua individualidade eles nunca assinaram os seus nomes. Vós, não obstante, estão condenados a assinar os vossos nomes para ocultar a vossa ausência de individualidade. Porém, não há alternativa. Cada um vós foi convocado, e o estão a me esconder: Akhar, Sultão do Hindustão, está distribuindo dinheiro e benesses, tentando juntar na sua corte os artistas mais talentosos do mundo. É evidente que o livro para celebrar o milénio do Islão não será compilado aqui em Istambul, mas num atelier de Agra.       

Ohran Pamuk

Um livro magnífico do autor turco, Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura de 2006. Um conjunto de dezanove vozes, que se exprimem na primeira pessoa, e que incluem um cadáver, o diabo, um cão, e o pigmento vermelho que dá título ao livro. Um livro que nos expõe enfaticamente à riqueza cultural do Império Otomano, tão singularmente situado entre o Ocidente e o Oriente. A Istambul do Inverno de 1591 é o palco desta trama barroca que envolve dois assassinatos e a colisão estética e filosófica da arte dos iluminaristas muçulmanos com a arte ocidental, que então já absorvera completamente as técnicas de perspectiva da Itália renascentista.

O fio condutor desta narrativa profundamente humana e reflexiva é a encomenda secreta do sultão, Murat III, de um livro ilustrado pelos seus mais hábeis artistas para presentear o Doge de Veneza. Pretendia o sultão celebrar o primeiro milénio da Hégira (a fuga de Maomé de Meca para Medina em 622 D.C.) e demonstrar, através do livro, a riqueza do Império Otomano e a superioridade do mundo islâmico. A encomenda encerrava no entanto, uma exigência invulgar: o sultão deveria ser retratado segundo as técnicas ocidentais da perspectiva.  

A exigência do sultão desencadeia um conflito entre os artistas que defendem a manutenção das técnicas tradicionais de ilustração chinesa-mongol-persa-otomana de retratar a realidade segundo os olhos de Alá, e os artistas que trabalhavam sem reservas no livro. Quando um dos artistas é assassinado, a intriga se transforma num thriller de caça ao assassino, mas também numa análise histórica acerca o sentido da manutenção de uma filosofia de retratar o mundo cujo sentido último era vislumbrar a eternidade e cuja virtude maior dos seus executantes jazia na capacidade de copiar os antigos mestres sem que no processo se evidenciasse um estilo pessoal. 

Decorre simultaneamente à trama envolvendo os artistas, o pungente caso de amor entre Negro, um artista que regressa a Istambul após doze anos de ausência, e a bela Shekure, relação esta intermediada pela judia analfabeta, Esther, profissional na “arte” de unir pares e compreender as complexas nuances dos sentimentos amorosos. Estas personagens femininas propiciam um contraponto precioso, pois têm “um olho no livro e outro fora dele”. 

Um livro estatisticamente exuberante que espelha com cores vivas as radicais diferenças entre duas culturas, e que encerra grandes momentos de lirismo, meta-literatura, história, da dura sociologia de submissão e abuso nos ateliers de artistas, e uma ampla dimensão reflexiva sobre os grandes vectores da vida.   

Orfeu B.



sábado, 19 de dezembro de 2015

O MERGULHO NA ESTRANHEZA




Peter Carey, premiado escritor australiano, escreveu um delicioso livrinho publicado há tempo pela Tinta da China e intitulado "O Japão é um lugar estranho".

O livro de Peter Carey era um repositório de situações estranhas. O livro de Ricardo Adolfoque pode perfeitamente ser alinhado ao lado de Carey, na mesma prateleira, embora o primeiro seja uma espécie de reportagem e o segundo uma obra de ficção.

Mas ambos abordam a vida dos japoneses nessa imensa metrópole que é Tóquio, num Japão que foi arrasadpo pela Guerra e onde, dizem,-me, houve um corte radical com o passado, para se construir um presente onde a importação de tradições e hábitos ocidentais se faz de forma completamente arbitrária e estranha para um leitor desavisado como é o meu caso.

Ricardo Adolfo é um escritor nascido em Angola, e que viveu vários anos num dos subúrbios do Concelho de Sintra. Conhece e usa brilhantemente a forma de falar e de pensar dos jovens desses bairros. Escreveu 3 ou 4 romances muito ineteressantes dos quais saliento "Mizé, antes galdéria que normal e remediada".

Ricardo Adolfo foi viver para o Japão e dá-nos agora uma imporessionante descrição do quotidiano, da forma de viver e pensar dos japoneses de um subúrbio de Tóquio.

A ironia começa porque o narrador do livro descreve um subúrbio de Tóquio a partir de uma linguagem típica do habitante de um subúrbio de Sintra.

No início explica-nos muito vagamente que seria um pequeno marginal com problemas repetidos com a polícia portuguesa e que ao mudar de país procura também mudar de vida e integrar-se na vida normal dos japoneses, o que inclui comprrender de que é que consta essa vida, até casar-se com uma japonesa que parece ter preocupações muito longínquas de uma portuguesa do mesmo escalão.

De surpresa em surpresa vamos caminhando apaixonadamente pela prosa do autor, tentando arrumar um puzzle de peças difíceis de entender aos olhos de um ocidental impreparado e explicadas pelo olhar amalandrado do Cacém ou do Algueirão que é o do narrador.

Não se pode falar exactamente de romance mas de uma sequência algo frenética de histórias e acontecimentos hilariantes que foram publicados como crónicas na revista Sábado.

Talvez nem tudo seja verdade. A leitura deixa-nos frequentemente na possível fronteira entre ficção e realidade. O resultado é sempre ou quase sempre muito divertido.

Desde a naturalidade com que as pessoas dormem no emprego, passando pelo Natal do qual, segundo o narrador, os japoneses apenas retiveram a ideia de amor e, assim, torna-se quase obrigatório passar o dia 25 de Dezembro com uma parceira num Motel de encontros ocasionais, até ao protesto da jovem esposa por o marido não ter uma amante, facto que a desvaloriza aos olhos da comunidade.

Li o livro num ápice como me tem acontecido com as obras do autor. É uma escrita talvez única n nossa literatura actual. Uma escrita que vale muito a pena ler.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Caminhada




A vida harmoniza-se com a terra selvagem. O mais vivo é o mais selvagem. Como o selvagem ainda não se rendeu ao homem, a terra retempera-o. Quem avança incessantemente e nunca descansa dos seus afazeres, quem se desenvolve depressa e exige coisas infinitas à vida encontra-se eternamente numa nova terra ou numa zona selvagem, rodeado pela matéria-prima da vida. É como se trepasse aos troncos derrubados das árvores da floresta primitiva. 

Para mim, a esperança e o futuro não nos campos relvados nem nas terras de cultivo, nas cidades nem nas vilas, mas nos impenetráveis pântanos de solo instável …

A minha boa disposição é proporcional à desolação exterior. Dêem-me o oceano, o deserto ou a natureza selvagem! No deserto o ar puro e a solidão compensam a ausência de humidade e a aridez … 

Henry David Thoreau


Caminhada é a derradeira exposição de Thoreau (1817 - 1862) sobre a sua relação íntima e privilegiada com a natureza. Resultado das inúmeras palestras proferidas sobre a temática, Caminhada, faz parte do legado de cerca de 20 obras que o autor do seminal Walden ou a Vida nos Bosques e do influente Desobediência Civil nos deixou. O pensamento de Thoreau está inevitavelmente associado ao naturalismo, à ecologia, ao abolicionismo militante e ao ativismo anti-impostos. Em essência, o que Thoreau nos propõe, retórica e pragmaticamente, é um retorno à simplicidade de uma existência vivida no seio da natureza intacta. A visão de Thoreau para além de precursora dos movimentos ecologistas modernos, contém também uma advertência sobre os perigos da industrialização, que embora ainda incipiente nos Estados Unidos do seu tempo, já prenunciava o aparecimento de uma mentalidade socialmente marcada pelo materialismo e pelo egotismo.

Politicamente, Thoreau defende que contra um estado injusto e opressor, o indivíduo tem o dever de demonstrar a sua oposição, pacífica e racionalmente, pensamento que influenciou indelevelmente personalidades como Tolstói, Gandhi, e Martin Luther King Jr. Thoreau é, no entanto, um realista que almeja antes uma melhoria da governação do que a sua radical substituição; e por ser um anarquista individualista defende que: "O melhor governo é o que não governa. Quando os homens estiverem devidamente preparados,terão esse governo”. Mas para lá chegar, Thoreau advoga uma vida afastada da sociedade e uma viagem interior através de uma existência reduzida ao essencial e em liberdade de modo a responder às verdadeiras questões da vida.

Assim, por entre bosques, colinas, ribeiras e pântanos, a leitura deste livro possibilitará o leitor ter um magnífico vislumbre da personalidade de um indivíduo que colocou a liberdade de seu espírito acima das ideias consensuais do seu tempo e que abdicou conscientemente das conveniências materiais que estas lhe poderiam ter propiciado.

Orfeu B.