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Procurar imitar o mundo através da pintura parece-me desonroso. Eu ressinto-me disto. Mas há um inegável fascínio nas pinturas que eles produzem com os novos métodos. Eles representam o que os olhos vêem como os olhos as vêem. De facto, eles pintam os que os olhos vêem, enquanto que nós pintamos o que nós olhamos. Ao contemplar os seus trabalhos, percebemos que a única forma de imortalizar uma face é através do estilo dos ocidentais. E não são só os habitantes de Veneza que já foram convencidos por esta noção, mas todos os alfaiates, talhantes, soldados, párocos e merceeiros de todo o Ocidente. Eles têm os seus retratos representados desta forma. Um breve olhar nestes retratos e também nós quereríamos nos ver retratados desta forma, pois queremos acreditar que somos diferentes de todos os outros, um único e particular ser humano. Retratar pessoas, não como a mente as percebe, mas elas são realmente vistas pela vista desarmada, é a possibilidade que o novo método nos permite. Chegará um tempo onde todos pintarão como eles o fazem. Quando a pintura for mencionada, o mundo pensará necessariamente na pintura dos ocidentais.
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Qualquer um que pense que um artista assemelha-se à pintura que ele pinta, não me compreende e aos meus mestres artistas. O que nos expõe não é tema que nos foi encomendado, mas as sensibilidades implícitas que nós imprimimos ao tema. A luz que parece radiar do interior da pintura, uma palpável dúvida ou rancor que se nota na composição das figuras, cavalos e árvores, o desejo e a tristeza que emana de um cipreste quando este atinge os céus, a resignação sincera e a paciência que imprimimos quando ilustramos os ladrilhos de parede com um fervor que convida à cegueira … Sim, estes são os nossos traços escondidos, não aqueles cavalos idênticos todos em linha. Quando um artista representa a fúria e a velocidade de um cavalo, ele não pinta a sua fúria e a sua velocidade; ao procurar pintar um cavalo perfeito, ele revela o seu amor pela riqueza do mundo e do seu criador, exibindo todas as cores da paixão pela vida - apenas isto, nada mais.
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Fosse este livro completo e enviado, os artistas de Veneza o ridicularizariam e o seu escárnio chegaria ao Doge de Veneza. Eles dar-se-iam conta que os Otomanos haviam deixado de ser Otomanos e não mais nos temeriam. Quão maravilhoso seria se nós pudéssemos persistir no caminho dos antigos mestres! Porém ninguém quer seguir este caminho, nem Sua Excelência O Nosso Sultão, nem o Senhor Negro - que está melancólico por não ter um retrato da sua Shekure. Neste caso, nós nos resignaremos a copiar, como macacos, século após século, os Europeus. Orgulhosamente nós assinaremos os nossos nomes na nossa arte de imitação. Os antigos mestres de Herat procuraram pintar o mundo segundo os olhos de Deus, e para ocultar a sua individualidade eles nunca assinaram os seus nomes. Vós, não obstante, estão condenados a assinar os vossos nomes para ocultar a vossa ausência de individualidade. Porém, não há alternativa. Cada um vós foi convocado, e o estão a me esconder: Akhar, Sultão do Hindustão, está distribuindo dinheiro e benesses, tentando juntar na sua corte os artistas mais talentosos do mundo. É evidente que o livro para celebrar o milénio do Islão não será compilado aqui em Istambul, mas num atelier de Agra.
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Ohran Pamuk
Um livro magnífico do autor turco, Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura de 2006. Um conjunto de dezanove vozes, que se exprimem na primeira pessoa, e que incluem um cadáver, o diabo, um cão, e o pigmento vermelho que dá título ao livro. Um livro que nos expõe enfaticamente à riqueza cultural do Império Otomano, tão singularmente situado entre o Ocidente e o Oriente. A Istambul do Inverno de 1591 é o palco desta trama barroca que envolve dois assassinatos e a colisão estética e filosófica da arte dos iluminaristas muçulmanos com a arte ocidental, que então já absorvera completamente as técnicas de perspectiva da Itália renascentista.
O fio condutor desta narrativa profundamente humana e reflexiva é a encomenda secreta do sultão, Murat III, de um livro ilustrado pelos seus mais hábeis artistas para presentear o Doge de Veneza. Pretendia o sultão celebrar o primeiro milénio da Hégira (a fuga de Maomé de Meca para Medina em 622 D.C.) e demonstrar, através do livro, a riqueza do Império Otomano e a superioridade do mundo islâmico. A encomenda encerrava no entanto, uma exigência invulgar: o sultão deveria ser retratado segundo as técnicas ocidentais da perspectiva.
A exigência do sultão desencadeia um conflito entre os artistas que defendem a manutenção das técnicas tradicionais de ilustração chinesa-mongol-persa-otomana de retratar a realidade segundo os olhos de Alá, e os artistas que trabalhavam sem reservas no livro. Quando um dos artistas é assassinado, a intriga se transforma num thriller de caça ao assassino, mas também numa análise histórica acerca o sentido da manutenção de uma filosofia de retratar o mundo cujo sentido último era vislumbrar a eternidade e cuja virtude maior dos seus executantes jazia na capacidade de copiar os antigos mestres sem que no processo se evidenciasse um estilo pessoal.
Decorre simultaneamente à trama envolvendo os artistas, o pungente caso de amor entre Negro, um artista que regressa a Istambul após doze anos de ausência, e a bela Shekure, relação esta intermediada pela judia analfabeta, Esther, profissional na “arte” de unir pares e compreender as complexas nuances dos sentimentos amorosos. Estas personagens femininas propiciam um contraponto precioso, pois têm “um olho no livro e outro fora dele”.
Um livro estatisticamente exuberante que espelha com cores vivas as radicais diferenças entre duas culturas, e que encerra grandes momentos de lirismo, meta-literatura, história, da dura sociologia de submissão e abuso nos ateliers de artistas, e uma ampla dimensão reflexiva sobre os grandes vectores da vida.
Orfeu B.
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