Ao acordar de manhã procuro averiguar daquela sensação, algumas vezes experimentada mas quase sempre só recordação longínqua já, de encontrar satisfação por estar vivo e haver um dia à frente para viver. A memória que tenho disso, ou a imagem que ela projecta, remete-me a Londres: disponibilidade, ausência de culpa, um envolvimento exterior simultaneamente propício e distante que me poupava a confrontos maiores, o tédio, ainda assim, de alguma forma alheio, a certeza de que a intensidade e a densidade dos estímulos e dos recursos garantiriam, de alguma forma, contornos suportáveis à presença no mundo. Aqui, talvez, depois de tantos exílios interiores e de tanta auto-flagelação, estarei mais perto de uma experiência equivalente. O acordar é fácil e acompanha a emergência da luz, os pássaros anunciam o dia com folgada antecedência, nada oprime a perspectiva da movimentação, as hipóteses de trabalho são boas, há um jipe lá fora, tenho todas as razões para acreditar que nenhuma hostilidade me cerca, pelo menos num raio de 130 kms. Quando olhar para fora depararei muito provavelmente com silhuetas distantes de mulheres que se deslocam alheias, estou no meio de um espaço que me tem servido de referência pela vida fora, em plena vigência de uma hipótese duramente conquistada à força de determinação e vontade. Por isso me coloco mansa e cautelosamente perante mim mesmo e o que me cerca, não tanto, em consciência, para aproveitar, quanto para me entregar e não estragar, impedir, viciar ou destruir.
"Os Papéis do Inglês"
Um romance acerca de uma estória, que segundo ao autor, bastaria meia dúzia de minutos para contar, mas que nos remete para o cerne da arte narrativa, que passa pela história pessoal do autor, pelos aspectos problemáticos da ciência antropológica e etnográfica, pelos descaminhos históricos e políticos pós-coloniais de Angola. Em "Os Papéis do Inglês", Ruy Duarte de Carvalho conta-nos a desventura de um personagem conradiano, Archibald Perkings, caçador e antropólogo inglês, que, em 1923, na região angolana do Kwando, matou o seu colega grego e acabou por se suicidar. Escrito numa linguagem única e extremamente original, o autor, constrói a sua versão da história através da sua própria deambulação pelo território angolano e por meio das dificuldades em recuperar os papéis do caçador inglês que possivelmente estariam entre os papéis do pai do autor que, por sua vez, estavam dispersos há dezenas de anos.
Ruy Duarte de Carvalho (Santarém, 1941 – Swakopmund, 2010) foi um escritor, cineasta, antropólogo e professor angolano. Autor de referência da língua portuguesa, Ruy Duarte de Carvalho doutorou-se em Antropologia na École des Hautes Études de Sciences Sociales em Paris e lecionou na Universidade de Luanda e como professor convidado nas Universidades de Coimbra e de São Paulo. Para além da sua obra científica sobre as sociedades pastoris de Angola e da Namíbia, Ruy Duarte de Carvalho legou-nos um rico espólio cinematográfico e uma significativa obra literária, em verso e em prosa.
Orfeu B.
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